16 Janeiro 2023
"Desinteresse pela dimensão religiosa da vida ou desinteresse por uma religiosidade esclerosada e desgastada que não consegue tocar a esfera mais profunda e o mundo interior das pessoas? Tomada de distância da Igreja ou tomada de distância de um modelo de Igreja caracterizado pelo clericocentrismo que, de fato, impede o reconhecimento da dignidade de todo crente e a participação na missão evangelizadora de todo batizado?", questiona Andrea Lebra, leigo católico italiano, em artigo publicado por Settimana News, 15-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Este ano marca o sexagésimo aniversário do início do Concílio Vaticano II. O que foi o evento do Concílio senão uma grande ocasião de conversão para toda a Igreja? [...]. Assim, como já aconteceu outras vezes na história da Igreja, também em nossa época, como comunidade de crentes, nos sentimos chamados à conversão. E esse percurso está longe de terminar. A atual reflexão sobre a sinodalidade da Igreja nasce precisamente da convicção de que o percurso de compreensão da mensagem de Cristo não tem fim e nos interpela continuamente.
O oposto da conversão é o fixismo, ou seja, a convicção oculta de não precisar de nenhuma outra compreensão do Evangelho. É o erro de querer cristalizar a mensagem de Jesus em uma única forma sempre válida. A forma, ao contrário, deve sempre poder mudar para que a substância permaneça sempre a mesma. A verdadeira heresia não consiste apenas em pregar outro Evangelho (cf. Gl 1,9), como nos lembra Paulo, mas também em deixar de traduzi-lo nas línguas e nos modos atuais, algo que o próprio Apóstolo dos Gentios fez. Conservar significa manter vivo e não aprisionar a mensagem de Cristo (Papa Francisco, Discurso à Cúria Romana de 22 de dezembro de 2022).
Esquecimento de Deus ou esquecimento de falsas imagens teístas de deus? Declínio do cristianismo ou de uma forma de cristianismo reduzido a doutrinalismo intelectualista desligado da vida? Abandono da fé ou abandono daquela fé que não é mais capaz de falar às esperanças de homens e mulheres que vivem no atual contexto cultural pós-moderno?
Desinteresse pela dimensão religiosa da vida ou desinteresse por uma religiosidade esclerosada e desgastada que não consegue tocar a esfera mais profunda e o mundo interior das pessoas? Tomada de distância da Igreja ou tomada de distância de um modelo de Igreja caracterizado pelo clericocentrismo que, de fato, impede o reconhecimento da dignidade de todo crente e a participação na missão evangelizadora de todo batizado?
São perguntas que me fiz ao ler o recente livro de um teólogo que aprecio pela clareza da linguagem, a profundidade do pensamento, a sintonia que sinto em sua argumentação, mas sobretudo pelo alimento espiritual que a leitura dos seus escritos me proporciona.
Estou falando de Francesco Cosentino, professor de Teologia Fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana e participante na Secretaria de Estado da Santa Sé, autor de Dio ai confini. La rivelazione di Dio nel tempo della irrilevanza cristiana, (Deus nas fronteiras. A revelação de Deus no tempo da irrelevância cristã, em tradução livre) Edizioni San Paolo, Cinisello Balsamo (MI) 2022.
Um ensaio que procura responder ao problema teológico mais antigo, mais urgente e atual: como é possível “uma autêntica experiência de Deus” (p. 5) num tempo, como o nosso, “caracterizado pelo escurecimento da luz celeste e pelo eclipse de Deus” (p. 6)?
O autor faz questão de ressaltar que, quando se fala de Deus, profetizamos uma palavra que, “ao mesmo tempo que nos remete para a transcendência inefável do Mistério divino”, está “gravada também no coração da humanidade e da sua história” (p. 6), uma presença que não se impõe e que se experimenta paradoxalmente na sua ausência (p. 131). Um Deus plenamente revelado na pessoa de Jesus, mas também oculto (p. 130), porque permanece sempre além do nosso entendimento, abrindo-nos ao assombro da adoração e da inspiração mística (p. 127). Deus! Do qual “é sempre mais o que não podemos dizer do que o que conseguimos balbuciar” (p. 126).
Mas sobretudo - como o título sugere - um Deus "às" e "das" fronteiras: um Deus que o cristianismo invoca e celebra como Aquele que atravessou “o limiar da história, vindo Ele mesmo e foi o primeiro a habitar a fronteira entre o divino e o humano e os limites mais frágeis e efémeros da nossa existência, situados sempre entre o existir e o anular-se, entre a luz e as trevas, a expectativa e a realidade, o falar e o indizível, a vivacidade dos sonhos e o grito entrecortado do sofrimento” (p. 134).
Nessa perspectiva, o conteúdo da obra desenvolve-se em quatro densos capítulos, tendo ao centro um Intermezzo sobre a história de Jesus de Nazaré, Aquele que, unindo o humano e o divino, nos revela o rosto de Deus que ninguém jamais viu (Jo 1,18). Com efeito, para quem confessa a fé cristã, compreender Deus significa acolher Jesus e a sua mensagem (p. 91).
Nos dois primeiros capítulos, o autor traça algumas contribuições decisivas de grandes nomes da teologia do século XX: de Dietrich Bonhoeffer a Johann Baptist Metz, de Karl Barth a Karl Rahner, de Hans Urs von Balthasar a Wolfhart Pannenberg, de Edward Schillebeeckx a expoentes da teologia da libertação sul-americana.
Teólogos que têm o mérito de ter tentado expor a "doutrina sobre Deus a partir da centralidade da revelação de Cristo" (p. 66), evitando o risco de reduzir o ato de fé "a um simples acolhimento e observância da doutrina e das verdades cristãs, com o consequente intelectualismo extrínseco que deriva e que separa a revelação de Deus da vida real do homem e da sua história” (p. 47) e recuperando “o valor da experiência pessoal da fé [... ] como um processo existencial/histórico mais que um dogma separado do tempo e da realidade” (p. 62).
No terceiro e quarto capítulos, porém, Cosentino oferece ideias preciosas e provocações envolventes porque aquele Deus que se revela livremente de muitas maneiras (p. 125) e que não cessa de questionar, inquietar e fascinar de várias formas também os homens e as mulheres de hoje "possa ser procurado e encontrado como o Deus da confiança e da esperança" (p. 131). Com uma condição: que quem o procura faça – segundo uma eloquente imagem de Henri De Lubac – como o nadador “que, para se manter nas ondas, avança no oceano obrigado a empurrar para trás uma nova onda a cada braçada. Descarta incessantemente as representações que estão sempre se formando, sabendo muito bem que elas o sustentam, mas que parar significaria perecer” (p. 209).
A experiência cristã, tal como a conhecemos e nos foi transmitida ao longo dos séculos, já não funciona mais. "Muitas pessoas deixaram de acreditar ou sua fé enfraqueceu e foi reduzida a um costume de circunstância porque as linguagens e as práticas de fé não falam mais às suas esperanças mais profundas" (p. 145). "O discurso da fé é marcado pelo ceticismo, pelo desgaste, pela indiferença" (p. 165).
É necessário - escreve Cosentino - abrir espaços "para redescobrir Deus de uma maneira nova" (p. 131). Para poder fazer isso é preciso ter coragem, perseverança e humildade de ficar no limiar, ou seja, estar dentro e fora ao mesmo tempo (p. 134).
Cosentino delineia uma "teologia das fronteiras", capaz de habitar os limiares e as questões do mundo e da cultura do nosso tempo com espírito crítico e, ao mesmo tempo, aprofundar e purificar a mensagem da fé cristã, criando as condições que o Evangelho continue a ser escutado com paixão e interesse, pois – como ensina Hegel em suas Lições sobre a filosofia da história – sem interesse e paixão “nada de significativo acontece na história” (p. 188).
Só nesse ficar "dentro e fora" é possível, por um lado, discernir os elementos fundamentais da experiência cristã que permitem relacionarmo-nos de forma viva e envolvente com o Deus de Jesus Cristo e, por outro, purificá-los de linguagens, de formas, de aspectos do passado que não são mais atuais (p. 172).
Específico do cristianismo, de fato, é dizer constantemente estar nos diferentes e mutáveis contextos culturais (p. 182): ele está sempre diante de nós, está sempre por vir e não se pode dizer que já foi vivido em todas as suas extensão e profundidade (p.132).
Trata-se de ficar no limiar da indiferença religiosa, que é a "marca do nosso tempo" (p. 160), para se confrontar pelo menos cinco fatores existenciais e culturais nos quais ela se enraíza e que tornam complexa a experiência de fé hoje:
Cinco situações limítrofes que pressionam e desafiam a nossa fé, que interpelam o nosso testemunho cristão e que precisam de uma reflexão teológica disponível para sair da cortina de ferro de formas tranquilizadoras de dogmatismo (p.161) e se colocar a serviço de uma proposta cristã capaz oferecer elementos úteis para libertar e desprender na existência dos homens e das mulheres "a Vida que o Evangelho transmite" (p. 9).
Trata-se de testemunhar de maneira nova com a vida e, se necessário, com as palavras, o Evangelho de sempre, "com uma atenção renovada às mudadas condições antropológicas, históricas e sociais de hoje", mostrando sua extraordinária atualidade e potencialidades humanizadoras (p.181).
Sem esquecer que o cristianismo, que não pode ser reduzido à devoção privada aos domingos, "apela a um seguimento arriscado e politicamente empenhado, libertando a fé da perigosa redução da devoção pessoal ou da soma das doutrinas, para torná-la uma realidade capaz de desencadear no hoje, no sofrimento atual e entre as inúmeras cruzes presentes, a memória subversiva e perigosa do homem de Nazaré e o consequente empenho a favor das vítimas e da justiça” (p. 83).
O nome de Deus tem sido usado e, em muitos contextos socioculturais, está sendo usado de maneira tão imprópria e distorcida (p. 202) que às vezes cabe se perguntar se o mandamento bíblico mais desconsiderado é precisamente aquele que proíbe fazer imagens de Deus (Ex 20,4 e Dt 5,8) e pronunciar o seu nome para fins vãos (Ex 20,7; Dt 5,11).
Esse mandamento bíblico nos convida a "considerar que, se Deus é aquilo a que a experiência crente se refere através de suas próprias imagens e conceitos, Ele ainda permanece não disponível" pois "transcende todo nosso pensamento e reflexão" (p. 128).
Assim, procedendo com cautela e também dispostos a tatear (p. 127) no escuro para falar de Deus, usando palavras sóbrias e essenciais (p. 234), tirando “as vestes do absolutismo dogmático” e assumindo aquele “modelo de humildade dialógica inerente à própria visão evangélica da missão cristã” (p. 229).
É sempre sábio "falar em voz baixa" sobre Deus. A sugestiva expressão é de Angelo Casati. “Falar em voz baixa sobre Deus não significa – como infelizmente alguns tentam dogmaticamente nos fazer acreditar – tornar Deus menor, mas sim torná-lo maior. Em voz baixa, por que sobre o mistério de Deus só podemos balbuciar alguma coisa. Com pudor. O mistério está além, muito além da pobreza de nossas palavras. Além do limiar” (Angelo Casati, La fede sottovoce, Edizioni Paoline, Milão 2002, pp. 186-187).
Outra característica da vida cristã, que aliás faz parte da natureza humana, é a configuração peregrina. Aquele do caminhante é o estilo de quem se coloca no seguimento de Jesus: inventando a cada oportunidade o caminho, recolocando-se em caminho na consciência de não ter ainda alcançado o destino, navegar mesmo à vista redefinindo continuamente "o navegador do próprio coração".
É a própria história bíblica da Aliança entre Deus e o seu povo que nos autoriza a passar “da ideia de uma estabilidade metafísica dentro da qual pensar também Deus à prioridade do acontecimento histórico, que implica caminhar para, a inquietação da busca, procedendo às apalpadelas e por passos graduais”. Quando dizem "história da salvação", os cristãos pensam em uma "salvação que acontece dentro do caminhar histórico e vivo e não acima ou fora" (p. 137).
Em essência, colocar-se e recolocar-se em caminho é a condição do crente. E aquela da fé cristã nada mais é do que uma história de partidas e repartidas no seguimento de Jesus que nos revelou de maneira surpreendente o rosto de Deus. Pode-se então afirmar que o Deus revelado por Jesus se encontra na estrada, caminhando.
Francesco Cosentino não tem dúvidas de que, nesse nosso tempo de irrelevância cristã e eclipse de Deus, o programa teológico-pastoral mais urgente é “voltar a Jesus, ao fascínio de sua pregação e à redescoberta da sua humanidade” (p. 121), porque “não são os cargos hierárquicos que fazem a diferença na Igreja, mas o seguimento real de Jesus e do Evangelho” (p. 224). Em Cristo, Deus mostra-nos o sentido e a lógica de uma vida plenamente humana, pois “Jesus intercepta, toca e alarga o desejo do homem de viver uma vida humanamente digna e boa, apoiada na confiança e na esperança no futuro, capaz de romper até as barreiras do mal, do nada e da morte" (p. 189).
“A revolução do cristianismo, tendo como centro a encarnação do Filho, distancia-se de uma ideia de Deus entendida como um soberano absoluto e individualista, em favor de um Deus que acolhe a diversidade de cada homem através da práxis hospitaleira de Jesus. Na palavra, no estilo e na ação do Filho de Deus se inaugura o convívio das diferenças” (p. 171).
É preciso, portanto, voltar a Jesus, o que significa, segundo o autor, “voltar ao essencial, à mensagem libertadora do Evangelho”, cultivando – e aqui Cosentino cita Timothy Radcliffe – “a certeza de que o cristianismo fará o coração das pessoas arder, como foi o caso dos discípulos de Emaús, apenas se eles virem nele não um código moral para nos manter na linha, mas um vibrante estilo de vida” (p. 248).
E, citando Christoph Theobald, o nosso autor recorda-nos também que “acreditar em Cristo significa descobrir continuamente o seu traço incomparável de tocar o que é humano e muitas vezes demasiado humano em nós e perceber assim a extraordinária cumplicidade entre o evangelho de Deus e o mistério da nossa humana existência" (p. 242).
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Falar de Deus em voz baixa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU