Liturgia nova em odres novos. Artigo de Goffredo Boselli

Fonte: Unsplash

03 Mai 2022

 

Se o modo de celebrar sempre espelhou o modo de ser da Igreja no mundo, imersa em uma “mudança de época”, a assembleia litúrgica não pode permanecer imóvel. Sim, é improrrogável levantar a questão sobre o modo de celebrar como cristãos em uma sociedade pós-cristã.

 

A opinião é de Goffredo Boselli, liturgista italiano, monge da Comunidade de Bose, na Itália, e colaborador da Comissão Episcopal para a Liturgia da Conferência Episcopal Italiana.

 

O artigo foi publicado na revista Vita Pastorale, de maio de 2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Em todas as épocas históricas, o modo de celebrar dos cristãos sempre espelhou o modo de ser da Igreja no mundo. No tempo das perseguições, os cristãos se reuniam no dia do Senhor em comunidades eucarísticas clandestinas, de modo que celebrar o dominicum valia mais do que a própria vida.

 

A partir do século IV, reunir-se em assembleia litúrgica naquelas mesmas basílicas onde no passado muitas vezes eles haviam sido condenados à morte significava ser uma Igreja livre, reconhecida pela autoridade política e beneficiária de uma visibilidade social.

 

No regime de cristandade da Idade Média, a assembleia litúrgica era a epifania daquelas hierarquias sociais do mundo que o cristianismo havia colaborado a moldar e que se manifestava como uma substancial coincidência entre ordem eclesial e ordem social, entre Igreja e Reino.

 

Na época barroca e tridentina, a centralidade que o Renascimento reconhecia ao ser humano teve como efeito a irrupção na assembleia litúrgica do indivíduo que marcou a Idade Moderna e a sua cultura. O modo de celebrar certificava, então, o esfacelamento da comunidade litúrgica em benefício da devoção pessoal. A assembleia era a soma de indivíduos devotos, mas isolados.

 

A reforma litúrgica do Vaticano II fez da recomposição do sentido comunitário da liturgia a sua principal missão. Desde o Concílio, o modo de ser assembleia manifestou um povo de Deus que celebra a sua fé no coração do mundo. Se está definitivamente conclamado que “não estamos mais na cristandade”, devemos reconhecer que, apesar das melhores intenções, a atual liturgia romana ainda é, em boa parte, filha da cristandade e é fruto de um trabalho realizado dentro ainda da cristandade e destinado a uma situação de cristandade que dava os primeiros sinais de colapso.

 

 

Nos anos 1960, era totalmente inimaginável a mudança de época que o Ocidente está vivendo nestes últimos anos. Dentro de uma liturgia Francisco chegou a perguntar: “As palavras dos nossos ritos despertam no coração das pessoas o desejo de se moverem ao encontro de Deus ou são uma ‘língua morta’, que fala apenas de si mesma e a si mesma?”.

 

Quinze anos antes, Christoph Theobald observava: “As linguagens da nossa tradição cristã se tornaram, para muitos, estranhas e petrificadas”. Magistério e teologia agora convergem sobre esse ponto.

 

Se o modo de celebrar sempre espelhou o modo de ser da Igreja no mundo, imersa em uma “mudança de época”, a assembleia litúrgica não pode permanecer imóvel. Sim, é improrrogável levantar a questão sobre o modo de celebrar como cristãos em uma sociedade pós-cristã.

 

Hoje, a situação nos força a tomarmos consciência de que, com toda a sua riqueza, a maior limitação da reforma litúrgica foi a de colocar vinho novo em odres velhos.

 

Agora, os odres estão rachando. Cabe a nós fazer odres novos para derramar o vinho novo da reforma litúrgica.

 

 

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