02 Fevereiro 2023
Nas falas de porta-vozes dos especuladores, emerge um 8 de Janeiro com punhos de renda: ai de quem ferir os privilégios! O presidente tenta encarar o desafio – mas para fazê-lo, precisará abrir o debate sobre as finanças públicas
O artigo é de Luis Fernando Novoa Garzon, sociólogo, doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR-UFRJ e professor da Universidade Federal de Rondônia, publicado por Outras Palavras, 01-02-2023.
Depois da epifania de que o pesadelo necropolítico no Brasil acabaria nas exatas marcações do calendário eleitoral, batemos com a cara no muro. Chocados com a operacionalização encoberta do escracho das sedes dos Três Poderes em Brasília, que atestou tanto o desalinhamento interno destes como o extravasamento institucional de outros poderes manifestamente insubordináveis. Os processos criminais e administrativos envolvendo os atos pró-golpistas criam a ilusão de uma resposta proporcional e preventiva. Evolucionistas institucionais convictos afirmam que o malogro da urdidura do golpe teria sido um sucesso no sentido de vacinar o corpo político contra novos ataques.
O avanço permitido é para trás, tal como um traumatizado Angelus que, avistando adiante o horizonte da fascistização da esfera política, aninha-se incondicionalmente entre os dispositivos ultraliberais e pós-sociais que estão na origem daquele mesmo pavor antevisto. Deste modo, os controladores e replicadores desta ordem convulsiva aprofundam a perenidade de suas fórmulas de exceção, ditando o que seriam marcos pretensamente inarredáveis da maturidade do país, que por sua vez têm como condição a sua normalização financeira (“financial deepening”). Na forma de uma interminável matrioshka, a condição da condição do enraizamento jurídico dos requisitos do sistema financeiro é a constitucionalização da macroeconomia ultraliberal e de sua propalada “ambiência pró-investimentos”. Duvidável bônus da dúvida: ou se trata de condição para o fim das tutelas militar, paramilitar e dos mercados, ou seria a própria consagração de todas estas tutelas.
A leniência infinda com Bolsonaro, seja durante seu mandato presidencial, seja neste momento, não é gratuita. Não há agente de mercado no Brasil que desdenhe tanto esforço feito nos últimos anos para suprimir obrigações sociais e margens de discricionaridade não mercantil sobre o orçamento e as finanças públicas. Como podemos qualificar agentes econômicos que prometem caos redobrado se privilégios adquiridos e/ou prometidos no programa “Ponte para o Futuro” (2017-2018), depois transmutado em “Plano Mais Brasil” (2019-2022), forem ameaçados?
O regime de extermínio social, com seus três vetores de destruição coletiva: desvincular, desobrigar, desindexar, continua apresentando-se como indispensável. Exemplo disso é o posicionamento recente de economistas-chefe de dois bancos emergentes no sistema financeiro brasileiro. Ambos comprovam como é vantajoso o intercâmbio funcional entre as altas finanças e agências públicas que deveriam regulá-las. Utilizarei comunicados oficiais feitos por eles logo após a operação aloprada dos extremistas de plantão apenas para ilustrar o argumento aqui exposto.
No dia 9 de janeiro, Caio Megale, economista-chefe da XP, aparentemente desvia o assunto chamando a atenção para o que seria fundamental naquele momento: “a busca pelo equilíbrio fiscal sustentável”. Paso doble para manter a pressão e a urgência: o que não vier pelas armas, que venha pela chantagem dos juros associada a revoadas especulativas. Eis a profecia autocumprida lançada pela XP: “Desde o início das negociações da PEC [da transição], as taxas de juros nos mercados futuros subiram quase quatro pontos percentuais – com um impacto estimado de R$ 160 bilhões no serviço da dívida. A equipe de economia da XP projeta alta de 10 pontos percentuais da relação dívida/PIB nos próximos dois anos.”
A chantagem sobre o que pode e deve ser o vindouro “reequilíbrio fiscal sustentável” é uma fórmula recorrente nos comunicados de sequestradores aos familiares das vítimas no que toca ao resgate devido: “A incerteza pressiona os ativos financeiros, mantendo juros mais elevados e taxa de câmbio mais desvalorizada do que o adequado para o país.”
As ameaças enviesadas prosseguem: “O teto era o primeiro passo de um processo mais profundo de ajuste. Enquanto ele funcionava, era preciso avançar em desvincular, desindexar e desobrigar a estrutura de gastos públicos no país, sob pena da pressão dos gastos obrigatórios e investimentos acabar por implodir o teto.”
Na verdade, o lamento embute o que seria uma solução de continuidade da política econômica de Guedes, a mesma que aprofundou o apartheid social do país, produziu uma catástrofe social e sanitária durante a pandemia e fez vir à tona racismos e supremacismos de toda ordem. Como se esta política não tivesse sido derrotada nas urnas. O que demonstra que mercadores do país não lidam bem com alternâncias de poder político que interfiram na configuração do poder econômico. Por isso, fascismo de mercado não é força de expressão, mas expressão da fisionomia predominante das ações e estruturas monopolistas do capitalismo no Brasil.
O segundo personagem, economista-chefe do BTG, Mansueto Almeida, é ainda mais emblemático da concatenação das posições dos mercados com as do golpismo propriamente dito. Foi Mansueto, literalmente, cabeça de ponte entre Temer-Meirelles e Bolsonaro-Guedes na consecução das mais acalentadas reformas pró-mercado: a constitucionalização do teto de gastos, a desalavancagem do BNDES e a Reforma da Previdência. O oráculo de Mansueto, que vale quanto pesa, projeta-se em uma detalhada modulação dos preços dos cenários futuros. Em relatório “macro”, fechado na segunda quinzena de janeiro de 2023, faz-se referência ao conjunto de medidas anunciadas por Haddad que sinalizam pra uma recomposição equivalente ao que seria o último “rombo” do teto de gastos: “De fato, o pacote não alterou de forma muito significativa nossas projeções para as variáveis fiscais e não impedirá um forte crescimento da dívida bruta nos próximos anos: projetamos aumento da dívida de 73,9% do PIB no fim de 2022, para 78,2% em 2023, e 82,4% em 2024. Assim, um plano de ajuste fiscal que sinalize para uma trajetória de estabilidade da dívida pública no médio prazo ainda é imprescindível, e a incerteza em relação ao compromisso desse governo com este plano traz um cenário de risco desnecessário.” (2)
A simetria das posições não tem nada de casual e confirma a dominância da agenda de capitais que devem sua ascensão a métodos não convencionais em que figuram: a condução de fusões e aquisições e privatizações em que grandes lotes de riqueza são negociados de roldão de forma concentrada, a promoção da triangulação entre agências econômicas governamentais, parlamento e investidores e, consequentemente, a certeira antecipação de decisões de investimento a partir da retroalimentação de informação privilegiada.
Rememoremos que o resultado eleitoral expressa um sonoro NÃO a Bolsonaro e a seus patrocinadores. Estratificando-se esse voto de caráter plebiscitário, nota-se um predomínio de mulheres, jovens, negros, moradores das periferias das regiões metropolitanas, classes populares de modo geral com grande concentração na região Nordeste e parte da região Norte. São os segmentos que compreenderam em seus próprios corpos o que significaria mais 4 anos de necroliberalismo. Há um “efeito-destampe” não desprezível a tensionar o alinhamento do país com o modus operandi totalitário do mercado, o que inclui consumo conspícuo, cidades segregadas, violência e tortura nas favelas, periferias e nas áreas de fronteira das commodities. Lula, portanto, catalisa uma poderosa recusa que representa uma liberação de energias criativas e contestatárias, silenciadas e criminalizadas nos últimos anos.
Não por acaso o golpismo não baixa a guarda; há um temor real de uma contra-onda que desacople estruturas econômicas e políticas consolidadas desde os anos 1990. Quando Lula afirma e reitera que saúde e educação não são gastos e que gasto mesmo é o pagamento dos juros da dívida pública, o edifício oligopólico inteiro estremece. Quando coloca em pé de igualdade metas de inflação e metas de emprego, e questiona a autonomia do Banco Central para obedecer à banca privada, bolsas e dólar disparam indicando o quanto tais sacrilégios são desestabilizadores. Contudo, se Lula avoca a “estupidez” do teto de gastos, não deveria permitir que seu ministro da Fazenda se deixe empurrar para remendar ou mitigar rombos apenas mensuráveis nos marcos deste engessamento estúpido das finanças públicas. Nem deveria deixar que o projeto do novo arcabouço fiscal vá se desenhando como um outro limitador de investimentos essenciais e estratégicos em nome do sagrado dever de manter os gastos financeiros da dívida em dia.
É certo que a sociedade, suas articulações, fóruns e partidos convoquem e se auto-convoquem para isso. Mas o presidente não pode deixar meias verdades no ar, sem, concomitantemente, abrir espaços participativos para que as mesmas verdades possam ser ditas por inteiro. Qualquer gesto no sentido de formalizar a participação popular será vão sem que haja espaços de repolitização das políticas monetária, cambial, tributária e creditícia. O que passa pela criação de espaços de controle social e de participação popular sobre as decisões do Copom – Comitê de Política Monetária, da Secretaria do Tesouro do Ministério da Fazenda, das instâncias do Banco Central de fiscalização dos Bancos Privados, dos Conselhos administrativos do BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, entre outros espaços de formulação da política econômica.
A discussão sobre o que deve ser limitado e o que deve ser ampliado quanto à atuação do Estado e sua relação com o mercado deve ser socializada, com a prévia elaboração de estudos técnicos independentes e seu posterior cotejamento em audiências públicas que desemboquem em uma consulta popular que se debruce sobre o controle e o destino das finanças públicas no Brasil.
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O fascismo de mercado e a alternativa de Lula. Artigo de Luís Fernando Novoa Garzón - Instituto Humanitas Unisinos - IHU