No dia 18 de fevereiro, entrevistamos a Ir. Véronique Margron, presidente da Conferência dos Religiosos e das Religiosas da França (CORREF). Juntamente com o presidente da Conferência Episcopal francesa, D. Eric de Moulins Beaufort, a Irmã Margron recebeu de Jean-Marc Sauvé, presidente da Comissão independente sobre os abusos sexuais na Igreja (CIASE), o conhecido Relatório sobre os abusos. Doutora em teologia moral, primeira mulher decano da faculdade teológica, é presidente dos religiosos desde 2016.
A entrevista é editada por Lorenzo Prezzi, publicada por Settimana News, 22-02-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Como a senhora avalia a recepção do relatório da CIASE (Comissão Independente sobre os Abusos Sexuais na Igreja) na opinião pública e na Igreja francesa?
O que chama a atenção de imediato é que o relatório foi objeto de enorme cobertura da mídia em todo o mundo. Na França todos os jornais e todos os meios de comunicação falaram sobre isso e foi muito importante. Na verdade, permitiu que outras vítimas, que não tinham conhecimento do trabalho da CIASE, aparecessem e falassem. Hoje temos muitas vítimas que nunca haviam falado com a Igreja que se apresentam graças à publicidade recebida pelo relatório da CIASE.
Eu diria que o relatório teve uma boa recepção na opinião pública. Na França, o trabalho da CIASE, juntamente com uma série de publicações de autores importantes, convenceu o Estado a criar uma comissão independente sobre o incesto e as violências sexuais contra menores (em contextos como família, esporte, escola), que adotou exatamente o mesmo método de trabalho.
A recepção foi, portanto, importante e muitas pessoas - incluindo alguns políticos - agradeceram à Igreja Católica por ter sido capaz de realizar este passo. Apreciaram a coragem e sobretudo o fato de terem tornado público tudo, sem qualquer filtro, desde o mandato de Jean-Marc Sauvé até à totalidade do relatório e seus anexos. Pode-se dizer que a Igreja tanto experimentou uma grave (e legítima) perda de credibilidade como instituição (em face da enormidade dos números que apareceram), mas ao mesmo tempo ganhou crédito moral junto à opinião pública por ter sido capaz de realizar este trabalho. O próprio Sauvé reconheceu repetidamente que recebeu da Igreja uma total liberdade de ação, raramente experimentada antes em sua carreira.
Para a maioria dos católicos pode-se dizer o mesmo: o relatório é considerado incontestável tanto por seu rigor metodológico quanto por seus resultados. Há apenas um grupo minoritário, mas bastante ativo, que continua a falar de um complô contra a Igreja e a afirmar que a realidade dos abusos sexuais é uma questão de abusadores individuais, e não também um fenômeno institucional.
Qual foi a relação entre a CEF (Conferência Episcopal da França) e a CORREF (Conferência dos Religiosos e das Religiosas de França) com a comissão e que diferenças de avaliações e interesses havia entre a CEF e a CORREF? Isto é, se houve tensões entre a comissão Sauvé e quem encomendou o relatório e se tiveram divergências de opinião e interesses entre bispos e religiosos.
Por parte da CORREF, há vários anos vinham sendo organizadas sessões de formação sobre o tema das violências sexuais, dos traumas da vítima, dos abusos espirituais, da submissão e do abuso de poder. Procurou-se sensibilizar o mundo dos religiosos para o trabalho da CIASE, tanto que Sauvé foi muito bem recebido nas assembleias gerais da CORREF para as quais foi convidado a fazer um balanço sobre os trabalhos e do que estava surgindo.
Criou-se assim um amplo consenso que facilitou o acordo sobre as resoluções necessárias. Por exemplo, nós religiosos votamos para reconhecer a “responsabilidade coletiva” pelo fenômeno dos abusos bem antes de receber o relatório final (em novembro de 2020). Talvez estivéssemos mais bem preparados e com isso houve menos resistência em tomar decisões essenciais de forma mais coerente e unânime.
A conferência dos bispos teve que fazer seu próprio caminho. Para muitos deles era inconcebível que uma comissão independente tivesse tamanha amplitude e autoridade. O próprio presidente, D. Eric de Moulins Beaufort, ficou sensibilizado com o trabalho e processos da CIASE. As reuniões trimestrais com a CIASE permitiram tomar consciência da extensão do fenômeno e do fato de que deveria ser tratado de forma independente e rigorosa. O próprio D. Moulins Beaufort recebeu e ouviu numerosas vítimas. E isso nos mudou profundamente. Assim, aos poucos, a responsabilidade coletiva e a natureza sistêmica dos abusos puderam ser enfrentadas com veracidade e por fim votadas pelo plenário de novembro de 2021.
Assim, nossas duas assembleias puderam decidir sobre a criação de comissões independentes de reconhecimento e reparação, a fim de acolher as vítimas e encontrar com elas as possíveis reparações pelo mal irreparável que sofreram. Hoje pode-se dizer que sobre a questão da responsabilidade coletiva a CEF e a CORREF têm a mesma orientação e trabalham juntas em numerosas recomendações da CIASE.
Como a consciência da corresponsabilidade foi alcançada nos institutos religiosos, atingidos de forma diferente pelos abusos nos institutos masculinos e femininos.
A questão da responsabilidade dos institutos masculinos e femininos foi tema de forte discussão durante a assembleia de abril passado. O trabalho da CIASE tornou-nos mais sensíveis à questão da responsabilidade pelas vítimas de abusos e à necessidade de prestar contas. Reconhecer a responsabilidade coletiva não é fácil para um instituto feminino. Descobrimos que entre nós muitas vezes há freiras que foram vítimas de abuso. Então, como reconhecer-se responsáveis?
Foi possível votar em conjunto esta afirmação de uma responsabilidade coletiva por três motivos. Em primeiro lugar, por uma questão de solidariedade. Dentro da CORREF, ouvimos um apelo dos religiosos dos institutos masculinos para apoiá-los em seu caminho. Além disso, estamos conscientes de que nós todas participamos do mesmo clima eclesial que favoreceu o silêncio, a sacralização do padre, o medo do escândalo.
Um clima que impôs silêncio sobre os abusos nos chama a reconhecer uma responsabilidade, ainda que não seja a mesma de parte das mulheres em relação aos homens, mas que existe. Além disso, há abusos de poder cometidos por mulheres, de forma semelhante aos homens. E ainda agressões sexuais. Em suma, não se pode dizer que ninguém está livre ou a salvo dos crimes. Por estas razões foi possível votar em conjunto e por unanimidade pelo reconhecimento da responsabilidade coletiva dos religiosos, homens e mulheres.
Como a senhora avalia as críticas de alguns expoentes da Academia Católica francesa ao relatório da CIASE? Criou dificuldades para vocês religiosos e para os bispos?
Considero totalmente contraproducente a posição tomada pela Academia Católica. Os oito membros interessados têm uma rede de relações que, sem dúvida, lhes permitiu influenciar a Santa Sé e fazer o papa renunciar à audiência prevista para a CIASE. Mas no que diz respeito à opinião pública na França, incluindo aquela católica, de forma alguma invalidou a confiança no trabalho da CIASE e os resultados de seu relatório.
Esses acadêmicos, aliás eminentes, partem de um pressuposto: a CIASE e seus membros não tinham legitimidade para essa missão e queriam o mal da Igreja. Partindo de tal pressuposto, tentaram demonstrá-lo, destacando fragilidades metodológicas, filosóficas e teológicas do relatório. Mas seus argumentos são muito fracos e acabaram por apresentar esses acadêmicos como um grupo de conservadores que não querem encarar a realidade.
Alguns membros da CIASE responderam imediatamente às críticas de forma pontual e científica, começando pela questão dos números potenciais de vítimas. Por fim, foi publicada uma resposta sistemática e precisa assinada pelo próprio Jean-Marc Sauvé, acompanhada de contribuições de especialistas que validavam o trabalho da CIASE. Acredito que no final, para a Igreja da França e para a opinião pública francesa, foram os acadêmicos católicos que ficaram mal e não o trabalho da comissão. Além, é claro, de algumas correntes minoritárias que encontraram conforto para suas posições nas críticas da Academia. Até o momento, entre 25 e 30 membros da mesma Academia Católica (em cerca de cem) renunciaram por causa dessas críticas.
Quem enfrentará o problema das teologias que “justificaram” os abusos? Quem aprofundará essas formas ambíguas de elaboração do ponto de vista teológico?
Um grupo de teólogos e historiadores foi designado para trabalhar com os dominicanos. Um segundo grupo trabalha no Arche e um terceiro com os Irmãos de Saint-Jean. Eles trabalham principalmente nos arquivos dos irmãos Philippe e de Jean Vanier.
Seguindo as recomendações do relatório da CIASE, nós religiosos e os bispos criamos grupos de trabalho dedicados a questões teológicas muito específicas; outros para questões de governo; outros para questões formativas e pastorais.
Uma comissão de biblistas e teólogos nomeadas pela CORREF está trabalhando sobre o tema dos carismas, para reconhecer se e como uma “árvore ruim” possa dar bons frutos. As comissões doutrinárias também estão empenhadas em temáticas de teologia moral e sobre o tema da sexualidade.
É realmente necessário ouvir as vítimas como primeiro passo?
Absolutamente sim. Sem ouvir as vítimas, não se vai a lugar nenhum. Parece um slogan dizer que "as vítimas são os mestres", mas é a verdade. Porque só elas podem contar a realidade de seu trauma; só elas podem dizer a diferença entre o mal cometido e o mal sofrido. O mal feito pelo agressor pode ter sido cometido apenas uma vez, ou até cem vezes, mas é "passado" (tem uma data). Mas o mal sofrido pelas vítimas é para toda a vida.
Somente as vítimas conhecem essa diferença e só elas podem falar sobre isso. Nós o estudamos e ouvimos; elas o conhecem na carne. Inclusive do ponto de vista teológico, elas levantam as questões a serem abordadas. Não têm as respostas - como o governo da Igreja deve mudar para superar a prática do silêncio, ou como a teologia do ministério ou da formação deve ser repensada... - mas elas conhecem as verdadeiras questões "carnalmente".
As vítimas são histórias e rostos insubstituíveis. E é inegável que a grande força do trabalho da CIASE foi de ter partido da escuta das vítimas. E depois ter estado em constante contato e diálogo com elas, com suas associações, até a composição e redação do relatório. A comissão sobre o incesto e as violências contra menores (CIIVISE) faz exatamente a mesma coisa: está ouvindo as vítimas.
O saber experiencial de quem foi vítima de abuso é fundamental. Caso contrário, corre-se o risco de não se perceber a profundidade do drama vivido, considerando o dossiê abusos certamente grave, mas um entre muitos.
A senhora compartilha da remoção do segredo confessional?
A questão do sigilo confessional, como sabem, foi objeto de discussões muito fortes. Parece-me que a verdadeira questão não seja remover ou não o segredo da confissão, mas afirmar uma hierarquia de valores. De fato, está em jogo a defesa da integridade de uma criança. Se uma criança está em perigo, nada pode ser superior à proteção que lhe devemos. Esta é a questão.
A questão, portanto, não é remover o segredo. Mas evitar o risco de que, devido ao sigilo, um novo crime possa ser cometido contra uma vítima vulnerável. O relatório da CIASE mostra uma analogia com o que prevê o direito francês e a deontologia de um psiquiatra pediátrico. O psiquiatra pediátrico que recebe de uma criança a denúncia de uma agressão sexual (do pai ou de um irmão) não é obrigado, mas está autorizado a violar o sigilo profissional para proteger a vítima.
Trata-se de uma questão de perigo iminente, portanto diferente do caso da confissão de um adulto sobre violências sofridas na infância. Além disso, uma criança que diz a um padre em confissão que seu pai - ou um padre – lhe fez um mal não está confessando um pecado, mas está fazendo uma terrível confidência. Consequentemente, do ponto de vista moral, a questão do sigilo não se coloca porque não se trata do pecado da criança, mas do crime de um adulto contra ela.
Em casos como este e unicamente em relação a uma situação de perigo iminente, acredito que hoje na França todos concordam em afirmar a proteção da criança em perigo como primária.