20 Julho 2023
"O foco da atenção de Malick em Além da Linha Vermelha não é a guerra em si, mas o drama de seus personagens. Com seu olhar cuidadoso, o diretor busca captar os conflitos que estão presentes no campo de batalha, as 'várias vozes' que se alinham para traçar o mapa da tensão existencial que está presente nas altercações que desenham os caminhos dos seres humanos".
O artigo é de Faustino Teixeira, teólogo, professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
O Filmes em Perspectiva do dia 05-07-2023, no IHU, abordou o precioso trabalho de Terrence Malick, Além da Linha Vermelha [1]. Para a análise do filme, contamos com a preciosa presença de Angelo Atalla, parceiro tradicional do programa. Trata-se de um filme de 1998, de 170 minutos, com um elenco de astros de primeira linha, entre os quais: George Clooney, Sean Penn, Nick Nolte e Woody Harelson. Ele recebeu sete indicações ao Oscar no mesmo ano: melhor fotografia, melhor roteiro adaptado, melhor som, melhor montagem, melhor trilha sonora.
O diretor já tinha sido objeto de outro debate no IHU, com o destacado filme A Árvore da Vida, num debate que envolveu a participação de Mauro Lopes, eu e Rodrigo Petrônio, em 24-03-2021. [2] Na ocasião, tínhamos também sublinhado o belo comentário feito por Luiz Felipe Pondé sobre o filme no jornal A Folha de S.Paulo (15/08/2011) [3]. A Árvore da Vida foi o vencedor da Palma de Ouro em Cannes, em 2011.
No artigo de Pondé, ele mencionara o traço peculiar do trabalho de Malick, que é bem diverso do “glamour da indústria do cinema e das festas da mídia”. É um cinema que traz à baila a espiritualidade no seu sentido mais nobre, com a indagação pontual sobre o sentido da vida: se ela “é fruto de uma força cega ou fruto de uma intenção bela, confrontada cotidianamente com o sofrimento inquestionável” que ela traduz para nós.
Pondé fala igualmente do filme de 1998, objeto desta reflexão, trazendo agora um debate existencial, tendo como pano de fundo a guerra. Ele nos diz no artigo que Malick “faz da voz em off de seus personagens um apelo desesperado da espécie humana em busca do sentido de nossa aventura na Terra. Em Malick, cada agonia do indivíduo (cada "voz") é arquetípica do humano”.
O foco da atenção de Malick em Além da linha vermelha não é a guerra em si, mas o drama de seus personagens. Com seu olhar cuidadoso, o diretor busca captar os conflitos que estão presentes no campo de batalha, as “várias vozes” que se alinham para traçar o mapa da tensão existencial que está presente nas altercações que desenham os caminhos dos seres humanos.
Temos no filme vários personagens, desde a frieza, arrogância e vontade de poder do coronel Gordon (Nicholas Nolte) [4], do mediador e humanista capitão Bosch (George Clooney), do nihilista sargento Welsh (Sean Penn), dos idílios amorosos do soldado Bell (Ben Chaplin) [5] e dos sonhos poéticos do soldado Witt (Gin Caviezel).
Há em Malick um protesto lírico contra as guerras, e recorre à palavra e ao drama cinematográfico para desnudar a natureza em estado bruto, que sobrevive com indiferença aos “aos homens que se autodestroem”, como lembrou o crítico Wallace Andrioli, em artigo de 2019 [6].
Ainda em sua reflexão, Andrioli pontua o contraponto feito pelo diretor da “aparente trivialidade da missão empreendida pelos personagens (tomar uma colina dominada pelos japoneses durante a batalha de Guadalcanal, no Pacífico) e a efemeridade de suas lutas e existência à acachapante impressão de permanência que caracteriza a ilha em que transcorre a ação”.
Em momentos violentos do filme, onde o cenário é a brutalidade em estado puro, Malick vai revelando para nós os passos da impermanência, da “gratuidade” do mal na sua mais nua natureza. É um filme que traz também o tema da incomunicabilidade.
O diretor traduz com clareza a sua ojeriza a qualquer ato de guerrear em si, em qualquer tempo ou lugar. O filme não deixa de ser um grito ofegante contra a brutalidade e contra o circuito de violência que circunda e mesmo habita o ser humano, e que às vezes desperta provocando ressonâncias por todo lado. Em dado momento do filme, um personagem diz que a guerra não enobrece ninguém, mas apenas “envenena a alma”.
Em outra resenha, o crítico Ruy Gardinier, reconhece que no mundo dos personagens do filme “não há verdades absolutas”, e o diretor lança seu foco nos jogos micro da guerra, trazendo para o nosso olhar o mundo interior de cada personagem [7]. É um filme que se concentra nos “personagens de carne e osso”. Numa cena das mais bonitas, quando dois soldados americanos que deserdam da guerra estão entre os nativos de um paraíso melanésio, um deles, Witt, relata a morte da mãe:
Lembro-me de minha mãe no leito de morte, toda encolhida e acinzentada. Eu lhe perguntei se ela tinha medo, mas apenas acenou com a cabeça. Tive medo de tocar a morte que vi estampada nela. Não consegui achar nada de bonito e glorioso sobre seu encontro com Deus. Ouvi falar em imortalidade, mas eu mesmo nunca a vi. Me pergunto como seria quando eu morresse. Como seria ter a consciência de seu último suspiro. Espero apenas poder enfrentar a hora da mesma maneira que ela, com a mesma calma. Porque é aí onde se esconde a imortalidade que eu não encontrei.
Há uma mensagem que acompanha essa cena inicial do filme. A presença de uma “falta”, de uma carência do ser humano: “do homem para o mundo falta coisa demais”. O homem, diz Ruy Gardinier, e alguém cindido, tem sempre algo que pensa por ele, seja Deus, o inconsciente ou o Estado: “Esse algo, entretanto, está sempre fora do filme”.
O olhar perdido, tão comum na filmagem, está presente no soldado, amigo de Witt, que no momento final, ao embarcar talvez para outra missão, se percebe, como tantos outros, sozinho. A solidão é também uma marca desse filme simultaneamente sublime e nebuloso. Emerge também, mais de uma vez, a dúvida da imortalidade, tão bem expressa pelo sargento Welsh, nos debates com Witt, o mesmo amigo que ele ajuda a enterrar, em momento difícil do filme. O sargento não acreditava em vida após a morte. Ao ser perguntado em certo momento sobre a solidão, ele indica que ela se faz presente “quando tem um monte de gente ao seu lado”.
Os dois “desertores” encontram-se ali entre os nativos, acolhidos com hospitalidade e carinho. Eles brincam com as crianças, num mar maravilhoso, de águas transparentes. Na aldeia reina momentos de alegria, apesar dos rumores da guerra. Já quase ao final do filme, quando o soldado Witt retorna ao paraíso melanésio, a acolhida já não é a mesma. Ele está fardado, munido com seu fuzil, com jeito de combatente. Agora é um estranho, e vê aquele povo sofrido destruído. Os nativos não conseguem mais corresponder à sua presença com alegria, mas sim com desconfiança e medo. A aldeia não é a mesma. As crianças têm doenças de pele e os velhos brigam entre si. Numa das choupanas, crânios dos nativos são guardados como “relíquias” de guerra. São cenas dolorosas, marcadas por olhares perdidos e distantes, revelando a face sombria do homem-humano.
Dentre as características do diretor do filme, que também ocorrem em outros trabalhos seus é o cuidado com a fotografia, as cenas deslumbrantes da natureza, e a peculiaridade de rodar a câmara para fora da ação, focalizando elementos da flora e da fauna, como um papagaio, um galho de árvore. Em plano singelo e magnífico ao final do filme, somos convidados a observar em meio à agua rasa, a presença frágil mas vigorosa de uma planta que se revela viva. Ela não é nem bonita nem feia, mas comove o olhar do espectador, pois indica a presença de ressurgência da vida em situação de ruína. Ela busca sobreviver, apesar de tudo.
Destaco ainda, como passo essencial do filme, a esplêndida trilha sonora de Hans Zimmer, reconhecido autor de trilhas fantásticas como as dos filmes O Rei Leão (1994), Gladiador (2000), O Último Samurai (2002), A origem (2010), e tantos outros. A trilha fornece uma “paisagem” particular ao filme, fornecendo o clima básico para adentrar-se na trama de forma envolvente e espetacular. Destaco particularmente três peças: as canções The Lagoon, Journey to the Line e God Yu Tekem Laef Blong Mi. Nessa última peça, bem curta, “Toma minha vida Senhor”, somos envolvidos por um coral maravilhoso que reflete todo o astral da região da Melanésia, onde as filmagens aconteceram. A trilha sonora, de quase uma hora, ganhou produção própria pela RCA, em 1999.
O filme teve uma acolhida positiva por onde passou, e revela-se uma obra prima cinematográfica, com uma abordagem original e única sobre os impactos existenciais da guerra. É obra imprescindível, que não pode faltar no repertório dos mais aficionados aos grandes filmes da história.
[1] Acesse aqui (acesso em 15/07/2023)
[2] Acesse aqui (acesso em 15/07/2023)
[3] Acesse aqui (acesso em 15/07/2023)
[4] Alguém que se envergonha do filho que preferiu trabalhar com vendas a pegar em armas e seguir o seu exemplo.
[5] Ele encontra na correspondência com a esposa “o abrigo para um lugar tão hostil”, onde vê seu mundo desmoronar.
[6] Acesse aqui (acesso em 15/07/2023).
[7] Acesse aqui (acesso em 15/07/2023).
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A guerra e o mundo interior: Além da Linha Vermelha, de Terrence Malick - Instituto Humanitas Unisinos - IHU