Ao amigo querido, Carlos Brandão. Artigo de Faustino Teixeira

Amigo e seguidor de Paulo Freire, Carlos Rodrigues Brandão faleceu na terça, 11-07-2023, aos 83 anos (Foto: Reprodução | Gepeja - UNICAMP)

13 Julho 2023

"Ao fim dessa tarde de luz, quando posso ainda uma vez conversar com você, gostaria de dizer, com alegria e lágrimas nos olhos, que pude viver uma experiência de profunda amizade. Fui brindado pelo dom de sua presença amiga, sendo correspondido por seu amor. Na mística, a gente encontra muitas experiências bonitas de amizade pura e singela, e sinto que nós dois participamos dessa embriaguez do mistério em nossas partilhas de vida", escreve Faustino Teixeira, teólogo, professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Eis o artigo.

Juiz de Fora, 11 de julho, numa tarde de inverno.

Carlos, soube agora que você fez sua travessia, às 15h50 desta terça-feira de inverno, depois de tantas vezes ter beirado a morte e ter conseguido manter-se firme na caminhada. Você me dizia que já tinha perdido cinco vidas, e tinha ainda duas pela frente. Sua última batalha foi contra a leucemia, a mesma doença que levou meu irmão André quando eu tinha treze anos. É uma doença difícil de enfrentar, e você foi corajoso e livre. Lidou com mais esse limite com a tranquilidade dos homens nobres.

Estava todo o tempo consciente de que ela, a “indesejada das gentes”, estava mais próxima, mas com seu sorriso e luz, pedia ainda um tempo a mais para curtir o que você mais gostava que era a vida. É essa mesma vida que você continua a partilhar conosco, num momento novo de relação com o cosmos, que é sempre gratuidade, dom e luz.

O bonito é que sua travessia não foi solitária. Estavam juntos com você, os seus mais queridos: Maria Alice, André, Luciana e o neto Pablo. Numa tarde de terça feira, invernal, você foi agraciado pelo Mistério. A família pôde estar bem perto e consagrar o amor com as mãos de dádiva. Das mãos que você sempre falou de forma tão linda, como no poema beber:

Vê essa concha? São tuas mãos.
Aperta os dedos com jeito,
mas que um pouco de água te escape.
Antes de tomar dá de beber
a um grão do pó do chão, a um inseto
a uma folha seca, a um galho de canela
a um mito de outros povos, a um duende
a um fio do vento, a um ar do sol
a uma criança e a um velho.
E depois bebe.
O que sobrou é a tua parte.
Bebe.

Sim, amigo querido, esse foi sempre o seu jeito de ser. Aquela pessoa bonita, de militância singela e incansável. Ia por toda parte com seu bastão e seu sorriso, atendendo aos pedidos com admirável gratuidade.

Você estava em toda parte, levando aos outros os desafios da educação popular, a pedagogia de Paulo Freire, os feixes da religião popular. Não conseguia ser um pesquisador comum, da academia tradicional, mas rezava junto com o povo, cobria-se com o manto da fé do outro, tirava suas sandálias para pisar firme e com cuidado na terra sagrada do outro.

Li com emoção em seu maravilhoso livro, Sacerdotes de viola, como nasceu a vocação pelo trabalho popular. Inicialmente, começou pelo caminho da psicologia, na PUC-Rio. Ali, diante da “pilha de testes”, olhava para além da janela e percebia que a vida mesma “estava lá fora, além do bosque e da cidade”. Foi quando aconteceu a mudança inesperada, que despertou o militante do Movimento de Educação de Base. Como você mesmo disse, "de um dia para o outro, eu saí de uma sala de testes psicológicos para uma de 'animação popular'".

E assim começou a sua longa caminhada de andarilho social, animado pela coragem e pela atenção, pelo carinho único com a vida que jorra nas bases. Como você falou tão bem: “Foi então e aí que eu comecei a ver o mundo rural e os seus moradores de outro modo. Não eram mais a gente curiosa e alheia dos tempos em que eu ia com a família passar pedaços das férias em Itatiaia ou Petrópolis. Eram os companheiros do 'lado de lá' de nossas esperanças e nossa vocação. Aos poucos eu comecei a ser educado, onde pensava que era pago para ser educador”.

Em suas andanças você era um verdadeiro pesquisador de campo, atento aos mínimos detalhes, e deixando-se comover pelas festas, folias, congadas que encontrava pelo caminho. As canções, os cantos, as danças, os provérbios, os modos de fala, tudo vinha recolhido com um carinho especial, servindo de matéria viva para as suas pesquisas, livros, aulas e reflexões. Você, amigo, trouxe para todos nós essa presença viva do mundo popular.

Foi no interior de Goiás, desde 1964, que você começou a viver a grande transformação interior, quando deixou-se habitar, sem reservas, pelos “deslumbramentos” do canto do povo e do canto das coisas. Não havia dia ou noite que estivesse fora de seu repertório de ouvinte atento, na comunhão com as folias de Santos Reis, com as Catiras e Congados. Você sabia ouvir dos mestres da religião o aprendizado essencial, que não está nos livros. E captava as lições essenciais: “É seu doutor, quem não sabe escreve, quem sabe dança”. Essas e outras tantas lições que fizeram de você um pesquisador diferente, domiciliado na academia com um jeito diferente de ser, que também causava perplexidade entre os pares, mas você estava muito além da espuma superficial das águas, viajando pela nervura do real.

O seu trabalho de base em Goiás, junto com Dom Tomás e Eliseu Lopes, fez história, trazendo os dados essenciais que marcaram a vida das CEBs, com sua devoção encarnada na luta de transformação social. Vejo você, amigo querido, como alguém que ajudou profundamente a nós estudiosos das CEBs, a entender a complexidade do mundo da religião. Você dizia em sua tese doutoral, sobre Os deuses do povo, que não há melhor caminho que entender a cultura popular senão através da religião e da sabedoria popular. Você nos ajudou a montar o “mapa do sagrado”, o campo religioso brasileiro, com todas as suas peculiaridades e sincretismos.

Recordo-me com emoção sua presença bonita no grupo de catolicismo do Instituto de Estudos da Religião (ISER), que ajudou a fundar. Foi no ISER que nos conhecemos, quando eu fazia o mestrado em teologia na PUC, e junto com Inácio Neutzling, e outros colegas, participávamos das reuniões do ISER. Isso foi no fim da década de 1970. Foram encontros de beleza única, quando você deu uma contribuição essencial aos estudos do catolicismo. Na obra coletiva organizada por Pierre Sanchis sobre o catolicismo (Loyola, 1992), o seu brilhante artigo sobre "Crença e identidade" abriu um dos três volumes. E que beleza a sua reflexão sobre o crer, o praticar e o participar na vida do catolicismo. Foi uma perspectiva nova que se abriu para entender o campo religioso católico.

Lembro também de sua participação em diversos encontros do CESEEP, e em suas contribuições preciosas em mais de um curso de verão, como no Curso do Ano VII, onde você trabalhou o tema das Muitas moradas: crenças e religiões no Brasil de hoje, e que depois se transformou num lindo livro onde você monta o mapa das religiões no Brasil. Nas suas mãos e no seu coração, as religiões sempre ocuparam um lugar de destaque e de respeito.

Não há como citar seus inumeráveis livros, sobre temas diversificados, como folclore, educação popular, religiões no Brasil, religiões populares, campo religioso brasileiro. Sua tese doutoral, defendida da USP, Os deuses do povo, foi publicada inicialmente pela Editora Brasiliense em 1980, ganhando depois uma linda edição integral em 2007, em publicação da Editora da Universidade Federal de Uberlândia (EDUFU). No prefácio, a presença de José de Souza Martins, que deu continuidade à orientação doutoral de Brandão, depois da morte de Douglas Teixeira Montero, seu orientador inicial.

Era um apaixonado, como eu, pelo Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Esse era um dos segredos de nossa amizade. Como Rosa, Brandão aprendeu muitos enigmas do mundo popular, e da experiência religiosa multicolor de Riobaldo Tatarana, bem como das histórias maravilhosas de Manoelzão. Brandão escreveu um livro lindo a respeito: Memória sertão: cenários, cenas, pessoas e gestos nos sertões de João Guimarães Rosa e de Manuelzão (Uberaba: Editora Cone Sul, 1998). Abria o livro com uma linda passagem de Rosa: “Mas, onde é bobice a qualquer resposta, é aí que a pergunta se pergunta” (GSV). No livro, Brandão recolheu para nós passagens sublimes que a ele tocaram de modo particular, e as foi separando e transcrevendo para o nosso deleite. Sua paixão por Goiás, encantadora, aprendeu também com Rosa que um dia disse: “O senhor vá ver, em Goiás, como no mundo cabe mundo”. Brandão recorda que leu essa passagem e com ela comoveu-se. Levou-a consigo “vivendo e voltando dos sertões de lá, de Goiás”, onde foi se casar e onde viveu “longos anos inesquecíveis”.

Foi motivo de imensa alegria ter você presente na banca de doutorado de Flávia Amaro, em julho de 2007, onde ela abordou com preciosidade o tema dos Os deuses do outro. Antropologia e Ciência da Religião: uma revisita à obra de Carlos Rodrigues Brandão. Foi uma linda defesa, e ainda mais, uma celebração de amigos queridos, com você e Regina Novaes na banca, num trabalho considerado exemplar.

Você passou por momentos difíceis na experiência pessoal de fé, com dúvidas que são comuns a todos nós. Mas conseguiu entender com clareza, que o mais fundamental na experiência cristã não são os “penduricalhos” dogmáticos, mas o seguimento de Jesus. Quando você ouviu de Eliseu essa reflexão sobre o miolo verdadeiro da fé, você ficou ainda mais livre para trilhar o seguimento de Jesus e o caminho do evangelho da forma mais bonita como o povo vive.

Nós dois sabemos de segredos bonitos que marcaram a sua trajetória final. Nos correspondíamos com frequência, e quando a dor serenava, você escrevia para mim e nos correspondíamos partilhando nossos sonhos e dores. Você me dizia com alegria única que estava agora, nesse tempo derradeiro, descobrindo os meandros da fé a partir da releitura de Teilhard de Chardin. Numa de suas últimas mensagens, me disse: “Dedico os momentos que posso para reler tudo o que puder de Teilhard de Chardin. Entre todos, é quem melhor me faz compreender o sentido da vida. E o da morte”. Com Teilhard você encontrou a coragem decisiva para dar o passo da travessia.

Carlos Rodrigues Brandão. (Foto: Instituto Tear)

Em tempos recentes, fizemos uma linda experiência com os alunos do PPCIR da UFJF, com um curso diferente, onde as pessoas foram convocadas a escrever sobre as razões de suas crenças e seu temores. Por uma semana de intensidade única, fomos tecendo juntos esse universo das experiências diferenciadas de fé ou descrença. No último dia, na Faixa de Gaia, todos pudemos partilhar nossas reflexões tecidas e vividas durante a semana. Foi um dia de emoção única, onde o choro se misturava com o sorriso e a vida mostrava a sua faceta mais fundamental. Você pode nos mostrar, com dom maravilhoso, sua densidade de pedagogo.

Depois do que ali ocorreu, nasceu a ideia do livro “Em que creio eu”, onde pudemos juntos recolher depoimentos de tanta gente bonita sobre a sua experiência de fé. Você dizia, com razão, que nós pesquisadores, somos especialistas em perscrutar a fé dos outros, mas não conseguimos expressar a nossa experiência pessoal. Com o livro abria-se um caminho novo, onde as pessoas, muitas delas surpresas, foram convidadas a partilhas suas experiências interiores.

Ao fim dessa tarde de luz, quando posso ainda uma vez conversar com você, gostaria de dizer, com alegria e lágrimas nos olhos, que pude viver uma experiência de profunda amizade. Fui brindado pelo dom de sua presença amiga, sendo correspondido por seu amor. Na mística, a gente encontra muitas experiências bonitas de amizade pura e singela, e sinto que nós dois participamos dessa embriaguez do mistério em nossas partilhas de vida.

No último poema que você partilhou comigo, e que logo encaminhei para as orações declamadas do IHU, você falava da morte, e de uma forma sublime e tranquila:

Morte

Quem és que me vens agora
nesta manhã do mês de maio
de um ano que o calendário apaga?
É ainda a noite. Então porque tão claro
é este instante em que te busco e acho nada?
Que vulto és, que tens a cor do vento?
Que ser? Se te toco e nada encontro,
e se caminhas, pelo chão não deixas rastro
e se quando falas eu não te entendo?
Te abro a porta, mas já antes estavas dentro
da sala em que te acolho, visita estranha,
que entanto entras como se tua fosse a casa
e no jardim fossem tuas a rosas e açucenas?
Te ofereço uma cadeira, não te sentas
e olhas na parede com agrado
uma cópia de um quadro de Van Gogh.
O pão que te dou deixas no prato.
Mas o vinho tinto aceitas e bebes, lenta.
Não sorris, mas é suave o que me tocas.
E com o dedo apontas um rumo, um destino,
uma trilha, um caminho, um horizonte
a uma viagem sem volta, sem retorno.
Visto o casaco e me armo de bengala.
Esqueço os óculos, um gato e a minha chave,
e de leve sussurras: “não importa”.
Apago no fogão o fogo e te olho, amiga.
E me tocas o braço e, sereno, eu abro a porta.

Quero aqui, amigo, partilhar com outros amigos, a última mensagem que tinha escrito para você, depois de ter lido o seu poema sobre a morte:

"Brandão querido,

O seu poema sobre a morte, que li hoje, é de uma beleza ímpar, e de uma serenidade que só é concedida aos grandes mestres. Saber lidar com a 'indesejada das gentes', dessa forma, é sinal de grande maturidade. Eu e você temos em comum esse dado existencial de termos ou estarmos vivendo situações-limite que são mesmo sérias.

Com a ajuda de meu terapeuta, pude perceber que essas experiências-limite são 'experiências cume', para usar uma expressão clássica de Abraham Maslow. É uma experiência que nos faz vivenciar paisagens únicas, de altura e profundidade incomensuráveis. Olhar o mundo a partir de tais experiência vivenciais é descobrir facetas de uma singularidade única. Somos capazes de perceber, como disse Darwin, 'infinitas formas de grande beleza'.

Você escolheu um ótimo companheiro de jornada para lidar com esse limite último, que é Teilhard de Chardin. Ele também tem me ajudado muito. A viagem interior com ele, fica bem mais calma, porque ao fundo ouvimos soar com vigor a voz de Jesus “Coragem, não tenhas medo!”.

Quando Teilhard aborda o tema da comunhão pela diminuição, no Meio Divino, ele nos ajuda a entender esse trabalho que ele faz de forma tão viva: Compreender que a diminuição da temperatura vital é fruto do Mistério que abre o nosso corpo e nos favorece beber na água mais límpida. O Divino que abre as fibras de nosso ser “para penetrar até as medulas” de nossa substância, de forma a favorecer o arrebatamento final.

Aprendi também, amigo, como o monge Tich Nhat Hanh, que fala da morte tratando o tema da nuvem. Por mais que se transforme e modifique, a nuvem jamais morre. Ela vai se transformar em outra coisa, mas vai permanecer. Nós também somos como a nuvem, que nunca se dispersa, mas apenas ganha feições nobres e diferenciadas. Não há nada que se transforme em nada, mas “algo” sempre permanece e continua a fazer história no tempo. Gosto de uma reflexão que faz Donna Haraway, quando diz que é um ser da lama e não do céu.

É o que nos recordou tão brilhantemente o papa Francisco na Laudato si', logo no início quando fala que nós somos 'terra', constituídos pelos elementos do planeta. Da Terra viemos e para a Terra vamos, numa viagem linda que vai florescer de formas diversificadas como somos todos nós. O mesmo Tich Nhat Hanh nos lembra que 'sem lama não há lótus'. Saibamos viver isso em profundidade.

Vejo, amigo querido, com cada vez mais clareza que não somos, definitivamente, diferentes de tudo o que nos rodeia. Na verdade, diz com propriedade o filósofo italiano Emanuelle Coccia, de que tenho gostado muito, 'a morte é apenas o limiar de uma metamorfose'. Ele diz:

'Todos os nossos átomos deram um corpo a milhares de vida antes da nossa – humanas, vegetais, bacterianas, virais, animais – e darão realidade a outras numa dança que nunca poderá ser interrompida'.

E viva a vida em comunhão com o cosmos".

Faustino Teixeira.

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