01 Dezembro 2023
"Houve uma série de mal-entendidos diplomáticos e de relações públicas envolvendo a Santa Sé e suas relações internacionais durante o pontificado do Papa Francisco. Especialmente no que diz respeito à Ucrânia e a Israel".
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado por La Croix International, 30-11-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Papa João XXIII, especialmente com sua última encíclica Pacem in terris (11 de abril de 1963), foi capaz de transcender as restrições políticas derivadas daquilo que os liberais da Guerra Fria esperavam do catolicismo. Mas, ao mesmo tempo, ele se beneficiou de uma unidade em torno das lições aprendidas com a Segunda Guerra Mundial e em torno da impensabilidade da guerra total na era nuclear.
A mensagem do Papa João XXIII sobre a paz tornou-se parte de uma certa mística do Vaticano II e do início dos anos 1960. Um dos objetos materiais mais evocativos do catolicismo da Guerra Fria é o prato comemorativo “Rezem pela Paz no Mundo”, que mostra João XXIII, o presidente John F. Kennedy e seu irmão Robert F. Kennedy. Essa mistura clichê de teologia, política e piedade – algo nada incomum nos lares católicos até pouco tempo atrás – é também um dos símbolos de uma época que passou.
E hoje em dia parece ainda mais distante, tão inimaginavelmente diferente, depois de uma série de mal-entendidos diplomáticos e de relações públicas envolvendo a Santa Sé e suas relações internacionais durante o pontificado do Papa Francisco. Isso é especialmente verdade no que diz respeito à Ucrânia e a Israel.
A invasão russa da Ucrânia, que começou em fevereiro de 2022, e a guerra que o Hamas desencadeou contra Israel no último dia 7 de outubro, quando lançou ataques semelhantes a pogroms contra homens, mulheres e crianças, mostraram uma situação muito diferente.
O pontificado atual não conseguiu fazer com que sua mensagem ressoasse da mesma forma que ressoava até o início de 2022. Mas é mais do que isso. É claro que a Igreja Católica, como um todo, tem sido incapaz de abordar eficazmente a guerra na Ucrânia e, mais ainda, a questão israelense-palestina.
Isso vai além da necessidade da Igreja de ter uma boa e necessária cautela antes de intervir em situações em que ainda está se esforçando para carregar uma grande bagagem histórica. No que diz respeito à guerra em Israel, há o legado de antijudaísmo e de antissemitismo da Igreja. E, no que diz respeito à invasão russa da Ucrânia, há a dolorosa história do “Uniatismo”, que foi a forma do papado romano lutar contra as Igrejas ortodoxas. Mais do que cautela, a posição atual da Igreja Católica assemelha-se a uma paralisia.
Esse é um problema que, em primeiro lugar, tem muito a ver com o próprio papado. A Santa Sé, mediante a palavra e a figura de autoridade do papa, tem sido capaz de influenciar e persuadir o comportamento dos atores internacionais. Ela faz isso por meio de discursos, contatos, gestos e da forma como se comporta mediante um determinado estilo de comunicação, incluindo seu trabalho diplomático.
Mas Francisco é um papa diferente em comparação com seus antecessores. Ele não tem, nem quer ter, um porta-voz, mas apenas uma Sala de Imprensa da Santa Sé. Francisco também marginalizou os filtros institucionais que se destinam a ajudar a elaborar sua mensagem e a proteger sua autoridade. Isso acontece em um momento em que um certo tipo de hiperpapalismo está definindo certos setores do catolicismo, em que a voz da Igreja nas questões públicas é reduzida à divulgação ou interpretação de tudo o que o papa diz ou não diz, e de tudo o que ele faz ou escolhe não fazer, e também de como o público em geral aplaude ou critica suas palavras e ações.
Nos escalões mais elevados da hierarquia da Igreja, tornou-se raro um cardeal ou um bispo expressar uma opinião diferente da do papa sem ser visto como um inimigo ou um traidor.
Em segundo lugar, as incertezas de Francisco sobre o que dizer e fazer em relação à guerra refletem as incertezas dos católicos nesta fase da história da Igreja. A globalização do catolicismo significa uma Igreja mais diversificada, menos eurocêntrica e menos orientada para o Ocidente.
É também uma Igreja desorientada. Isso coincide com um aprofundamento da secularização das sociedades e culturas no Ocidente e com a perda do envolvimento político dos católicos nos movimentos sociais e políticos pela paz – sem falar do desaparecimento dos partidos católicos ou democrata-cristãos.
Especialmente entre os anos 1960 e 1980, os movimentos católicos pela paz foram um componente integral do que era o catolicismo do Vaticano II. Em parte, foi a contribuição específica da Igreja para ajudar a evitar que a Guerra Fria se tornasse quente; em parte, foi a reformulação das relações internacionais católicas após a era do Império.
Hoje, a globalização do catolicismo também significa o surgimento de pontos de vista muito diferentes dentro da Igreja sobre questões geopolíticas, muitas vezes em crítica ou em oposição aos Estados Unidos e ao Ocidente (como vemos atualmente em relação à Ucrânia e ao Oriente Médio). Esses pontos de vista conquistaram um novo tipo de legitimidade. Não são mais vistos como algo distante e pouco influente vindo da periferia, mas sim a voz de grande parte da futura Igreja.
Agora, há uma variedade de vozes que às vezes dizem coisas completamente diferentes – até mesmo em uma mesma Igreja local. Esse é um dos efeitos da religião globalizada dos “fiéis sem fronteiras”.
Em terceiro lugar, a paralisia da Igreja frente às guerras na Ucrânia e na Terra Santa tem a ver com os movimentos católicos pela paz que fluem para o rio mais amplo da cultura política progressista com todas as suas divisões internas e seus alinhamentos em metamorfose dentro do mercado da política identitária.
O ensino da Igreja Católica sobre o direito à autodefesa, a obrigação de proteger os civis e a ética da condução da guerra (incluindo, especialmente, o apelo ao trabalho para evitar a guerra) é bem conhecido.
A questão é como esse ensino interage com um catolicismo vivido, que agora está absorvido por uma série de novas questões. Elas dizem respeito a questões como o gênero e o patriarcado; a sexualidade e o abuso; as opiniões sobre o papel das mulheres que muitas vezes diferem entre o cristianismo, o judaísmo e o Islã; a emergência de uma teologia descolonial ou pós-colonial, que vê partes da tradição e da história da Igreja como singularmente tóxicas; e a desocidentalização do catolicismo e um fascínio por certas formas de orientalismo – a tendência a olhar para as Igrejas ortodoxas orientais (e até mesmo para o Islã) com lentes cor de rosa, de uma forma romântica e idealizada.
Por fim, a guerra desencadeada pelo Hamas no dia 7 de outubro mudou não apenas as coordenadas do conflito Israel-Palestina, mas também os parâmetros das relações da Igreja com o judaísmo e o Islã. Um Islã em que o Hamas é o porta-bandeira da causa palestina é um Islã muito diferente daquele com o qual João Paulo II e Bento XVI tiveram de lidar. E também é diferente daquele com o qual Francisco se envolveu no início de seu pontificado.
Estamos lidando também com um tipo de Israel diferente daquele que existia na época da declaração Nostra aetate do Vaticano II (1965) ou da assinatura do “Acordo Fundamental entre a Santa Sé e o Estado de Israel” (1993).
Mas o caminho fundamental que foi traçado ao longo dos últimos 60 anos de diálogo católico-judaico nunca pode ser dado como garantido. Quanto mais nós, como Igreja, avançamos nesse caminho, mais cuidado teológico será necessário.
A ruptura da ordem política e religiosa global que estamos testemunhando agora afetou a capacidade da Igreja de operar em nível internacional. Mas há também, internamente, uma Igreja que se encontra em um estado de confusão sobre o que pode – e deve – dizer sobre as guerras na Ucrânia e em Israel, que dizem respeito a países que são geopoliticamente próximos de Roma e teologicamente muito sensíveis ao catolicismo. Tudo isso está tornando a “névoa da guerra” ainda mais espessa do que o normal.
“Esta não é a nossa guerra”, alguns gostam de dizer. Mas o Vaticano e a Igreja Católica não podem dizer isso. E essa é mais uma razão pela qual o papa precisa falar de uma forma mais disciplinada, ponderando cuidadosamente cada palavra e cada gesto seu.
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Papa Francisco e a névoa da guerra. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU