17 Setembro 2021
"Uma reconsideração teológica do matrimônio, na relação estrutural com a família, exige uma nova correlação de mundos e de experiências, que não podem mais ser interpretados como 'ordenamentos jurídicos paralelos'. O resíduo de 'poder temporal' que subsiste no 'direito matrimonial canônico' ainda impede de reconhecer o 'bem possível' da esfera natural e da esfera civil. O testemunho eclesial, mediado por experiências naturais e histórias civis muito diferentes - entre África, Oceania, Ásia, América e Europa - trazem uma nova riqueza e uma grande diversificação de perspectivas à doutrina matrimonial, ainda que na continuidade da tradição. Somente um papa 'americano' poderia trazer essa novidade estrutural à plena evidência", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 16-09-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Como é inevitável as discussões em torno do matrimônio podem facilmente perder de vista algumas distinções delicadas, que a tradição manteve por séculos, e que nos últimos 100 anos parcialmente perdemos ou esquecemos. Mesmo os discursos mais autorizados, se perderem essas diferenças importantes, facilmente vão acabar sendo mal interpretados. Vou tentar listá-los de forma simples, quase na forma de memorando. De fato, uma doutrina sobre matrimônio, família e fatos de convivência implica uma releitura de toda a tradição. Aqui estão os principais elementos que resumem a análise histórica e a reflexão sistemática.
O matrimônio é uma "instituição" que participa, simultaneamente, da natureza, da cultura civil e da vocação eclesial. Nenhuma dessas dimensões, embora em sua relativa autonomia, pode existir sem as outras. Existem, portanto:
- fatos e desejos a serem assumidos;
- direitos / deveres a serem observados e elaborados;
- dons e mistérios a serem reconhecidos e celebrados;
A não redutibilidade de cada um desses níveis aos demais é um dos maiores desafios desse sacramento. E o teste da tradição reside precisamente em salvaguardar a correlação entre os elementos não redutíveis. Essa complexidade originária do matrimônio colocou a doutrina eclesial à prova. Tanto porque o matrimônio está "antes" do sacramento, como porque está "no final" do sacramento. Por isso pôde ser "primeiro" e "último" entre os sacramentos. Porque no matrimônio a "graça" se mostra como natureza e, ao mesmo tempo, a natureza "já é" graça. E no meio destes "polos" move-se a lei, que por um lado funciona como "pedagogia" e, pelo outro, como "reconhecimento". Talvez seja precisamente sobre este ponto que despendemos os maiores esforços do nosso tempo.
A reflexão sobre os “bens” do matrimônio foi, por sua vez, fruto de uma elaboração natural, cultural e eclesial. Quando falamos sobre os "bens" do matrimônio, estamos nos movendo precisamente nesta crista extremamente delgada. A sua identificação - inaugurada por Agostinho na tríade "proles", "fides" e "sacramentum" - exerce uma seleção dos "dados" que – a cada oportunidade - a natureza, a história e a Igreja colocam sob sua atenção. Foi assim possível que também surgissem "bens" que a Igreja antiga, medieval e moderna não considerava. Vamos examinar apenas três deles:
- o "bem dos cônjuges" e a "comunidade de vida e de amor" adquiriram uma nova evidência e uma consistente autonomia;
- a "sexualidade" e o "sentimento de amor" foram transformados de funções da geração para fins em si mesmos;
- uma “vocação eclesial” consciente modificou a relação entre sujeito, família e Igreja, modificando as relações entre essas diferentes experiências.
Por sua vez, os “bens clássicos” já identificados por Agostinho foram enriquecidos e transformados:
- a “proles” não é simplesmente a geração, como fruto do exercício do sexo. É mais a descoberta de uma "geração responsável". Com toda a articulação necessária de um pensamento sobre o espaço possível de "autodeterminação" do homem / mulher na geração;
- a "fides" não é apenas "fidelidade conjugal", mas um ato de fé eclesial. A relação entre "fidelidade" e "fé" tornou-se um dos pontos-chave da releitura contemporânea do sacramento. Aqui, a relação entre "ato" e "vocação" abriu espaço para uma nova competência teológica no campo que antes era quase tomado pela única e óbvia competência jurídica.
- o “sacramentum” não se identifica apenas com a “indissolubilidade” - com o “não poder dissolver”, ou seja, com uma “negação de uma negação” - mas com o ato positivo de amar, de conviver, de pactuar. Talvez um dos pontos mais delicados desse desenvolvimento esteja na correta interpretação da forte palavra de Jesus sobre o homem que "não deve separar o que Deus uniu".
Esta palavra-chave de Jesus - "o homem não ouse separar o que Deus uniu" - indica uma "evidência originária" e um "cumprimento final". Um teólogo disse há algumas décadas: o vínculo é indissolúvel, mas não é inquebrável. No plano sistemático, a questão exige uma solução que não pode ser simplesmente de natureza judicial, ainda que devam ser dadas novas formas jurídicas. E é significativo que a tradição tenha identificado a indissolubilidade não no plano da "diferença sacramental", mas no da lógica natural e comum. Por isso, a cura para o “fracasso” do vínculo deve assumir a tarefa de uma nova compreensão sobre:
- por um lado, os sujeitos envolvidos e sua consciência;
- por outro lado, a “historicidade do vínculo”, que não é apenas “ato”, mas “percurso” e “vocação”.
A solução clássica para lidar com as crises matrimoniais foi: o vínculo é indissolúvel, mas o sujeito que se une no vínculo pode ter sofrido de "vícios de consenso". Assim, o vínculo pode ser reconhecido como "nulo" devido a uma investigação honesta sobre essas "causas de nulidade". No entanto, tudo o que a indissolubilidade do vínculo garante torna-se muito frágil se for submetido a uma análise do consenso sobre o qual se baseia o vínculo. Assim, se pode facilmente passar do "tudo" ao "nada". Esta é a solução do “foro externo”, que hoje conhece limites cada vez maiores, tornando-se causa de marcadas ficções e mistificações. Uma nova via, que de alguma forma Amoris Laetitia inaugura, retomando uma lógica mais antiga, é a do "foro interno", onde se pode descobrir que o vínculo, na consciência dos sujeitos, pode ter uma história e também sofrer um fracasso. O grande tema que entra na doutrina matrimonial católica, graças a AL, com algum precedente em FC, é “a história do vínculo matrimonial”. A solução doutrinal e disciplinar hoje exige novas categorias jurídicas, que devem ser construídas e/ou reconhecidas. Existe uma “lex condenda” que espera contribuições não acessórias para o perfil teológico do sacramento.
A recuperação de uma "dimensão escatológica" do matrimônio sacramental impõe, portanto, uma certa distância entre a "instituição jurídica" e "vocação sacramental". Isso foi muito difícil na Europa marcada pelo Decreto Tametsi, que indiretamente gerou o que o Código de 1917 e 1983 posteriormente assumiram como regra: ou seja, a identificação de cada matrimônio entre batizados como "sacramento". Essa identificação determina uma espécie de "zeramento vocacional" do sacramento. E é aí que intervém o novo paradigma teológico de Amoris Laetitia. Não modifica a doutrina, mas garante uma hermenêutica ao mesmo tempo mais antiga e mais recente do que aquela da modernidade tardia. Ao recuperar uma antiga distinção entre esferas que têm uma certa autonomia, pode superar a ideia (idealizada) de identificar o bem com a lei objetiva. Existem "bens possíveis" que a natureza e a cultura realizam, na diferença e na analogia com o ideal eclesial. Esses bens não apenas podem, mas devem ser reconhecíveis e reconhecidos.
Uma reconsideração teológica do matrimônio, na relação estrutural com a família, exige uma nova correlação de mundos e de experiências, que não podem mais ser interpretados como "ordenamentos jurídicos paralelos". O resíduo de "poder temporal" que subsiste no "direito matrimonial canônico" ainda impede de reconhecer o "bem possível" da esfera natural e da esfera civil. Um grande repensamento teológico reinterpreta a dimensão jurídica à luz da escatologia. A tudo isto deve ser acrescentada a grande mudança introduzida na doutrina matrimonial, após o Concílio Vaticano II, pela descoberta de culturas - inclusive matrimoniais - de 5 continentes diferentes, que entram como sujeitos na doutrina e disciplina eclesial. O testemunho eclesial, mediado por experiências naturais e histórias civis muito diferentes - entre África, Oceania, Ásia, América e Europa - trazem uma nova riqueza e uma grande diversificação de perspectivas à doutrina matrimonial, ainda que na continuidade da tradição. Somente um papa "americano" poderia trazer essa novidade estrutural à plena evidência.
Essas peculiaridades do matrimônio refletem-se inclusive em sua natureza de "sacramento". Só para o matrimônio, de fato, a tradição elaborou uma expressão diferente: não fala de um "sacramento instituído por Cristo", mas da "elevação do pacto conjugal à dignidade de sacramento por Cristo". De onde vem essa diversidade? Da consciência antiga, medieval e moderna (que é mais difícil no mundo moderno tardio) pelo que a instituição matrimonial tem uma dimensão "natural" e "civil" que antecipa a dimensão sacramental. Isso significa uma maior complexidade e uma necessária maior cautela, a ponto que se é justo distinguir "união" de "sacramento", também é justo não considerar a dimensão sacramental garantida "a priori" em relação à história e à consciência dos sujeitos. No caso específico do matrimônio, muito mais do que no Batismo ou na Eucaristia, a "indisponibilidade" da instituição parece problemática, precisamente porque a natureza e a cultura são assumidas, desde o início, como nível de evidência para a tradição. Assim, as modificações na percepção do que é natural e do que é lícito/protegido no plano civil não permanecem no externo da definição que a tradição dá do sacramento do matrimônio. Por isso os antigos já o colocavam, ao mesmo tempo, como o último e como primeiro entre os sacramentos. Sem exagerar.
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Matrimônio: união, geração e sacramento. Algumas distinções que não devem ser esquecidas. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU