26 Abril 2023
"Hoje, o processo de desclericalização das estruturas eclesiais é bloqueado por um conservadorismo que não poupa nenhum dos vértices da Igreja", escreve Salvo Coco, em artigo publicado por Settimana News, 21-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A vida cotidiana dos primeiros cristãos inspirava-se no que hoje podemos chamar de ontologia batismal dos cristãos, ou seja, a igualdade fundamental de todos os batizados e sua participação no tria munera cristológico. Do que se trata?
Todos os christi fideles participam da realeza, do sacerdócio e do magistério profético de Cristo. No novo caminho inaugurado por Jesus, todos os cristãos são reis, sacerdotes e profetas. O que isso significa? Quais são as características profundas e inovadoras desses títulos cristológicos?
Considerando que ser cristão é mais uma prática de vida, um testemunho, do que uma adesão a uma doutrina pré-estabelecida, é necessário redescobrir tal testemunho originário e fundador. Como praticar a realeza de Cristo em vida? Como exercer o sacerdócio? E o magistério profético?
O Espírito Santo vem em socorro. É Ele, o grande desconhecido, "quem é o Senhor e dá a vida" que vivifica através dos carismas, dos dons que derrama nos cristãos. Na Igreja primitiva, esses dons eram inumeráveis e diferentes entre si. E eles eram doados a todos. Não havia cristãos privilegiados que sequestram para si os dons do Espírito.
Ele é livre e sopra onde quer (mesmo fora da Igreja, mas este é outro discurso) e doa os Seus dons a quem quer, em total liberdade. No entanto, esses carismas precisam ser reconhecidos e é necessária uma comunidade receptiva, atenta ao discernimento. Uma Igreja comunial onde seja reconhecida a igualdade fundamental de todos os batizados no Povo de Deus é uma Igreja pronta a acolher os dons, uma Igreja que sabe reconhecer e discernir os dons e uma Igreja que sabe colocar os dons carismáticos ao serviço.
A característica peculiar dos carismas do Espírito é que eles são colocados a serviço da comunidade. Não há dom espiritual que não seja uma fraterna diakonia voltada para edificar a comunidade. Todo carisma é destinado ao serviço eclesial, não é para si próprios, mas para o bem comum. Não é autorreferencial, mas é comunial.
É assim que se orientam os três munera cristológicos para o serviço da comunidade: através da diferenciação carismática. Isto é, através do reconhecimento e da aplicação prática dos carismas individuais. Uma multiplicidade de carismas colocados a serviço da comunidade. A diakonia (em grego) é traduzida para o latim como ministerium. Uma Igreja, portanto, totalmente ministerial onde não havia diferença de sexo: homens e mulheres recebiam o carisma e em virtude da ontologia batismal realizavam o carisma recebido em uma igualdade fundamental dentro das comunidades (que não eram uniformes, mas muito diversificadas segundo o lugar e o apóstolo que as havia fundado).
Homens e mulheres tinham acesso aos ministérios de acordo com o carisma recebido e reconhecido pela comunidade. Não havia diferença de cultura e de etnia: recebiam um dom espiritual tanto os judeu-cristãos quanto os cristãos helenizados, tanto os da Ásia Menor quanto os da comunidade romana. Na Antioquia como em Corinto. Diferentes línguas eram faladas e diferentes ritos e evangelhos eram usados. Havia uma grande pluralidade teológica e organizacional e às vezes podiam surgir tensões que se resolviam no espírito de fraternidade.
Uma coisa é o aparecimento de tensões fisiológicas que encontraram soluções no ágape fraterno, outra coisa é enredar essas tensões com um ato autoritário centralizado que nivelava o pluralismo e impunha uma rígida e mortificante homologação.
Infelizmente foi esse segundo evento que se concretizou e a concentração de “poderes” numa só pessoa (primeiro em nível local e depois em nível central) também causando a concentração do poder numa só sede que assumiu a função de legislar para todos e sobre tudo. Essa foi uma das razões pelas quais o legítimo pluralismo teológico, litúrgico e organizacional enfraqueceu cada vez mais.
As sedes patriarcais (Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia, Jerusalém) iniciaram uma política centralizadora. Ao mesmo tempo, alguns ministérios-serviços começaram uma lenta transformação. Começaram a perder cada vez mais suas características fundadoras e evangélicas e se hipertrofiaram. Ou seja, se tornaram cada vez mais inchados de poder e de funções.
Os serviços que antes eram realizados por vários batizados passaram a ser desempenhados por um único batizado, geralmente um idoso (presbiteroi) ou um bispo (episcopoi). Um papel ainda mais centralizador foi desempenhado pelos chefes das comunidades sediadas nas cidades patriarcais e entre eles começaram a surgir as primeiras tensões (que mais tarde a sede romana viraria a seu favor).
Assim, à medida que nos afastamos das raízes evangélicas e da vitalidade das primeiras comunidades, surgem os primeiros elementos críticos. O serviço à comunidade perde sua característica de serviço humilde e pobre e torna-se um poder pessoal. Uma única pessoa (episcopado monárquico) concentra em si vários ministérios. Ocorre uma importante transformação: forma-se o clero. Os ministérios do presbítero e do bispo se clericalizam, ou seja, se separam do corpo vivo da comunidade e assumem uma identidade sagrada (sagrado neste contexto significa separada).
O serviço carismático torna-se institucionalizado, se principia um regime de separação sagrada. Lugares, vestimenta, comportamentos, livros, objetos, tudo perde sua laicidade original e se sacraliza. O clero é composto por uma ordo de pessoas consagradas e pela primeira vez, por volta de 210, um bispo é chamado pelo título de sacerdote, um termo que não se encontra em nenhum texto do NT para indicar os ministérios eclesiais.
Ao processo de sacralização, o clericalismo associa um processo de elevação. O clero (constituído por presbíteros e bispos) eleva-se acima do povo, formam-se as primeiras relações hierárquicas, há superiores e inferiores, quem manda e quem obedece, e isso acontece em nome de um poder sagrado que o clero se atribui. A estrutura carismática acaba por se dissolver.
A laicidade desaparece. A igualdade fundamental (todos reis, sacerdotes e profetas) é anulada. O clero domina em vez de servir, ensina o povo em vez de se colocar junto com a comunidade a serviço da Palavra, administra os sacramentos de maneira exclusiva e as liturgias são separadas da vida cotidiana, o culto torna-se algo diferente da existência concreta, não celebra mais o que se vive e não vive mais o que se celebra. O clericalismo divide as comunidades e cria dois estados de vida e, ao fazê-lo, distancia-se da existência leiga dos cristãos.
O que descrevemos são os primeiros passos do processo de clericalização. Processo que encontra seu momento importante na virada constantiniana do século IV. A Igreja de perseguida torna-se perseguidora e a verdade da fé, proposta primeiro no amor e na misericórdia, torna-se a verdade da doutrina, a verdade dos dogmas imutáveis a impor pela força.
O serviço régio tornou-se um poder de jurisdição e concentrou-se na pessoa do bispo. O serviço sacerdotal tornou-se o poder da ordem e também se concentrou no bispo (doravante chamado sacerdote), que delegava tal poder aos presbíteros. Depois os dois poderes se fundiram e uma única pessoa assumiu sobre si o poder de jurisdição e o de ordem. Também o munus profético, o magistério, ou seja, a tarefa de anunciar e explicar as Escrituras, logo se concentrou nas mesmas pessoas.
O clero tornou absoluta a sua posição e se separou totalmente do resto da comunidade. Na Igreja, a separação tornou-se cada vez mais evidente: de um lado o clero (que depois de Constantino assumiu cada vez mais uma posição social diferente e um status econômico mais elevado) e, do outro, o laicato, o povo, que permaneceu pobre não só economicamente, mas também cultural e espiritualmente. Destinado a ser ensinado, administrado e nutrido sacramentalmente.
A Igreja tornou-se sinônimo de clero. E nos séculos seguintes iniciou-se uma obra de justificação teológica desse poder concentrado no clero. Os bispos e o papado nascente (por volta do século VI a palavra papa é usada pela primeira vez para indicar o bispo de Roma) começaram a moldar a doutrina, a ler as Escrituras conforme suas conveniências, a estabelecer o que nas Escrituras estava em conformidade com seu magistério.
Justamente isto: as Escrituras foram interpretadas de uma certa maneira, até mesmo algumas passagens deletadas e traduzidas de uma maneira em vez de outra. Foi estabelecido quais livros fossem canônicos e quais apócrifos. Tudo com base na doutrina que o próprio clero passava a consolidar e impor. As leis se conformaram à sua vontade.
A teologia tornou-se submetida à sua vontade. A liturgia era assunto dele. A economia, o dinheiro, o poder era assunto dele. Certamente não faltaram vozes isoladas chamando a Igreja de volta à pureza evangélica, mas a tendência foi aquela que estou descrevendo e levou a Igreja a mudar sua estrutura original. Hoje Francisco reconhece tudo isso quando escreve: “construímos comunidades, programas, escolhas teológicas, espiritualidade e estruturas sem raízes, sem memória, sem rosto, sem corpo, enfim, sem vida”.
Nesse processo que durou séculos, não deveria surpreender que as mulheres foram gradualmente marginalizadas dos serviços eclesiais e nem mesmo o serviço do diácono lhes foi reconhecido como, ao contrário, era reconhecido e apreciado no início.
Elas não puderam mais evangelizar, celebrar ou governar uma comunidade. Excluídas de tudo. O clero tornou-se celibatário, mas não em todas as comunidades, predominantemente naquelas ocidentais. Apenas os celibatários podiam "tornar-se" padres. O sagrado devia ser prerrogativa apenas dos homens celibatários.
A escolha celibatária deixou de ser uma escolha livre e voluntária, mas tornou-se uma obrigação, um preceito, um artigo jurídico, um pronunciamento magisterial. Toda a vida eclesial teve que se submeter à lei. Escrita pelo clero, naturalmente. Tudo se tornou norma, prescrição, obrigação e proibição. Os primeiros códigos foram elaborados. Todos escritos pelo clero. E as prerrogativas do clero aumentaram, tornaram-se cada vez mais amplas e intimidatórias.
Enquanto isso, foi criado o papado, o sumo grau da escada hierárquica, a plenitudo potetsatis, o Vigário de Cristo, o Pontifex Maximus, … o simples e humilde bispo de Roma tornou-se o papa, aliás, Sua Santidade o Romano Pontífice. O primeiro milênio havia passado e logo após o “decreto de Graciano” recolheu a produção legislativa anterior. Afirmava que “duo sunt genera christianorum”… existem dois tipos de cristãos.
“O primeiro, por ser encarregado de um ofício divino e dedicado à contemplação e à oração, é conveniente que esteja longe de todo o tumulto das coisas temporais. Fazem parte dele os clérigos e aqueles que se dedicaram a Deus, isto é, os religiosos. O outro tipo de cristãos é constituído pelos leigos. A eles é permitido possuir bens temporais, mas apenas para uso, é concedido casar-se, cultivar a terra, dessa forma poderão salvar-se, desde que evitem o vício e pratiquem o bem”.
Corria o século XIII e a divisão entre clero e o laicato já tinha sido assumida em nível doutrinário e normativo. Vários séculos depois, Leão XIII (no século XIX) escreverá aos “pastores e ao rebanho. O chefe e o povo. O primeiro tem a função de ensinar, governar e dar aos homens as leis necessárias; o outro tem o dever de se submeter, de cumprir suas ordens, de demonstrar-lhe respeito".
Até chegar a 1906 com Pio X que na Vehementer nos escrevia: "A Igreja, por sua natureza, é uma sociedade díspar, ou seja, uma sociedade formada por duas categorias de pessoas: os pastores e o rebanho... O direito e a autoridade residem apenas no corpo pastoral... a multidão só tem o dever de se deixar conduzir e de seguir os seus pastores como um dócil rebanho".
E hoje? Hoje a situação, apesar do Concílio Vaticano II e do Papa Francisco, não mudou muito em relação a 100 anos atrás. Houve algumas tímidas aberturas nos documentos conciliares, hoje Francisco liberou para discussão o termo clericalismo e está empenhado na luta contra os abusos, mas os problemas doutrinários permanecem sem solução.
Na Lumen gentium n. 10 padres ordenados continuam a ser apresentados como essencialmente diferentes dos batizados comuns. Hoje, o Código de Direito Canônico continua a atribuir enorme poder à hierarquia. Hoje é difícil reconhecer a dimensão sistêmica do clericalismo e não se consegue eliminar as causas dos abusos (que não são apenas aqueles sexuais).
Hoje, o processo de desclericalização das estruturas eclesiais é bloqueado por um conservadorismo que não poupa nenhum dos vértices da Igreja. Hoje é a esperança na ação criativa e regeneradora do Espírito (que age dentro e fora dos limites da igreja) que nos sustenta no nosso testemunho cotidiano. Uma igreja evangélica e leiga, encarnada na história é o futuro que nos espera.
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Origem e degeneração da Igreja. Artigo de Salvo Coco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU