"Judas, filho de Simão Iscariotes, aquele cuidava do dinheiro que os apóstolos recebiam para a sobrevivência, está centro da narrativa, mas nada fala. Jesus diz que o escolhido seria a quem ele desse um pedaço de pão. Judas, sem contestar a fala de Jesus, assume o seu papel de traidor e sai logo de cena. A narrativa é impactante: 'Depois do pedaço de pão, Satanás entrou em Judas. Então Jesus lhe disse: o que tens a fazer, executa-o depressa' (Jo 13,27)", escreve Frei Jacir de Freitas Faria, OFM.
Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH), mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma e professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB), padre franciscano e autor de dez livros e coautor de quinze.
O texto sobre o qual vamos refletir hoje é Jo 13,21-33.36-38. Trata-se do encontro de Jesus com os discípulos num jantar judaico, não necessariamente a última Ceia, como nos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas. Essa passagem faz parte, no evangelho de João, do livro da glorificação de Jesus (Jo 13,1—30, 31), isto é, de sua morte e ressurreição. Três discípulos e o canto tríplice do galo são destaques na narrativa para falar de nossa condição humana na relação com Deus. Amar, trair, negar ressoam fortes nas trevas das noites e no clarão dos dias de João, de Judas e de Pedro. São três pessoas, três ações e três cantos do galo. O que tudo isso significa em Jo 13? Vejamos!
Após lavar os pés dos discípulos, Jesus revela o traidor que deveria cumprir o seu papel de entregá-lo às autoridades religiosas e civis da Palestina. Jesus, comovido, sente o drama humano da traição, ao afirmar: “Um de vós vai me trair”. Os discípulos ficaram confusos. Dois deles agem imediatamente: Pedro, considerado a liderança da comunidade, e João, o discípulo amado, conforme a tradição que achou por bem identificá-lo como sendo essa personagem. Pedro instiga João a perguntar sobre quem seria o traidor.
João, nome hebraico que significa “ternura de Deus”, por ser o discípulo de confiança, estava em lugar de destaque, recostado ao lado mestre. Na época de Jesus, o povo não conhecia talheres, mesa, nem cadeiras para se sentarem. Eles comiam recostados. Molhavam, com as mãos, um pedaço de pão numa panela de caldo, que ficava no centro da roda, e o trazia à boca.
Judas, filho de Simão Iscariotes, aquele cuidava do dinheiro que os apóstolos recebiam para a sobrevivência, está centro da narrativa, mas nada fala. Jesus diz que o escolhido seria a quem ele desse um pedaço de pão. Judas, sem contestar a fala de Jesus, assume o seu papel de traidor e sai logo de cena. A narrativa é impactante: “Depois do pedaço de pão, Satanás entrou em Judas. Então Jesus lhe disse: o que tens a fazer, executa-o depressa” (Jo 13,27).
Era noite, quando isso aconteceu! Esse contraste entre luz e trevas faz parte do evangelho de João. O momento é de escuridão. Jesus, a luz que brilhou no meio deles, estava prestes a ser apagado na escuridão da traiçoeira da noite que levou Judas ao tropeço fatal.
Quando Jesus escolheu os doze, ele afirmou que um deles seria o Diabo (Jo 6,70), isto é, seu opositor. No evangelho de Mateus, Judas, consciente de seu plano para prender Jesus, ainda pergunta, negando a sua culpa: “Por acaso sou eu, Senhor?” Jesus responde com uma afirmativa: “Tu o dizes” (Mt 24,25). O fato de Satanás, e não o Capeta, entrar em Judas significa que ele assume o papel de opositor ao plano de Jesus. Ele teria que cumprir logo a sua missão. Com isso, Jesus demonstra que ele é o Senhor de sua vida. Quem come no mesmo prato torna-se um traidor. Esse é o drama humano! Quem de nós já não passou por isso? Os discípulos, assim como nós, convivem com traidores e nem nos damos conta de que ele está à mesa conosco. Nos momentos de luz em nossa vida, somos João, somos amor. Quando a trevas da vida nos envolvem, somos Judas, somos traidores. Amor e traição fazem parte de nossa vida.
A presença de Pedro ressalta outra debilidade humana, a negação, que é também sinônimo de traição. Na sequência, Jesus se despede dos discípulos e exorta-os a amar uns aos outros com amor fraterno, e anuncia que voltaria para Deus. Pedro manifesta desejo de ir com Jesus, mas isso seria impossível (Jo 13, 31-35). Então, Pedro, fazendo jus ao significado do seu nome (pedra e gruta), responde com a firmeza da pedra e a proteção da gruta escavada na pedra: “Eu darei a minha vida por ti!” (Jo 13, 37). Jesus sabia que Pedro não chegava a ser um Satanás, mas que ele o negaria por medo da morte. Fato que viria a ser comprovado com o canto do galo, que com sua melodia nos desperta, todas as manhãs, do sono da morte e da escuridão da noite, na eterna dinâmica da luz e das trevas. No tempo de Jesus, o galo era o despertador. O fato de o galo, considerado um ser irracional, saber discernir, com o seu canto, a noite do dia, contrasta com o humano Pedro, que ainda não tinha aderido, suficientemente, ao projeto de Jesus.
Outro detalhe que salta aos olhos é o fato de o galo cantar três vezes. O três é muito significativo para falar da criação divina. Com o três, Deus deixou sua marca na criação do mundo, ao criar a água em três estados (sólido, líquido e gasoso); ao compor o átomo de elétron, próton e nêutron; ao criar a vida com passado, presente e futuro, princípio (nascimento), meio (vida) e fim (morte).
O canto do galo confirma a tríplice negação de Pedro, que se contrapõe às três perguntas que Jesus ressuscitado fez a ele: “Tu me amas? (Jo 21, 15-17). Além disso, recorda que Jesus morreria às três horas da tarde e que ressuscitaria ao terceiro dia. Por fim, o João que ama, o Judas que trai e o Pedro que nega somos todos nós, num misto de luz e trevas, noite e dia, no drama de nossa existência humana e divina.