10 Novembro 2023
“Após descobrir que seu pensamento poderia ser melhor explorado na sétima arte, Malick deixou sua carreira acadêmica para continuar sua jornada como filósofo na cadeira de diretor de cinema.”
O artigo é de Presley Henrique Martins, publicado por 7Margens, 07-11-2023.
Presley Henrique Martins é graduado em Filosofia e mestre em Ciência da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Brasil. Atualmente, é doutorando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), conduzindo parte do seu período de pesquisa na University of Copenhagen – Københavns Universitet, Dinamarca. Pesquisa o pensador dinamarquês Søren Kierkegaard, bem como a relação entre religião, existência, literatura e cinema.
Conhecido em Portugal como A Barreira Invisível e no Brasil como Além da Linha Vermelha, a película The Thin Red Line é o terceiro filme dirigido pelo cineasta estadunidense Terrence Malick. Malick possui doutoramento em Filosofia, cuja tese é sobre o filósofo alemão Martin Heidegger. Após descobrir que seu pensamento poderia ser melhor explorado na sétima arte, Malick deixou sua carreira acadêmica para continuar sua jornada como filósofo na cadeira de diretor de cinema. Homem de poucas palavras, raras vezes concede entrevistas e prefere uma vida reclusa, longe dos holofotes, pois seus filmes falam por si; sua capacidade descomunal de se comunicar com a existência humana está na experiência que seus filmes proporcionam ao espectador. A explicação é o que exatamente bloqueia a experiência, e é na experiência do encontro que o espectador tem com o filme que as respostas são encontradas. Geralmente, seus filmes demoram anos para serem finalizados. O corte final muitas vezes decepciona as atrizes e os atores que trabalharam com o diretor. Isso ocorre porque às vezes a cena que determinado ator ou atriz gravou é cortada na edição final. Tudo pode acontecer porque Malick adere a um processo criativo que aposta no improviso, no momento e no desconhecido. Optando por não seguir o roteiro, ou mesmo às vezes não possuindo um, o diretor deixa aberta a possibilidade de a surpresa e o imprevisto serem os elementos cruciais em sua concepção final.
“Após descobrir que seu pensamento poderia ser melhor explorado na sétima arte, Malick deixou sua carreira académica para continuar sua jornada como filósofo na cadeira de diretor de cinema.” (Foto: Divulgação)
Desde seu primeiro filme, Malick trabalha explicitamente com temas relacionados à religião, à existência humana e sua situação. Ele é uma figura emblemática na indústria do cinema; produtor, guionista e diretor, Malick, no início de sua carreira, dirigiu dois grandes filmes aclamados pela crítica na década de 70, a saber: Badlands[1], de 1973, e Days of Heaven[2], de 1978. O tópico da religião já pode ser constatado em seus dois primeiros filmes, o tema do paraíso perdido e o modo como lidamos com essa perda é um tema recorrente que atravessa toda a obra do diretor. Após seu sucesso imediato, Malick teve um hiato de 20 anos, nada produziu e dirigiu durante esse tempo, fato que causou muita curiosidade na indústria do cinema. Somente em 1998, Malick retomou sua carreira no cinema ao dirigir The Thin Red Line.
O filme é uma adaptação da obra homônima do romancista James Jones. A nova película de Malick trouxe elementos que se tornaram característicos em sua cinematografia: a disjunção entre a imagem e a fala; narração reflexiva sobre as imagens em contínuo movimento; e uma transição não linear que segue a cortes bruscos, remetendo a uma fragmentação muito própria das lembranças e das vidas dos personagens. Esse estilo coloca o espectador em uma busca: somos conduzidos pelos aspectos estéticos a experienciar uma narrativa que tenta conectar os muitos pedaços de uma vida dilacerada, de uma vida que perdeu o seu paraíso e agora precisa lidar com o seu sofrimento.
Em The Thin Red Line, Malick conta a história de soldados norte-americanos na Guerra do Pacífico, questionando sobre o que é essa guerra presente no coração da natureza e, por conseguinte, na natureza humana. Para além de um filme de guerra convencional, antes a guerra vem a ser apenas ilustrativa para um tema mais abrangente que aponta para esse conflito, essa guerra, que reside no coração da existência humana. O exterior, nesse sentido, é um reflexo do que acontece no interior. O filme não busca apresentar o outro como inimigo, pelo contrário, ambos são inocentes e culpados. O foco no rosto dos soldados na beira da morte revela o sofrimento humano, na morte, o que sempre esteve presente e invisível aparece de um modo devastador: a dor, a agonia, o medo, todos são iguais, todos os rostos são de um mesmo homem.
Malick explora uma violência intrínseca à própria natureza; os animais devoram-se uns aos outros para a própria sobrevivência, há terremotos, tsunamis, doenças e inseguranças que fazem manifestar a fragilidade de nossas vidas. Há uma necessidade na morte, algo que se alimenta da destruição. Todavia, o que vemos como violência é parte do funcionamento da própria natureza, é como as coisas são, visto que essa violência é resultado de um instinto inconsciente. Entretanto, o ser humano perpetua a violência para além da sua própria sobrevivência; sua violência é consciente, o que torna seu crime injustificável. Irmãos contra irmãos, a paz parece impossível, pois a guerra é irracional, talvez até pior: ela é exacerbadamente racional.
A tensão da narrativa suscita, logo nos primeiros minutos, o seguinte problema: é possível, estando neste mundo, encontrar um mundo melhor? É possível retornarmos ao paraíso? Paz e guerra, solidariedade e violência, amor e ódio, vida e morte, podem ser lidos como conflito entre luz e trevas. Essa contraposição é representada pelos personagens Witt (Jim Caviezel) e o sargento Welsh (Sean Penn), que, tendo como pano de fundo a guerra, enfrentam a possibilidade da morte iminente. Nas primeiras cenas, somos apresentados ao personagem Witt. Ele desertou da sua companhia, passando a viver com os nativos da ilha de Guadalcanal. Ele busca seu paraíso e o encontra convivendo com o povo originário. Mas ele não pertence àquele lugar. A guerra o cerca e o seu comandante, Welsh, encontra-o e o reintegra ao batalhão. Welsh é cético e tenta convencer Witt de que não existe um mundo melhor, que tudo se resume àquela guerra; não há outro mundo além deste, só há essa esperança ilusória sendo sufocada a cada dia pela proximidade da morte. Mas Witt é insistente e diz ao seu sargento que ele já viu um mundo melhor, embora, às vezes, ele pense que tudo é coisa da sua imaginação. Witt diz que, embora Welsh não tenha esperança, ele ainda consegue ver uma luz nele. A ambiguidade dessa contínua tensão entre luz e trevas é enfatizada poucos antes da morte de Witt, quando ele é cercado pelas tropas japonesas. Seus olhos refletem aceitação e serenidade, ele olha para sua morte, e podemos sentir a luz sobressaindo-se às trevas; por outro lado, no enterro de Witt, Welsh olha para o túmulo e, sobre a sepultura de seu amigo, pergunta: “onde está sua luz agora?”
Se estamos em guerra, a única forma de sair dela é acreditar que a paz seja possível, que é possível encontrar o paraíso. A morte de Witt, por um instante, pode nos fazer pensar no fracasso de nossas esperanças. Todavia, essa não é a última palavra de Malick. A última cena mostra uma planta brotando na terra. Um broto. Um sinal de que algo pode crescer onde antes era o palco de uma guerra que parecia não ter fim. Talvez, mesmo tendo sido morto na guerra, aquela esperança de Witt não tenha sido enterrada, a luz não foi extinta. Ela é o sustento para a vida brotar e crescer.
Em seus filmes, Malick utiliza frequentemente a imagem da árvore, ele explora seus elementos simbólicos e estéticos, não por acaso, um de seus filmes mais aclamados é The Tree of Life [3]. A árvore é o símbolo da condição humana, representa a nossa busca por vida eterna e também nossa existência. A árvore tem suas raízes no subsolo, mas ela rompe o solo e cresce em direção à luz; assim como as árvores, o ser humano tem sua existência marcada pela finitude, suas raízes o prendem à terra, mas ele anseia pela transcendência e transcende sua própria condição. Mas isso só é possível quando suas raízes são fortes e o fazem resistir aos temporais e às tempestades. O ser humano é um ser de transição e de tensão entre sua imanência e transcendência. Ele não pertence totalmente a este mundo, e nem a outro. Ele é um ser de fronteiras.
Na linguagem de Kierkegaard, somos uma síntese de finitude e infinitude, temporalidade e eternidade, necessidade e possibilidade[4]. Martin Heidegger em seu livro Os conceitos fundamentais da metafísica, reflete sobre a frase de Novalis de que “a filosofia é propriamente uma saudade da pátria, um impulso para se estar por toda parte em casa” (2015, p. 7). Essa saudade de casa é o que impulsiona o ser em sua caminhada, que, ao estar a caminho, espera sempre por algo. O ser espera retornar à sua casa, à sua totalidade e integralidade, mas enquanto caminha em direção à integralidade, ele é puxado pelas suas raízes, à sua finitude. Caminhando para sua completude, ele é compelido novamente para baixo, mas sua saudade transcende sua terra e seu limite, impulsionando-o novamente para o alto.
É nesse sentido que Terrence Malick, em seu filme A Árvore da Vida, coloca a questão: “existem dois caminhos: o da natureza e o da graça.” Em The Thin Red Line o que se coloca é uma questão semelhante, há dois caminhos: o da guerra e o da paz. A guerra é o que vivemos, o conflito, o insaciável, o horror. Talvez seja difícil, quase impossível, mas somos seres que não se limitam às condições dadas. Ernest Hemingway, uma vez disse: “Não pense que a guerra, por mais justificável e necessária que ela seja, não continue sendo um crime. Pergunte isso à infantaria e aos mortos.” Poderíamos acrescentar: pergunte isso às famílias e amigos das vítimas. Não deveríamos justificá-la, mesmo que ela esteja enraizada em nossa história, a guerra é um crime para todos os lados. A paz é possível, desde que não haja desistência da busca por meios de encontrá-la.
Esse é o caminho da graça.
[1] Em Portugal o filme é conhecido por Noivos Sangrentos; já no Brasil, o título é: Terra de Ninguém.
[2] Em Portugal o filme foi traduzido para Dias do Paraíso; no Brasil, o título foi traduzido para Cinzas no Paraíso.
[3] O título em portugues é A Árvore da vida.
[4] Kierkegaard elabora sua concepção de self, principalmente, em O Conceito de Angústia e A Doença para Morte.
Heidegger, M. Os conceitos fundamentais da metafísica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
KIERKEGAARD, Søren. The Concept of Anxiety. Ed. e trad. Howard V. Hong e Edna H. Hong. New Jersey: Princeton University Press, 1980.
The Sickness unto Death. Ed. e trad. com introdução e notas de Howard V. Hong e Edna H. Hong. New Jersey: Princeton University Press, 1980.
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“Que guerra é essa no coração da natureza?” Uma reflexão sobre a guerra e a paz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU