A reflexão bíblica é elaborada pelo padre jesuíta Adroaldo Palaoro, comentando o evangelho da Quinta-feira Santa, ciclo A do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de João 13,1-17.
“Estavam tomando a ceia”; “e começou a lavar os pés dos discípulos...” (Jo 13,2.5)
Esta foi a prática de Jesus que mais causou espanto e escândalo: a partilha nas mesas com pobres e pecadores. Literalmente, Jesus foi aquele que “virou mesas” de muitas pessoas e fundou uma outra mesa: mesa da partilha, da festa, mesa da fraternidade onde todos se sentem iguais... Mesa da vida.
Trata-se de uma mesa provocativa, questionadora, incômoda... que requer mudança de lugar, de mentalidade, de atitude... Sair da própria mesa e caminhar em direção à mesa dos outros.
Comendo e bebendo com todos os excluídos, Jesus estava transgredindo e desafiando as formalidades do comportamento social e das regras que estabeleciam a desigualdade, a divisão, a exclusão...
Jesus revelava uma grande liberdade ao transitar por diferentes mesas; mesas escandalosas que o faziam próximo dos pecadores, pobres e excluídos... Ele não só transitou por outras mesas, mas instituiu a grande Mesa para a festa, a intimidade, a memória: a “mesa do Lava-pés e da Última Ceia”.
Ali, Ele “despoja-se do manto” (sinal de dignidade de “senhor”) e pega o avental (toalha, “ferramenta” de servidor). Jesus está no meio dos homens como Aquele que serve.
“Despojar-se do manto” significa “dar a vida” sob a forma de serviço.
Jesus coloca toda a sua pessoa aos pés dos seus discípulos. O Criador põe-se aos pés da criatura para revelar como ela é amada e como deve amar.
O texto joanino nos diz que Jesus realizou o lava-pés durante a última Ceia. Todas as refeições tinham o “lava-mãos”. Algumas ceias especiais tinham o “lava-pés” no início como sinal de acolhida e hospitalidade. Jesus realiza seu gesto enquanto a refeição está acontecendo. Certamente Ele estabeleceu uma relação muito estreita entre o comer e o servir, melhor dizendo, entre a refeição e o serviço solidário.
Até Jesus, os convidados para a refeição eram servidos e saiam satisfeitos. A partir de Jesus, os convidados para a refeição servem-se uns aos outros e saem da refeição para servir os outros. O dom recebido é partilhado entre os seus; mas isso não basta, ele precisa ser colocado à disposição de todos, a começar pelos mais carentes. O dom é, ao mesmo tempo, graça e missão.
O Evangelho de João, portanto, substitui a instituição da Eucaristia pelo Lava-pés. Audaciosa inovação que dirige o gesto eucarístico para a revolução das relações humanas: o poder do Senhor se converte em capacidade para servir; a autoridade não se exerce submetendo o outro, mas possibilitando que o outro “seja”.
Com este gesto Jesus desvela uma imagem nova de Deus: o Todo-Misericordioso esvazia toda e qualquer expressão de poder e submissão entre os humanos.
Ninguém serve a Deus, a não ser do jeito de Jesus, isto é, lavando os pés, amando até o fim.
Nosso Deus não é prepotência, mas condescendência. É o Criador que se põe aos pés da criatura.
Nosso Deus é um Deus que “desce”, que se “inclina” para acolher.
Mistério da Encarnação: Deus abraçando e sendo encontrado junto aos pés dos seus filhos(as).
O “descendimento” do Senhor aos pés dos discípulos e fazendo-se servidor, transforma o status da servidão (“o servo não sabe o que faz seu senhor” – Jo. 15,15) em fraternidade (“não vos chamo servos, mas amigos” – Jo. 15,15).
Deste modo, aqui se revela o verdadeiro senhorio de Jesus: a possibilidade de restabelecer a igualdade entre as pessoas através da superabundância de um amor que se derrama, sem reservas, para todos. Este gesto provocativo de serviço e despojamento d’Aquele que é “Senhor” desperta em cada seguidor/a o desejo de considerar suas qualidades e capacidades como veículos de doação, não de poder ou de manipulação.
A partir deste “ousado gesto” já não se justifica nenhum tipo de superioridade, mas somente a relação pessoal de irmãos/ãs e amigos/as.
O lava-pés é gesto ousado que quebra toda pretensão de poder. Jesus viu claramente que o perigo mais grave que ameaça seus seguidores é a tentação do poder. Não há dúvida de que isso é o que causa o maior dano a todos, o que mais nos desumaniza, pois alimenta divisão, submissão, obediência infantil...
Por isso, com esse gesto, Jesus expressa que nunca quis agir como o superior que se impõe com poder; do mesmo modo, viu em semelhante comportamento uma conduta radicalmente inaceitável entre seus seguidores. A relação que se estabeleceu entre os discípulos e Jesus não foi a de submissão a um poder que manda e dá ordens, mas a do “seguimento” que brota da experiência de sentir-se atraído e seduzido pelo “modo de proceder” do mesmo Jesus.
O gesto do lava-pés é repleto da “espiritualidade do cuidado”.
O cuidado é um diálogo de presenças, não só de palavras. São seres “vulneráveis” que se encontram.
O cuidado é expressão de ternura e delicadeza. É atenção às pessoas; é gesto de inclusão.
O cuidado é gesto amoroso para com o outro, gesto que protege e traz serenidade e paz.
O amor é a expressão mais alta do cuidado, porque tudo o que amamos cuidamos. E tudo o que cuidamos é um sinal de que também amamos. Cuidar é envolver-se com o outro ou com a comunidade de vida, mostrando zelo e preocupação. Mas é sempre uma atitude de benevolência que quer estar junto, acompanhar e proteger; é ter espírito de gentileza e ternura para captar e sentir o outro como outro, como original, e acolhê-lo na sua diferença.
Lava-pés não é teatro, mas modo habitual de proceder e de estar no mundo.
“Tal Cristo, tal cristão”: na vivência do serviço evangélico, somos chamados a vestir o “avental de Jesus”.
“Vestir o coração” com o avental da simplicidade, da ternura acolhedora, da escuta comprometida, da presença atenciosa, do serviço desinteressado...
O que é “tirar o manto?” Para nós o “manto” poderia ser nossa máscara, nossa redoma, nossa capa de proteção que nos distancia dos outros...; é tudo aquilo que impede a agilidade e a prontidão no serviço... “Tirar o manto” é a atitude firme de quem se dispõe a “arrancar” tudo o que possa ser empecilho para melhor servir; é mover-se, despojado, em direção ao outro; é optar pela solidariedade e a partilha; é renovar a vontade de “incluir” o outro no nosso projeto de vida.
Precisamos “levantar-nos da mesa” cotidianamente. Há sempre um lar que nos espera, um ambiente carente, um serviço urgente. Há pessoas que aguardam nossa presença compassiva e servidora, nosso coração aberto, nossa acolhida e cuidado amoroso...
Ora, se não nos livrarmos do manto, tornar-se-á difícil realizar gestos ousados, criativos...
Sempre teremos “pés” para lavar, mãos estendidas para acolher, irmãos que nos esperam, situações delicadas a serem enfrentadas com coragem... A mesa da vida aponta para a direção da gratuidade, da alegria, do convívio, do amor e da comunhão. É preciso “sentar à mesa” para renovarmos as forças e redobrarmos a coragem de nos levantar e, na humildade, sem manto, servir com amor, do jeito de Jesus.
“Levantar-nos da mesa” – “sentar-nos à mesa”: movimento de partida e de chegada; mesa que se projeta para o serviço; mesa que faz memória festiva; mesa do encontro e da partilha. Junto à mesa prolonga-se o gesto provocativo e escandaloso de Jesus. Isso é viver a Eucaristia no cotidiano da vida.
Não podemos esquecer que, na origem daquilo que celebramos neste dia, houve uma ceia de despedida e que somos convidados não a um espetáculo, nem a uma representação, nem a uma conferência, mas a uma refeição fraterna. E, para participar da refeição, a primeira exigência é “ter fome”.
- “De que tenho fome? De que tenho sede?”
- Como posso vivenciar, no cotidiano, a beleza e o cuidado revelados no gesto do lava-pés?