08 Abril 2023
A graça da Sexta-Feira Santa deve resistir – durante todo o ano – à prova do fracasso das nossas programações de uma vida imune às feridas, das nossas cumplicidades postas à prova pelos abandonos, pelos nossos profissionalismos que nos exoneram da humanidade que está fora dos procedimentos.
A opinião é do teólogo e padre italiano Pierangelo Sequeri, ex-presidente do Pontifício Instituto Teológico João Paulo II para as Ciências do Matrimônio e da Família (2016-2021) e consultor do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida. O artigo foi publicado por Avvenire, 07-04-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quem grita? É Jesus quem grita. E os outros? Os outros não gritam mais, fofocam sobre o evento, descendo da colina ou passando longe. Os gritos dele são emudecidos, literalmente. Depois de terem murmurado alguma coisa, para disfarçar o embaraço (até Judas o faz), não têm mais palavras. Será preciso que as mulheres os acordem, anunciando que, depois daquele grito e do silêncio mortal que enfraqueceu seu eco, algo inédito está acontecendo.
Nós nos tornamos muito civilizados, não gritamos a Deus. Quando levantamos a voz, como nos debates televisivos ou nos estádios – muitas vezes duas variantes do mesmo fenômeno – certamente não fazemos isso para nos fazer ouvir por Deus.
O grito daqueles que realmente sofrem parece ter se tornado mudo, como o grito de Munch. Quem o escuta? Eles se resignaram, converteram-no em um gemido e depois nem isso mais. As nossas sociedades – talvez até as nossas Igrejas – têm problemas de audição.
Certamente, eles ouvem os gritos de protesto e tentam responder com os gritos das promessas. Nada a dizer, é melhor do que nada. Mas é ainda uma troca de vozes entre os salvos, não é uma escuta dos submersos. Muitos homens, mulheres, crianças, curvados pelo desânimo e crucificados pelo ressentimento, têm fôlego para um único grito. Se perdermos esse, estão perdidos. Mas, mesmo que ou ouçamos, passamos para o outro lado.
O grito de dor ressoa fraco, mas o silêncio de morte literalmente retumba dentro de nós. Concentremo-nos neste agora; amanhã já é tarde demais. Amanhã, começaremos a encontrar razões, desenvolver análises, remendar o buraco. Identifiquemo-nos hoje com o horror desse silêncio de morte e procuremos escutar a tempo o grito da dor.
O Crucificado só tem tempo de nos confiar uns aos outros. O Crucificado nos adverte: é isso o que ocorre quando não confiamos uns nos outros, quando nos desafiamos, quando aprendemos a desconfiar uns dos outros. Os gritos se perdem, tornam-se silenciosos, inaudíveis, mortais.
Em quem a geração que vem ao mundo agora deve confiar? Em quem podem confiar os jovens que procuram um pingo de projeto de vida compartilhado para depositar sua confiança? Não o encontram na família (seja ela velha ou nova, nada muda a esse respeito: nada), não o encontram na escola, não o encontram no trabalho, não o encontram na política.
Muitos gritos de resposta são imperturbáveis: não é a nossa tarefa específica. Mas de quem, então? Enquanto isso, as vozes do desespero gritam dentro dos jovens, que não sabem mais de onde vêm as vozes: perdem-se em uma interioridade já bastante precária, desferem golpes às cegas em seus fantasmas, querem descer do nosso mundo: e alguns, depois, realmente fazem isso.
“Pessoal, vou seguir em frente, nas regiões escuras da humilhação e do rebaixamento. Honrem-me pelo menos nisto: amem uns aos outros como eu os amei. Não vou lhes deixar órfãos, enviarei um Vento de Deus que varrerá as folhas mortas e fará com que o trigo queira nascer de novo, que a videira queira ter seiva nova, que os figos queiram oferecer seus corações. E como é verdade que agora vou preceder a vocês, nas sombras da morte e no caminho da vida, voltarei. Comeremos juntos e beberemos juntos: e vocês saberão que as sombras realmente acabaram e que o mundo verdadeiramente mudou.”
Mais ou menos com essas palavras, Jesus havia antecipado o horror da Sexta-Feira Santa, o dia em que se deve escutar com anseio o grito dos perseguidos e sofrer com vergonha o silêncio dos civilizados. Não há como imaginar – a experiência comprova isso todos os dias – a nossa capacidade de nos deixarmos realmente transpassar por aquele grito e abraçar com paixão a promessa que ele contém. É pura graça a Sexta-Feira Santa. Se não a pedirmos agora, quando?
A graça da Sexta-Feira Santa deve resistir – durante todo o ano – à prova do fracasso das nossas programações de uma vida imune às feridas, das nossas cumplicidades postas à prova pelos abandonos, pelos nossos profissionalismos que nos exoneram da humanidade que está fora dos procedimentos.
Até mesmo os Apóstolos haviam feito planos. Depois, a Sexta-Feira Santa chega, e é preciso saber improvisar o cuidado dos feridos, a busca dos abandonados, a ternura pelos excluídos dos protocolos (porém, Ele havia dito que o reino de Deus vem de repente, das formas mais impensáveis, com ternura e violência: e é preciso aferrá-lo em ambas).
O Crucificado vai na frente primeiro, deixa-nos com vida para que escutemos o grito da Sexta-Feira da Paixão e interiorizemos a sua graça. Assim, quando chegar o Vento de Deus, não nos trancaremos em casa – ou na igreja – e teremos olhos e ouvidos novos para ver os descartados da sociedade civilizada e para escutar o gemido da criatura oprimida. E até mesmo a força que encontraremos para fazer isso nos comoverá e nos alegrará.
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A Sexta-Feira Santa de Cristo e de todos nós. Artigo de Pierangelo Sequeri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU