08 Novembro 2023
A dominicana Véronique Margron fala com uma clareza como nenhum outro sobre os abusos cometidos na Igreja Católica Francesa. O que a faz ficar?
A reportagem é de Christine Longin, publicada por Zeit, 06-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
De vez em quando Véronique Margron tira as sandálias cinzas e põe o pé descalço na mesinha à sua frente. Não porque esteja com calor. Mas porque quer ficar confortável quando se trata de conversar sobre o tema mais incômodo e doloroso da Igreja Católica: os abusos sexuais. Em seu amplo escritório em Paris, rue de Vaugirard, a presidente da União das Religiosas Francesas (Corref) ouviu centenas de vítimas de abuso nos últimos anos. Não passa semana sem que seja adicionado um novo relatório chocante. A mulher pequena e enérgica com óculos redondos é uma boa ouvinte. Não interrompe, fica concentrada sentada no sofá e não olha para o grande relógio em cima da mesa nem para o celular. O Le Monde definiu como “o rosto compassivo da Igreja Católica” essa mulher de 65 anos, cujo trabalho se centra especialmente no tema da violência sexual. Depois de sua eleição como presidente da Corref em 2016, ela foi uma das primeiras pessoas a reconhecer que apenas especialistas independentes poderiam analisar o escândalo dos abusos.
Poucos meses depois decidiu-se criar a comissão independente para a investigação dos abusos sexuais na Igreja Católica Francesa (Ciase).
Quando a dominicana fala sobre o tema dos abusos, se pode sentir o quanto esteja irritada. Um padre que violou durante anos mulheres ela o chama de "porcalhão". “Dá vontade de surrar”, diz ela comentando outra terrível história que certo dia um homem lhe contou. Mas Véronique Margron não bate. Ela entra em ação, ou seja, procura um advogado para uma vítima, para outra procura contato com um bispo ou um psicólogo. “Não basta mostrar o rosto compassivo da Igreja. Algo deve ser feito."
Por que as pessoas escolhem procurá-la? “Acho que a maioria delas conversa comigo porque não correspondo à imagem do autor do crime." A maioria dos crimes de abuso na Igreja Católica são cometidos por homens. Então, o fato de ela ser mulher tem um papel decisivo. Além disso, é verdade que Margron tem um cargo eclesial, mas não representa a hierarquia. Ao contrário de um bispo, a suspeita de ter encoberto crimes ou escândalos não recai sobre ela.
Muitas das vítimas que a procuram já bateram a outras portas anteriormente. Margron pensa que a sua biografia também a ajuda a abordar a questão dos abusos na Igreja sem preconceitos. Quando criança, ela cresceu em um ambiente distante da Igreja. Seus pais, que se separaram, eram ambos não crentes. “Hoje considero uma sorte não ter frequentado nenhum ambiente católico".
Margon chegou à religião através do estudo de psicologia em Tours quando entrou em contato com estudantes católicos engajados. Uma série de encontros a levou a uma comunidade de dominicanas, “mulheres que tinham uma vida realmente interessante e profunda”, conta. Depois de se formar, trabalhou para o Ministério da Justiça como psicóloga com menores infratores.
Ao mesmo tempo, começou a estudar teologia. Seus colegas viam com desconfiança a sua nova religiosidade. “Alguns eram ateus e pensavam que eu tinha caído vítima de uma seita.” A crítica externa ajudou-a a analisar criticamente a sua fé desde o início. Sem idealizar demais a sua vida religiosa, aos 24 anos ingressou na ordem dominicana. E depois se tornou teóloga moral e em 2004 foi a primeira decana de uma faculdade de teologia.
Até à sua eleição como superiora geral das cerca de 150 freiras dominicanas na França em 2013, o seu percurso havia sido de tipo acadêmico. Ela se viu confortada com o pesado escândalo dos abusos somente quando, três anos depois, foi colocada à frente da Corref, com seus 20 mil membros. Foi o período em que a Igreja Católica da França vivia o seu primeiro grande escândalo.
Ao então bispo de Lyon, Philippe Barbarin havia criticado ter encoberto durante anos um padre que abusava de jovens escoteiros.
Então Margron recebeu muitas cartas de vítimas cujas vidas haviam sido destruídas pela violência sexual. “Deparamo-nos com um panorama de horror que para mim era inimaginável.” Logo entendeu que não se tratava apenas de histórias individuais, mas que toda a Igreja era afetada por isso. E que estava lidando com um duplo escândalo: o abuso e o silêncio sistemático, conivente.
A religiosa sentiu-se abismada. “Não só porque tínhamos poucos meios, mas também porque como parte da Igreja estávamos bem no meio de tudo." Por isso convocou especialistas de fora da Igreja que recomendaram a criação de uma comissão independente.
No dia 5 de outubro de 2021, a Ciase apresentou seu apreciado relatório, cujos dados eram assombrosos: estimava-se que 216 mil crianças haviam sido vítimas nos 70 anos anteriores de abusos cometidos por padres ou religiosos. O número de vítimas aumentava para 330 mil se os leigos fossem incluídos entre os perpetradores - por exemplo, em institutos ou acampamentos de verão. “A Comissão chegou a uma única conclusão: a Igreja não queria ver, entender nem ouvir os fracos sinais”, disse o presidente da Comissão Jean-Marc Sauvé.
Véronique Margron juntamente com o presidente da Conferência Episcopal Francesa Eric de Moulins-Beaufort, recebeu a pilha de documentos de 3.000 páginas. Visivelmente angustiada, fez um breve discurso sobre os resultados do relatório. “Como podemos nos recuperar desse golpe? Não sei".
Nos meses e anos seguintes deu inúmeras entrevistas sobre o tema, nas quais profere palavras claras como ninguém que tenha um cargo eclesial na França. Ela se tornou não apenas o ouvido, mas também a voz das vítimas. Quando o cardeal e presidente emérito da Conferência Episcopal, Jean-Pierre Ricard, confessou nos últimos anos o abuso de um menor, dirigiu-se à opinião pública descrevendo a vítima de quem cuidava. “O trauma que aquela mulher sofreu é extremamente forte”, disse Margron na rádio. É “moralmente impensável” que depois de tal crime ele ainda possa participar na eleição do papa.
O jornalista Jérôme Cordelier escreve no prefácio do livro de Margron “Un moment de vérité”: “Pela primeira vez sinto que uma voz, que tem um peso na Igreja francesa, aceita com plena sinceridade uma realidade que foi negada por muitos dos seus colegas”. E mais adiante: “Uma religiosa disposta a lutar com honestidade diante do indizível”.
Mas o trabalho diário na linha de frente demanda muita força à dominicana. As histórias que ela ouve pesam sobre ela. “Sou habitada por toda uma população de vítimas, centenas de rostos de vítimas”, diz ela.
Quase todos os dias tem a impressão de que não conseguirá mais resistir por muito tempo. “Mas eu sei que tenho que ir em frente, independentemente das minhas capacidades psíquicas ou espirituais. Minha responsabilidade moral está em jogo."
A freira encontra apoio na comunidade de suas coirmãs em Paris. É claro que não fala com elas sobre os casos de abuso, mas conviver com outras pessoas e rezar juntos é bom. “Caso contrário, não sei como teria conseguido.” Ela se define como uma “freira sortuda”.
Embora faça uma distinção entre celibato e escândalo dos abusos, pede para repensar, para o futuro, o celibato de padres e religiosos. São necessárias reformas em muitas áreas. Mas, na sua opinião, mesmo em questões como a ajuda à morte, a Igreja só será credível quando tiver reelaborado completamente o escândalo dos abusos e introduzido as reformas necessárias. “Quem traiu o Evangelho? Justamente a Igreja. Portanto, é ela quem deve agora reparar."
Tanto quanto é dura com a instituição, forte permanece a sua fé em Deus, que em Cristo mostrou a sua solidariedade com os sofredores. Seu discurso após a entrega do relatório sobre os abusos terminou com uma citação do escritor Georges Bernanos: “A esperança é a maior e mais difícil vitória que o homem pode alcançar para a sua alma. Só pode ser alcançada por meio da verdade – e com grandes esforços.”
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Igreja Católica na França. Em nome da esperança - Instituto Humanitas Unisinos - IHU