22 Mai 2019
Estudantes universitários dos Estados Unidos oferecem novas reflexões sobre a crise dos abusos sexuais no clero.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado em La Croix International, 21-05-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Cita-se Santo Agostinho ao dizer que “se aprende ensinando” – docendo discitur. Isso nunca foi mais verdadeiro para mim do que durante o semestre passado, quando lecionei uma disciplina de graduação sobre a crise dos abusos sexuais na Igreja Católica.
Minha turma incluía 30 estudantes com idades entre 21 e 22 anos, a maioria dos Estados Unidos. Havia uma mistura de homens e mulheres prestes a se formar em uma variedade de campos, da Biologia às Ciências Políticas. A maioria deles eram católicos, mas havia uma minoria substancial de não católicos e até mesmo de não cristãos. Quase todos admitiram estar enfrentando a “questão-Deus”, assim como o significado da Igreja.
Eu aprendi muito enquanto preparava minhas aulas, principalmente a partir da leitura dos materiais acadêmicos que integraram e sistematizaram o nosso conhecimento sobre os vários aspectos da crise dos abusos a partir de um ponto de vista histórico e teológico.
Foi uma experiência remanescente do meu primeiro ano de estudos na Universidade de Bolonha em 1989. As aulas dos meus cursos sobre história europeia e mundial tiveram que ser mudadas quase que da noite para o dia desde a queda do Muro de Berlim em 9 de novembro daquele ano, bem no meio do semestre.
Lecionar História em novembro de 1989 provavelmente não era tão diferente de ensinar um curso sobre a crise dos abusos católicos hoje. A crise ainda está se desdobrando globalmente e agora está atingindo países onde as consequências não são apenas eclesiais, mas também podem se tornar políticas, como é o caso da Polônia.
Meu curso foi projetado com foco específico no abuso sexual de menores por parte do clero. A escolha do tema levantou múltiplas questões – metodológicas e éticas, em particular – que eu tentei antecipar em janeiro passado aqui no La Croix International.
Essa foi facilmente a experiência mais intensa que eu já tive de ensino em sala de aula – emocional, psicológica e teologicamente. Talvez porque vários eventos importantes referentes à crise, na realidade, ocorreram no meio do semestre. Eles incluíram a extraordinária cúpula vaticana (em fevereiro), a condenação do cardeal australiano George Pell a seis anos de prisão por abuso sexual (em março) e a publicação do longo e controverso artigo de Bento XVI sobre as raízes da crise dos abusos (em abril).
Mas, acima de tudo, o curso foi bastante esclarecedor por aquilo que os estudantes tinham a dizer em aula e em seus trabalhos finais. Eles forneceram intuições importantes sobre aspectos da crise que eu nunca havia levado em consideração. Ler e falar sobre a crise lhes permitiu refletir sobre suas próprias experiências.
Isso também ajudou a desideologizar a atual controvérsia sobre a liberdade acadêmica nas universidades católicas. Algumas pessoas afirmam que a “ortodoxia liberal” da diversidade e da inclusão impede que os professores lidem com questões sensíveis em sala de aula. Esse curso provou que absolutamente não é assim.
Foi particularmente interessante aquilo que os estudantes, depois de quatro anos na comunidade universitária, escreveram sobre a relação entre as universidades católicas e a crise dos abusos sexuais. A impressão predominante entre eles é que as universidades católicas se distanciaram estrategicamente da Igreja ao lidar com a crise. Esta não é apenas culpa da Igreja, mas também a escolha deliberada das universidades.
“A nossa nação tem uma longa história de estudantes que se tornaram participantes importantes em movimentos sociais para ajudar a trazer mudanças positivas. Isso não vem ocorrendo dentro da crise dos abusos sexuais, porque as universidades atualmente não estão dedicando o tempo suficiente para educar seus alunos sobre o assunto”, escreveu um estudante.
Outro disse que isso não era um acidente, mas sim uma escolha deliberada. “A quantidade inadequada de conversa sobre esse assunto em muitos campi universitários católicos parece extremamente similar a esse sistema de acobertamento, no sentido de que a única entidade que se beneficia com isso são as próprias instituições de Ensino Superior católico, e não os estudantes ou os professores”, afirmou.
Meus estudantes viram as instituições católicas de Ensino Superior se distanciando conscientemente da Igreja institucional. Essa não é apenas uma estratégia legal ou de relações públicas. Ela tem também consequências eclesiológicas.
Como disse um estudante: “O modelo institucional nos últimos séculos serviu para dar aos católicos romanos um forte senso de identidade corporativa. Eu sinto que, na contemporaneidade, especialmente em relação à crise dos abusos sexuais, essa afirmação não se sustenta. Instituições e indivíduos católicos abandonaram seu forte senso de identidade corporativa em uma tentativa de se separar do sistema que perpetuou esse abuso”.
Há também fatores socioeconômicos em jogo no distanciamento do sistema universitário católico em relação à Igreja, que ocorre em um momento em que o Ensino Superior católico se esforça para encontrar maneiras de servir à população estudantil para a qual ela foi originalmente construída – os imigrantes pobres.
Um estudante viu esse embate também no modo como as universidades católicas lidam com a crise dos abusos: “Não é apenas a porcentagem significativa de estudantes que vêm de famílias abastadas que cultiva esse ambiente de distanciamento. As universidades católicas enraízam sua identidade na criação de um ambiente católico que existe à parte da realidade”.
Esse também é um problema para a liberdade acadêmica no campus, no sentido da disposição de abordar temas desconfortáveis na comunidade universitária. Um estudante observou que “as universidades católicas, assim como o padre no filme ‘Calvário’, parecem exalar um senso de distanciamento da crise. A maioria dos estudantes e às vezes até os professores não estão dispostos a discutir temas mais sensíveis ou questionar seus próprios pontos de vista”.
Estudar a crise dos abusos em uma sala de aula universitária também nos deu a oportunidade de refletir sobre as conexões entre uma teologia católica da pessoa humana e a crescente corporativização e mercantilização da educação superior.
“As universidades de todo o mundo têm esse dilema econômico de receber financiamento/recursos de uma fonte externa e, depois, ter que navegar na realidade das expectativas que vêm junto com isso”, escreveu um estudante. Isso tem um impacto sobre a disposição da universidade em lidar com a crise dos abusos.
Um outro estudante ecoou isso, dizendo: “As universidades católicas continuam relutantes em trazer seus recursos acadêmicos para lidar com a crise dos abusos sexuais, porque isso contradiz sua posição neutra. Eles provavelmente querem neutralizar o perigo de ser uma instituição católica em um século XXI cada vez mais secular”.
Nesse sistema, escreveu outro estudante, “as universidades católicas se transformaram em universidades politicamente mornas. Em questões de mudanças sociais, políticas e religiosas, permitiu-se que as faculdades ficassem em silêncio, em vez de se engajar em um discurso significativo”.
Isso não é apenas medo das consequências de levantar questões desconfortáveis. Existe uma conexão entre a corporativização da universidade e da Igreja que não se perdeu nos estudantes.
“As operações atuais das universidades católicas refletem a noção secular e moderna da eficiência, dos resultados quantitativos e da percepção pública. Desse modo, as universidades católicas norte-americanas refletem a mentalidade da Igreja na recepção inicial das acusações de abuso sexual cometido por clérigos contra menores”, escreveu um estudante.
De modo semelhante à Igreja escondendo o escândalo, nas universidades “existe uma obsessão com as métricas e os números no modo de conservar uma identidade católica, mas não tanto em programas e pesquisa”.
Um dos estudantes disse que a relutância das universidades católicas faz parte de um problema sistêmico mais amplo. “Eu acho que muitas universidades estão com medo de ir na direção do ensino social católico ou de incorporá-lo em vários cursos profissionais, porque não querem criticar o sistema”, afirmou o estudante.
Isso fica evidente ao lidar com a crise dos abusos como parte da crescente pressão sobre os currículos básicos e as artes liberais.
“Parece haver uma luta dentro das universidades católicas. Elas querem/precisam estar a par das outras universidades seculares, mas acabam evitando os cursos de ensino social católico em favor do cumprimento das exigências profissionais”, concluiu o estudante.
No fim do curso, lemos em sala de aula o famoso ensaio de Karl Rahner sobre a teologia da infância (publicado originalmente em 1963), que foi reexaminado com um importante e recente artigo do teólogo australiano James McEvoy [disponível aqui, em inglês].
Uma de minhas estudantes refletiu sobre a sua experiência ao ler sobre a teologia da infância à luz da crise dos abusos.
“As crianças estão em preparação para as provas já na escola primária, pressionadas para participar de atividades extracurriculares e para construir seus currículos, para se prepararem para seus futuros desde uma idade tão jovem. Todo ano é sempre apenas uma preparação para o próximo passo”, observou.
“Ao crescer, meus professores sempre diziam que cada ano me prepararia para o próximo, e para mim sempre se tratou de me preparar para a faculdade. Essas pressuposições sobre a [teologia da] infância são problemáticas no escopo da crise dos abusos, porque elas têm implicações muito reais para as crianças que crescem na Igreja.”
A crise dos abusos nos ajudou a redescobrir a teologia da infância de Rahner. E isso abriu os nossos olhos para um tipo equivocado de teologia da infância que permeia a cultura da performance, na qual as crianças são instadas, desde muito pequenas, a competir pela admissão nas melhores escolas.
O curso sobre os abusos sexuais na Igreja também teve um impacto sobre a experiência de fé de alguns dos meus estudantes. Um deles confessou que isso teve um peso sobre ela.
“Depois de passar um mínimo de três horas por semana discutindo a crise em sala de aula e lendo artigos sobre o abuso, foi difícil continuar participando da missa e vendo a Igreja sob uma luz favorável. Duvido que essa seja uma experiência incomum para outros estudantes nesta turma”, escreveu ela.
Mas alguns dos meus estudantes participaram, sim, da missa final do ano acadêmico. Eu não pude deixar de imaginar como essa liturgia foi diferente para esses estudantes que leram sobre a frequência com que os abusos sexuais cometidos por padres ocorriam em instalações da Igreja e perto do altar.
Se há uma coisa que eu aprendi com esse curso foi que as universidades católicas precisam se engajar com essa nova geração de fiéis que cresceram cercados de notícias sobre a crise.
“A Igreja do escândalo dos abusos é a única Igreja que conhecemos”, disse um dos estudantes.
O que é novo em comparação com os anos anteriores é que os estudantes notam que a crise dos abusos católicos é também uma crise teológica.
Foi isto que um deles observou: “Há uma batalha interna no catolicismo sobre as causas da crise dos abusos sexuais infantis. Alguns acreditam que a estrutura institucional, assim como os aspectos teológicos da Igreja Católica levaram ao abuso e aos impactos duradouros sobre as vítimas. Outros, no entanto, acreditam que a revolução sexual e o Vaticano II causaram a crise dos abusos sexuais. A geração de estudantes que atualmente frequentam as universidades católicas está no meio desse debate”.
Os estudantes observaram como a divisão em relação à crise dos abusos tornou-se uma brecha a mais na lacuna ideológico-política preexistente. Um deles referiu-se à polarização entre diferentes identidades católicas nos campi universitários.
“Ao longo destas aulas, examinamos o que parecem ser duas comunidades divergentes dentro da Igreja Católica. Uma é formada por aqueles que acreditam que a sociedade e as forças externas criaram mudanças que levaram à tragédia dessa crise. A outra é uma coleção de católicos que acreditam que a estrutura é a culpada e procuram reformá-la. Ambas estão presentes em todas as áreas da Igreja, e ambas estão confusas. Isso se manifesta nas comunidades dos campi universitários católicos”, disse um estudante.
Se as instituições católicas de Ensino Superior se limitarem a desenvolver e implementar boas práticas no campus, elas deixarão o campo livre para as diferentes forças que tentam tirar proveito da crise para uma agenda específica e idiossincrática. Essa é uma das grandes tentações não apenas para as lideranças hierárquicas, mas também para as faculdades e universidades católicas.
Encontrar uma saída para a crise dos abusos sexuais exigirá novas políticas e mecanismos para implementá-las. Mas também são necessários estudos sólidos sobre os vários aspectos do fenômeno e suas consequências para a Igreja.
No entanto, isso não ocorrerá sem a contribuição das universidades católicas. E a voz dos seus estudantes será crucial para isso. Eles têm muito a dizer para todos aqueles que estão nos diferentes lados daquela que é verdadeiramente uma crise teológica.
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''A Igreja do escândalo dos abusos é a única Igreja que conhecemos.'' Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU