09 Agosto 2023
Lideranças do povo indígena Tembé denunciaram ao Ministério Público Federal que estão sendo atacados desde sexta-feira (4) por seguranças da empresa brasileira BBF, maior produtora de óleo de palma da América Latina. Durante um conflito que ocorreu naquele dia, na aldeia bananal, município de Tomé-Açu, no nordeste do Pará, o indígena Kauã Tembé foi baleado com um tiro na virilha. Na manhã desta segunda-feira (7) outros três indígenas do mesmo povo foram atingidos por disparos de armas de fogo. Todos estão internados em hospitais da região e uma das vítimas está em estado grave na UTI.
A reportagem é de Cícero Pedrosa Neto, publicada por Amazônia Real, 07-08-2023.
O conflito acontece a 200 quilômetros de Belém, que é palco dos eventos que devem decidir os rumos da Amazônia nos próximos anos, a Cúpula da Amazônia, que tem o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), como anfitrião. Outros sete chefes de Estado da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) são aguardados para o encontro que começa amanhã (8).
No ataque desta segunda-feira (7), a indigena Daiane Tembé filmava do seu carro a ação dos seguranças da BBF contra o seu povo. Eles protestavam contra o atentado sofrido por Kauã Tembé. Ela foi atingida por disparos de arma de fogo no maxilar e no pescoço. Transferida em uma UTI aérea para Belém, seu estado de saúde é grave, segundo as lideranças.
“Gente, a Daiane está muito mal por causa que sangrou muito pela boca dela. Agora ela está no hospital e a gente está indo para lá. Eu peguei dois tiros, um no ombro e outro na coxa”, narra uma das vítimas em um áudio enviado à reportagem por lideranças Tembé.
Pylykape Tembé, irmão de Daiane, disse que assim que os indígenas se aproximaram da sede da empresa, os seguranças da Brasil Bio Fuels começaram a efetuar os disparos. “Nós fomos recebidos a tiro pela segurança da BBF. Minha irmã está em Belém gravemente ferida e a gente não sabe o que vai acontecer com ela”, disse. Felipe Tembé foi alvejado nas costas e, enquanto recebia atendimento médico, acabou sendo preso pela Polícia Militar e levado para o município de Castanhal (PA). Eliane Tembé, a terceira vítima, foi atingida com dois tiros na coxa e um no ombro. Kauã, baleado na sexta-feira (4), recebeu atendimento médico e não corre risco de morte.
Os ataques de seguranças da BBF ocorrem justamente quando indígenas de toda a Panamazônia pedem o fim da violência contra os povos e o respeito aos seus direitos em Belém, durante os eventos que precedem a Cúpula da Amazônia.
Em entrevista à Amazônia Real, a capitoa Miriam Tembé, uma das principais lideranças da região, explicou que “o que aconteceu é que a história se repete: as comunidades indígenas sendo atacadas pela BBF. E, dessa vez, foi um ataque bem mais violento. Nesse momento as comunidades indígenas e tradicionais estão aqui reunidas, se manifestando e pedindo providências do governo”, protestou.
O episódio desta segunda-feira ocorreu momentos antes da chegada de uma missão especial coordenada pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), que se dirigia ao município para apurar as violações de direitos humanos denunciadas pelos indígenas durante uma mesa paralela dos “Diálogos Amazônicos”.
Em nota, o CNDH informou que “o ataque teria sido motivado pela denúncia feita por um cacique no último dia 4 de agosto. Na ocasião, o cacique informou, em lágrimas, que seu filho, Kauã Tembé, “foi alvejado nas partes íntimas durante conflitos na região”.
Em vídeos divulgados nas redes sociais, pode-se ver cenas em que os manifestantes, revoltados com as recorrentes ameaças feitas por seguranças da BBF atearam fogo em maquinários da empresa.
“Eles querem matar nosso povo e estão mirando principalmente na minha família. Eu não aguento mais isso, a gente não suporta mais viver desse jeito”, declarou Paratê Tembé à Amazônia Real, poucos minutos após o ataque. Duas das vítimas, Daiane e Felipe, são irmãos de Paratê, que é uma das principais vozes contra a conduta da empresa na região.
O pai de Paratê, Lúcio Tembé, foi alvo de um atentado em maio deste ano, sendo atingido no maxilar. No caso de Lúcio, segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Pará, a tentativa de homicídio teria sido perpetrada por um traficante, preso três dias depois do ocorrido.
“Quantos indígenas precisam ser baleados ou morrer para chamar a atenção dos órgãos públicos para a responsabilização dos culpados pelos atentados e para garantir a proteção das comunidades indígenas do Alto Acará”, questionam em nota as associações indígenas do Alto Acará, com apoio de outras entidades e de movimentos sociais.
Procurada pela reportagem, a BBF culpou os indígenas e ainda os chamou de “criminosos”. “O Polo de Tomé-Açu, propriedade privada da empresa, composto pela Agrovila, Administração Geral e Áreas de Infraestrutura, foi invadido mais uma vez, na manhã desta segunda-feira (7), quando teve equipamentos incendiados e edificações destruídas por invasores indígenas”, disse a empresa em nota.
De acordo com a empresa, “cerca de 30 invasores armados ameaçaram e agrediram trabalhadores da empresa, antes de incendiar dezenas de tratores, maquinários agrícolas e edificações da companhia”. Sobre a ação das equipes de segurança, que resultaram nos disparos letais que atingiram Daiane, Eliane e Felipe També, a empresa disse que “a equipe de segurança privada da companhia conseguiu conter a ação criminosa dos invasores e resguardar a vida dos trabalhadores que estavam no local”
Até o momento não houve manifestação dos órgãos de segurança pública.
A delegação do CNDH, que permanece em Tomé Açu cobrando providências e atendendo as famílias das vítimas, teria sido impedida de acessar a via que liga a cidade aos territórios e às dependências da empresa. No relato da conselheira do CNDH, Virgínia Berriel, a rodovia estava fechada para impedir o acesso da delegação [às comunidades]. “É mais um ataque covarde aos direitos humanos, porque isso só aconteceu devido à nossa vinda ao local”, afirmou a conselheira.
A delegação do CNDH é composta por representantes da Organização das Nações Unidas, Fabíola Corte Real; a subprocuradora geral do Ministério Público do Trabalho, Edelamare Barbosa Melo; representantes da Human Rights, Comissão Pastoral da Terra, Redes de Liberdade e pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Também faz parte da comitiva a líder indígena Alessandra Korap Munduruku, que recentemente falou à Amazônia Real sobre a importância de se combater a violência contra os povos indígenas que lutam pelos seus direitos territoriais.
O CNDH encaminhou um ofício ao governador Helder Barbalho (MDB, solicitando uma reunião urgente para tratar sobre os episódios de violência narrados pelas comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas da região.
O clima de tensão permanece na região e as comunidades protestam em frente à delegacia de Tomé-Açu. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), que acompanha o caso in loco, uma viatura da Polícia Militar tentou atropelar um grupo de manifestantes.
Protesto em frente à delegacia de Tomé-Açu. Segundo os Comissão Pastoral da Terra (CPT), que acompanha o caso in loco, uma viatura da Polícia tentou atropelar um grupo de manifestantes | Foto: Amazônia Real/Reprodução redes sociais
O episódio desta segunda-feira se soma aos inúmeros casos de violações de direitos humanos e ambientais ocorridos na região, onde estão, cercadas por milhares de pés de dendê, a Terra Indígena Turé Mariquita (a menor em território do Brasil), do povo Tembé, com 13 aldeias; a TI Turyuara, que aguarda homologação e possui três aldeias; e seis comunidades quilombolas, reunidas em torno de uma associação, a Amarqualta, com cerca de 350 famílias. Os conflitos agrários na região estão ligados a décadas de invasões e grilagens dos territórios, cuja ocupação ancestral data de pelo menos 200 anos.
Os conflitos não são novos e se arrastam desde o tempo em que os imensos dendezais e as plantas industriais, que fazem fronteira com os territórios tradicionais e originários, pertenciam a Biopalma, empresa do grupo BioVale, que vendeu seus ativos para a Brasil BioFuels em novembro de 2020. Desde lá, segundo as comunidades, os conflitos se acirraram.
Em maio deste ano, o Ministério Público do Estado do Pará pediu a prisão do proprietário da BBF, Eduardo Schimmelpfeng da Costa Coelho, e do chefe de segurança patrimonial patrimonial da empresa, acusando-os de terem torturado de 11 pessoas, todas elas membros da comunidade tradicional Vale do Bucaia, no nordeste paraense. As acusações incluem, ainda, a destruição de casas, carros, caminhões e roubo de celulares dos comunitários. Em nota, a BBF nega a participação dos citados nos crimes apontados pelo MP do Pará.
Em setembro do ano passado, a BBF foi acusada de ter encomendado as mortes de um grupo de indígenas do povo Turyuara – cujo território também está no Vale do Acará –, no quilômetro 14 da rodovia PA-256. Na ocasião, um Gol vermelho com homens armados disparou contra dois veículos ocupados por indígenas. O motorista de um deles, Clebson Barra Portilho (não-indígena), morreu no local. No dia seguinte, a casa cultural do povo Turyuara foi incendiada. A BBF também negou envolvimento neste caso.
Em 2022, os indígenas protestaram em frente à BBF | Foto: Amazônia Real/Reprodução redes sociais
As violações de direitos humanos contra indígenas, ribeirinhos e quilombolas no Vale do Acará ficaram conhecidas mundialmente após serem retratadas em um relatório da ONG inglesa Global Witness lançado em novembro de 2022. Nele estão descritos o histórico de violências sofridas pelas comunidades, o modo como a segurança patrimonial da empresa atua para coibir a circulação das comunidades nos territórios.
No mesmo relatório, a ONG, além de apontar as violações das empresas, questionou seus clientes internacionais, conclamando-os a pararem de comprar da indústria, alegando os prejuízos socioambientais por elas causados na Amazônia e contra seus povos. Também recomendou que a União Europeia crie ferramentas de fiscalização sobre as cadeias produtivas que fornecem produtos para empresas sediadas nos países do bloco econômico. Kellogs, Hershey, Mondeléz, Pepsico e Unilever compram óleo de palma da BBF.
“Conclamamos todas as empresas que compram óleo de palma do BBF a rescindir imediatamente – e não apenas suspender – os contratos com a indústria, considerando que eles supostamente continuam realizando uma campanha de intimidação e violência”, diz a ONG em documento (Leia o relatório aqui). A multinacional Nestlé informou à Global Witness que deixou de comprar da BBF.
A BBF é uma das grandes apostas do governo estadual do Pará, sob comando de Helder Barbalho (MDB), no que diz respeito à bioeconomia e transição energética – temas centrais discutidos ao longo dos últimos dias em Belém, no âmbito dos eventos pré-Cúpula da Amazônia, e que também devem protagonizar os discursos na 4ª Reunião de Presidentes dos Estados Partes da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), a Cúpula da Amazônia.
Em evento ocorrido em Londres, este ano, Helder chegou a falar de um dos produtos da empresa, o biocombustível para abastecer aviões. A empresa busca ser referência na geração de energia limpa a partir do dendê. Cansados da associação da empresa com as políticas globais de enfrentamento à crise climática, os indígenas questionaram o executivo estadual e federal no último domingo (6), um dia antes do novo atentado ocorrer.
Na carta, assinada pelas associações indígenas do Vale do Acará, e endereçada ao governador Helde Barbalho e ao presidente Lula, os indígenas Tembé lembram que “não há justiça climática sem a proteção dos povos das florestas, centros urbanos, das águas e da terra”.
“Senhores, diferentemente do que prega, a BBF não promove sustentabilidade e não está preocupada em reduzir sua pegada ecológica, a menos que isso também tenha a ver com o genocídio dos povo […] não há transição energética e nem justiça climática sem justiça ambiental, agrária e territorial”, resumem as entidades.
“Vossas excelências não querem carregar a marca de uma falsa transição energética manchada com sangue indígena, quilombola e ribeirinho, afirmam os indígenas na carta, chamando atenção para o fato de que “não se pode falar em sustentabilidade e economia verde, sem antes cuidar dos povos da floresta”, alertam os Tembé, chamando a atenção para algo amplamente discutido durante a Cúpula dos Povos Indígenas pelas delegações indígenas dos nove estados da Amazônia Legal e de países que compõem a Panamazônia: a urgência do diálogo e da escuta ativa dos povos.
Clima de tensão permanece na região | Foto: Amazônia Real/Reprodução redes sociais
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Lideranças Tembé acusam seguranças da BBF de ataques no Pará - Instituto Humanitas Unisinos - IHU