30 Março 2023
Em 24 de fevereiro, o conselho curador da Marymount University, uma universidade católica em Arlington, Virgínia, nos Estados Unidos, fundada pelas religiosas do Sagrado Coração de Maria, votou unanimemente pelo corte de vários programas de artes liberais, incluindo a teologia.
O comentário é de Matthew Shadle, teólogo, professor de teologia na Universidade de Marymount, EUA, autor de livros sobre ética teológica, publicado em America, 15-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Isso significa que essas disciplinas não serão mais oferecidas como cursos de graduação, embora algumas delas continuem fazendo parte do currículo básico de artes liberais da universidade. Mesmo assim, os cortes ocorrem no rastro de uma reestruturação desse núcleo no ano letivo anterior, que já registrou reduções significativas de requisitos básicos nas humanidades.
Esses cortes estavam em desenvolvimento desde o semestre passado. Depois de mais de oito anos lecionando lá, no final do semestre, renunciei voluntariamente ao meu cargo de professor de teologia em Marymount, o que se efetivou a partir de janeiro.
Contudo, como observa William Bridges, autor de uma obra clássica sobre o processo de fazer grandes transições na vida, embora possamos pensar que as mudanças nas circunstâncias concretas da vida são aquilo que estimula uma transição – o processo espiritual de abrir mão de uma coisa e de abraçar algo novo –, surpreendentemente as mudanças concretas geralmente ocorrem perto do fim de uma transição.
Por um tempo, minha esposa e eu moramos e trabalhamos em Estados diferentes. Essa situação é tão comum no Ensino Superior – devido à escassez de cargos docentes e administrativos – que os acadêmicos até têm um nome para isso: o “problema dos dois corpos” [two-body problem]. Com a chegada da pandemia da Covid-19 em 2020, nós (assim como muitas pessoas) reexaminamos as nossas prioridades de vida e decidimos que precisávamos encontrar uma forma de estar juntos. Pude lecionar remotamente a partir de Iowa por um tempo, mas essa não era uma solução de longo prazo. Com os acontecimentos em Marymount neste ano acadêmico, as peças simplesmente se encaixaram.
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Quando comecei minha busca de emprego há alguns meses, procurando um trabalho mais perto da nossa casa em Iowa, percebi que precisaria estar aberto para encontrar um cargo que não fosse de professor. Isso pode parecer fácil, mas um doutorado em teologia não qualifica você para muita coisa além de ser professor de teologia, e eu não fui outra coisa senão um estudante de pós-graduação ou professor desde os meus 21 anos de idade.
Em situações como essas, e de fato em todas as situações que exigem discernimento, Santo Inácio de Loyola, o fundador dos jesuítas, nos aconselha a adotar uma atitude de indiferença. Seu ponto não é que devemos parar de nos importar; pelo contrário, ele quer dizer que devemos estar abertos a abrir mão de posses, relacionamentos, títulos, status e até mesmo a nossa identidade própria em busca de amar e servir a Deus. É uma entrega confiante.
O sábio chinês Laozi (ou Lao Tzu) oferece conselhos semelhantes no “Tao Te Ching”, no qual ele sugere que devemos ser como a água, que ele compara ao “bem supremo” (n. 8) por causa de sua “submissividade”: “O mais tenro neste mundo [isto é, a água] domina sobre o mais duro – somente o nada se insere naquilo que não tem falhas” (Tao Te Ching, n. 43).
Laozi sugere que o poder da água é sua capacidade de se adaptar ao ambiente ao seu redor devido à sua fluidez. Ao contrário de um sólido seco (que Laozi associa “aos mortos”, n. 76), a água não tenta se apegar à sua forma atual. Assim como Inácio, portanto, Laozi reconhece que somos tentados a nos apegar a quem fomos no passado ou a quem somos no presente. Devemos aprender a estar abertos ao fluxo da realidade.
Lidar com esses insights me ajudou a imaginar a mim mesmo como algo além de um professor universitário e a ver oportunidades que eu poderia perder se estivesse me apegando ao passado. Mesmo assim, sou assombrado pelas palavras que o autor alemão Rainer Maria Rilke escreveu a um aspirante a escritor em suas “Cartas a um jovem poeta”:
“Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: ‘Sou mesmo forçado a escrever?’. Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples ‘sou’, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão” [trad. Paulo Rónai e Cecília Meireles, Ed. Globo, 1995].
Apesar da minha luta espiritual (ou talvez por causa dela), meu desejo de teologizar é muito parecido com a experiência nem tão aquosa de ser um poeta que Rilke descreve. A razão que me leva a teologizar parece irresistível, seja qual for o meu próximo passo na carreira. Então, o que fazer?
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Na pós-graduação, eu suspeito que muitos teólogos iniciantes tenham a impressão de que a única forma de cumprir a vocação de teólogo é tornando-se professor universitário ou talvez por meio do ministério eclesial. E, é claro, em termos práticos, há um fundo de verdade nisso.
No entanto, há um grande número de teólogos ativos que são administradores universitários, ministros eclesiais, membros de ordens religiosas, professores do Ensino Médio e “estudiosos independentes” de muitos outros tipos. O número de teólogos em cargos não docentes só aumentará à medida que mais faculdades cortarem seus programas de teologia, reduzirem seus requisitos básicos e deixarem vagos os cargos deixados por professores aposentados.
O papel de “teólogo” evoluiu significativamente ao longo dos séculos, e eu acredito que estamos no meio de um estágio dessa evolução em que o papel de teólogo se torna cada vez mais distinto do papel de professor universitário, embora não esteja claro para mim qual forma esse papel pode estar assumindo. No entanto, é útil identificar algumas características essenciais da teologia como “profissão” (se entendermos esse termo no sentido tradicional de algo que “professamos” e praticamos, e não como uma forma de emprego):
- Santo Anselmo de Cantuária definiu celebremente a teologia como “a fé em busca de compreensão”, e o objetivo ou o propósito da teologia é aprofundar a nossa compreensão dos mistérios da fé. David Tracy acrescenta que a teologia está a serviço da Igreja, da sociedade e da universidade. Eu sugeriria que o serviço da teologia à Igreja inclui não apenas a formação do ministério e a catequese, mas também promover um sentimento de admiração e de contemplação diante do mistério de Deus; de tempos em tempos, ao ler teologia, você deveria ter a experiência de dizer: “Uau!”.
- A prática da teologia requer uma educação rigorosa, nas Escrituras, na tradição da Igreja e nas obras dos grandes teólogos do passado; nas formas próprias de pensar e analisar as questões teológicas; e cada vez mais em uma mentalidade interdisciplinar também. Portanto, a prática contínua da teologia dependerá de programas educacionais como escolas de pós-graduação e seminários.
- A teologia é uma prática comunitária. Os teólogos compartilham seu trabalho uns com os outros, assim como com o público em geral, avaliam o trabalho uns dos outros e mantêm uma conversa contínua uns com os outros. Os teólogos também apoiam uns aos outros, fornecendo educação na prática da teologia, criando oportunidades para compartilhar seu trabalho (isto é, periódicos e conferências) e fortalecendo uns aos outros de inúmeras maneiras (por exemplo, cartas de recomendação, promoção do trabalho uns dos outros e o apoio da amizade).
Eu acredito que os teólogos precisarão cada vez mais “ser como a água” e encontrar novas formas de viver essas características essenciais da nossa profissão fora da academia. Em minha experiência até agora, imaginar a nossa profissão como uma prática comunitária fora da academia é onde mais precisamos trabalhar.
Meus colegas teólogos me apoiaram muito quando contei a eles sobre a minha situação profissional e a minha busca contínua por emprego, e sou eternamente grato por isso; não é esse o tipo de apoio que está faltando. Em vez disso, precisamos construir novas formas para que os teólogos fora da academia participem da prática contínua da teologia. Quero destacar duas áreas em particular:
- Acesso a publicações acadêmicas. É difícil para um teólogo fora da academia ter acesso imediato a revistas e livros acadêmicos, e esse problema foi multiplicado por 100 pela digitalização das publicações. As bibliotecas universitárias agora compram rotineiramente licenças para livros e periódicos digitais em vez de cópias em papel, mas esses recursos eletrônicos estão disponíveis quase sempre apenas para empregados e estudantes da universidade. O papel das bibliotecas universitárias como centros de conhecimento público está diminuindo, e eu acho que cabe aos teólogos encontrarem outras maneiras de compartilhar a pesquisa teológica.
- Presença em congressos e conferências. A maioria dos professores recebe fundos de desenvolvimento profissional que os ajudam a pagar os custos de inscrição e as despesas de viagem para participar de congressos e conferências teológicos. Os teólogos fora da academia normalmente não têm acesso a esses fundos, o que dificulta ainda mais a participação. Nos últimos anos, tem havido uma discussão sobre a utilidade contínua das conferências acadêmicas, uma conversa que mudou significativamente depois da Covid-19. Ao lidar com essa questão, eu acho que os teólogos devem levar a sério a participação de teólogos não acadêmicos.
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Quero encerrar com uma frase do bispo e escritor espiritual do século XVII São Francisco de Sales: “Pensa que Deus te tirou do nada para te fazer o que és, sem que tu lhe fosses necessária, mas unicamente por sua bondade” (“Introdução à vida devota”).
Ponderando sobre essa passagem, me dei conta de que Deus também não precisa de mim como teólogo. Gosto de pensar que tenho algo de vital a dizer, algo de que as pessoas precisam ouvir. Se eu não terminar este artigo ou aquele livro, será uma tragédia... Talvez outros sintam o mesmo sobre seu próprio trabalho. Mas talvez eu nunca termine esse trabalho, porque acabarei me envolvendo com outras coisas. Deus me livre, mas posso perder as capacidades físicas ou mentais necessárias para fazer esse trabalho. Deus, no entanto, pode chamar outros teólogos para fazer isso. Deus não precisa de mim.
São pensamentos assustadores, e pode soar espiritualmente abusivo dizer “Deus não precisa de você”. Mas é preciso lembrar que São Francisco de Sales diz que Deus fez quem você é não porque precisa de você, mas por Sua bondade – em outras palavras, porque Deus quer você.
Neste momento, seja qual for o caminho que minha carreira vai seguir, Deus quer que eu seja um teólogo; e, como Rilke, devo construir minha vida em torno do anseio que descubro em meu coração. Isso pode mudar; Deus pode querer algo diferente de mim mais tarde, e precisarei responder a isso em oração. Mas estou convencido de que uma parte da resposta à pergunta: “O que significa ser teólogo?” é: um dom.
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“É possível ser teólogo fora da academia? Vou ter que descobrir” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU