Por: Jéferson Ferreira Rodrigues | 29 Julho 2016
O ser humano, na tradição bíblica, percebeu-se na sua relação com a terra desde duas grandes narrativas: a primeira acentua a dominação, pois ancorada no vértice do “dominai e submetei” facilmente justifica o descaso e a exploração desmedida; a segunda provocada pela dimensão do dom e na consciência de “ter tudo sem possuir nada” instaura um processo de cuidado e responsabilidade, não apenas com a terra em si, mas com todos os seres, de modo especial os vulneráveis.
O “povo” de Deus entendeu-se como portador de uma promessa. Por causa dela, Abraão se fez peregrino e estrangeiro. Deixou tudo para assumir o desafio de buscar num “futuro” incerto a materialização de uma tríade recíproca: terra, descendência e benção. Foi esse o ritmo que conduziu o “povo” da promessa e conduz uma multidão de pessoas na esperança de um mundo possível, que inclusive pode-se traduzir por outra tríade: “terra, teto e trabalho”.
Dentre os elementos, que perpassam a “história da promessa”, percebe-se a tônica assumida pela “terra” em muitos contextos. Ela é um espaço geográfico, antropológico e teológico. Ela torna-se um problema radical, no coração da comunidade, sobretudo quando diante da “terra-promessa” constata-se que já se encontrava ocupada. É um embaraço que vem desde Abraão, que para não tomá-la, escolhe viver como estrangeiro. Mas, depois do Êxodo, evento marcante, a terra é “tomada” com violência por aqueles(as) portadores(as) da promessa.
A conquista da terra é a concretização da lógica da dominação, que fez pouco caso daqueles(as) que lá habitavam, e posteriormente estendeu-se para as relações com a terra num todo. Nela encontra-se uma explicação “sagrada" da exploração, que não é legitima, nem justificável, mas que acontece no mundo dos humanos. Contudo, o “povo” dando-se conta da atrocidade, logo percorre um caminho intermediário e catalizador: nutrindo a consciência de uma terra-dom, redescobre o Sábado numa nova relação através do cuidado digna de uma “nova criação”.
A “nova criação” é reafirmada, pela tradição cristã, no “novo inaugurado em Jesus”: o Reino que vem, cuja novidade é o espaço aberto para todos e a superação de esquemas e discursos obsoletos que oprimem a vida das pessoas e não cria um espaço de liberdade na libertação contínua. Quando o Reino é esvaziado numa análise sociológica em demasia, perde sua força escatológica e seu horizonte de esperança nutrido por uma tripla dimensão: antropológica, social e climática (resultado numa “imanência” que não dá conta de si).
Entretanto, a ênfase na exploração ganhou mais destaque, inclusive fazendo com que o descaso com a terra e os seres que nela compartilham suas existências ganhasse proporções globais. A opção pelo respeito e o reconhecimento da diversidade acabou caindo no esquecimento e na não-conveniência de uma sociedade antropocêntrica. Nela o ecológico é apenas paisagem e produto explorável. Por isso, é tempo de uma viva profecia, onde o direito dos vulneráveis se faça ouvir numa renovada consciência de justiça social e climática para neutralizar as discrepantes desigualdades da vida como um todo.
Apesar dos descompassos, pode-se observar uma crescente consciência de que coabitamos uma mesma casa e como tal somos responsáveis pelo seu cuidado e cultivo. Tudo está mutuamente implicado. Tudo é importante e digno para o “ritmo necessário” da vida como um todo (Francisco) e da experiência como “comunidade de vida global e circular” (Elizabeth Johnson). O extraordinário está na descoberta científica de uma “nova visão”: uma terra sem fronteiras, que guarda em si a distância referencial de um universo em contínua descoberta de si (expansão). É a visão ampliada, não restrita aos nossos territórios, mas atinge uma globalidade singular.
Diante de uma terra sem fronteiras: De onde vêm à razão e autoridade para construir pontes, muros, e barreiras? Por que uns têm tanto e outros praticamente nada? Nossas cidades são identificadas como um “amontoado de gente”, digno de uma estética do horror, ou ainda, da incapacidade de justiça. Não faltará um(a) iluminado(a) para dizer: a luta pela justiça é inviável e irrealizável. Claro, que é confortável tal discurso, sem uma real intervenção, sobretudo quando se tem o conforto de casas e gabinetes.
Nessa mesma esteira, Elizabeth A. Johnson, nos Cadernos Teologia Pública, edição 57, reflete sobre a criação na tradição cristã desde “novas interpretações”. Busca-se identificar o processo de elaboração do pensamento teológico e sua mútua relação com as questões ecológicas. É um processo que corresponde à vida eclesial num todo: ensinamento, teologia, liturgia, etc. Nele uma rica interação, mas um tempo de negligências, que precisam ser considerados, a fim de que possam ser horizonte de uma real “conversão” num estilo ecológico: interligado e distribuído.
O texto está organizado da seguinte maneira:
Os primeiros 1500 anos
Perdendo a Criação
Barreiras do caminho
Desafios de encontrar a Criação
Para acessar o texto: clique aqui
Elizabeth A. Johnson, teóloga norte-americana, professora na Fordham University e autora de vários livros - Aquela que É: O Mistério de Deus no trabalho teológico feminino (Petrópolis: Vozes, 1995), Nossa verdadeira irmã: teologia de Maria na comunhão dos santos (São Paulo: Loyola, 2006), Questões para o Deus vivo: mapeando fronteiras no discurso teológico (New York: Continnum, 2007).
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Criação na Tradição Cristã: uma “hermenêutica” de encontros e desencontros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU