23 Fevereiro 2023
"Não podemos, portanto, ceder à tentação de voltar para trás. Constitui, por direito e por fato, uma verdadeira traição da missão da Igreja. A tradição cresce ou morre. Hoje é tempo de deixá-la crescer novamente. O bem da Igreja nos pede isso. O bem do mundo nos pede isso. O Papa Francisco nos pede isso", escreve o teólogo italiano Armando Matteo, professor de Teologia Fundamental da Pontifícia Universidade Urbaniana e subsecretário adjunto da Congregação para Doutrina da Fé, em artigo publicado por Avvenire, 19-02-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Leia também, em português, o primeiro, o segundo, o terceiro, o quarto, o quinto, o sexto, o sétimo, o oitavo, o nono e décimo artigos da série.
Como será o cristianismo do futuro? No livro Opzione Francesco. Per una nuova immaginazione del cristianesimo futuro (Opção Francisco. Para uma nova imaginação do cristianismo futuro, em tradução livre, San Paolo) do qual propomos um grande trecho a seguir, o teólogo Armando Matteo tenta "imaginá-lo" à luz do magistério do Papa. A ideia é de um cristianismo que cultiva práticas e sonhos de fraternidade; que sabe habitar as periferias e fazer comunhão com quem as habita; um cristianismo que denuncia um sistema econômico e social que rouba dinheiro e alma; um cristianismo que se volta para o olhar misericordioso de Jesus. Isso requer coragem, amor ao Evangelho e à humanidade.
Dez anos depois da chegada do Papa Francisco, pareceu oportuno a quem escreve relançar de forma simples o que a seus olhos representa a linha principal do magistério do Papa Francisco e convocar seus irmãos e irmãs na fé para um momento de verdadeiro discernimento e verdadeira ação. Para o Papa Francisco, na verdade, o drama da Igreja atual – principalmente no Ocidente, mas com causas e efeitos que vão além de suas meras fronteiras culturais e políticas – é que não criamos mais homens e mulheres cristãos. A quebra na transmissão geracional da fé é o verdadeiro ponto crucial em torno do qual ele convocou o povo santo de Deus: a mudança dos tempos e o fim da época da cristandade simplesmente tornou ineficazes as antigas práticas de iniciação na fé de nossos filhos. Precisamos, então, de uma mudança radical da mentalidade pastoral e mais ainda uma nova imaginação do cristianismo futuro.
Tendo em vista a execução dessa dupla tarefa, Bergoglio entregou-nos, desde o início do seu pontificado, a figura da alegria do Evangelho e o grande tema da amizade que Jesus propõe s todos. Depois explicitou esse segundo tema na lógica de um renovado sonho de fraternidade universal, que possa redimir a nossa existência humana do terrível processo de comercialização que o capitalismo avançado realiza com um cinismo de altíssima precisão que só pode deixar espantados, que não tem preocupação obviamente pelos muitos feridos e mortos que deixa no terreno em que avança com prepotência. E é neste mundo que os crentes devem voltar com coragem e com entusiasmo para levar o olhar de misericórdia e de eleição de Jesus que está na origem da sua fé e à qual devem sempre voltar para alimentar essa fé.
Este é o imenso convite que todos os dias de todos os meses de todos os anos destes dez anos nos foi passado pelo Papa Francisco: que aquele olhar de misericórdia vá ao mundo inteiro, chegue a todos os cantos da humanidade, toque e cure as existências feridas, desperte as consciências e os corações adormecidos, converta o coração dos que têm nas mãos o destino financeiro e político da sociedade, acabe com a globalização da indiferença, estabeleça uma ecologia humana integral, finalmente traga de volta o coração dos pais para os filhos. Por isso é essencial cuidar da fecundidade concreta da Igreja: precisamos sempre de homens e mulheres que vivam da paixão genuinamente evangélica de dar um rosto humano para o mundo – um rosto feito de dignidade para todos, justiça para todos, fraternidade com todos, de paz no céu e na terra [...].
A emoção do medo representa um grande recurso para o ser humano. De fato, não tendo este último um pacote instintivo completo, deve contar com a experiência direta para ter conhecimento do mundo e do que está presente no mundo. Lentamente ele procede a uma habitação do mundo em que pode contar com ritmos bem estabelecidos, com ações já testadas, com pontos de referência eficazes e previsões muito realistas. Acontece o que podemos chamar de uma espécie de "domesticação" do mundo ou a transformação do mundo em uma casa habitável para o homem [...].
Ao lado desta forma, digamos, boa e decididamente vital de medo, existe outra que definimos de medo ruim. Queremos dizer a situação daqueles que, em última análise, temem o próprio medo: isto é, têm medo de se encontrar diante de algo desconhecido, inédito, ainda não pensado e vivenciado, que poderia causar uma mudança profunda na condição de vida. Nesse caso, reage-se a esse medo ruim tentando permanecer dentro da trilha já conhecida e experimentada há tempos imemoriais. O medo ruim torna aquele que é refém dele prisioneiro de seu passado e, portanto, de si mesmo.
Agora me parece que posso dizer que um dos obstáculos que pode refrear o desejo em muitos crentes de se sintonizar com o apelo do Papa Francisco para uma mudança urgente na mentalidade eclesial e pastoral poderia ser precisamente o medo ruim descrito aqui. É o medo do novo, do risco, da saída dos esquemas já conhecidos e usados milhões de vezes, de tomar a iniciativa, de dar vida a uma nova forma de ser e agir como crentes nesta mudança de época [...].
Hoje a Igreja - especialmente no Ocidente - está em situação de efetiva marginalização em comparação com a vida concreta de muitos indivíduos. Ninguém acha que deve receber dela nenhuma autorização para o exercício de sua liberdade nem considera de forma absoluta que a condição de ser crente seja indispensável para uma vida plena. Os únicos paraísos que se buscam hoje são aqueles fiscais ou aqueles que são acessados por meio de drogas.
Seus seminários estão vazios, seus conventos estão vazios, seus mosteiros estão vazios, seus lugares de culto estão vazios ou meio vazios, os sacramentos que tantas vezes dispensam são mais uma ocasião de festa familiar do que de real crescimento na experiência cristã, os próprios movimentos – sua primavera – começam a perder sua força de atração sobre as novas gerações, enquanto aquela futebolística é hoje quase a única fé pela qual se está disposto a dar até a própria vida. Sem mencionar o fato de que, na memória coletiva, praticamente nada mais sobrevive daquelas antigas palavras que por séculos indicaram à alma humana as coordenadas para conter as alturas e baixezas de cada pequena e grande existência: palavras como sacrifício, dádiva, reparação, pecado, expiação, redenção pela cruz, remissão da culpa, expectativa escatológica, parúsia, juízo final, paraíso, inferno, purgatório e finalmente salvação. Sem contar, por fim, o contínuo descrédito que as mídias de massas alimentam em relação ao clero, aos bispos e ao Papa em consequência da terrível praga dos abusos sexuais e de poder. Os poucos crentes devem, assim, quase a todo momento, desculpar-se por ainda ser crentes.
É tão natural que um certo ressentimento habite no coração de não poucos crentes diante de um mundo que deu as costas completamente ao cristianismo de um momento para o outro. No entanto, é preciso reconhecer honestamente a verdade do que o Papa Francisco diz sobre o ressentimento, sua força sombria, sua rápida descida para as regiões do pessimismo e da tristeza e, finalmente, nos conduz a posições que não têm mais nada de cristãs. Portanto, não cedamos ao ressentimento. Façamos antes o nosso "olhar que discerne", que, repete novamente o Papa Francisco, "ao mesmo tempo que nos mostra as dificuldades que temos em transmitir a alegria da fé, ao mesmo tempo nos estimula a redescobrir uma nova paixão pela evangelização, buscar novas linguagens, mudar algumas prioridades pastorais, ir ao essencial". Portanto, deixemos de lado a questão da consistência e relevância cultural ou material da Igreja e abramos espaço para o desejo de uma Igreja que seja cada vez mais percebida como um espaço para qualquer um que esteja disponível para encontrar Jesus e experimentar a alegria da fé.
Um último obstáculo à adoção da Opção Francisco vem da terceira das tentações às quais os crentes de hoje, segundo o Papa Francisco, estão sujeitos: a tentação de voltar para trás [...]. Nesta mudança de época, em que se pede aos discípulos do Senhor um improcrastinável trabalho indispensável de imaginação nova do cristianismo futuro e de conversão pastoral, para assegurar a continuidade da tradição da mensagem do Senhor aos homens e às mulheres deste tempo, a tentação de voltar para trás volta a aparecer com a promessa de uma solução simples para um problema complexo: e a solução é aquela de não mudar, mas perseverar naquele sistema de transmissão da mensagem do Senhor que funcionou até agora.
Desta forma, porém, lembrou o Papa Francisco à Comissão Teológica Internacional em 24 de novembro de 2022, a tradição simplesmente morre [...]. Não podemos, portanto, ceder à tentação de voltar para trás. Constitui, por direito e por fato, uma verdadeira traição da missão da Igreja. A tradição cresce ou morre. Hoje é tempo de deixá-la crescer novamente. O bem da Igreja nos pede isso. O bem do mundo nos pede isso. O Papa Francisco nos pede isso.
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Os cristãos de amanhã? Comecemos a imaginá-los. Artigo de Armando Matteo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU