27 Junho 2013
A ideia da criação contínua significa que nós podemos pensar Deus como princípio de todas as coisas, porque as coisas não estão já concluídas, mas requerem sempre um eterno principiar inesgotável.
A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Università Vita-Salute San Raffaele, de Milão. O texto é a síntese de sua recente conferência na Associação Oreundici, em Roma, e publicado na revista da instituição, de junho de 2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Há uma clara diferença em pensar o conceito de criação se o pensarmos como "criação contínua" ou como "criação concluída". Gênesis 2, 2 fala de uma criação concluída depois do sexto dia: "Deus viu que o que havia feito era muito bom e descansou e pôs fim a toda a sua obra".
A ideia da criação contínua significa, ao invés, que nós podemos pensar Deus como princípio de todas as coisas, porque as coisas não estão já concluídas, mas requerem sempre um eterno principiar inesgotável.
A afirmação bíblica de Gênesis 2, 2 é contrariada nos capítulos posteriores, onde o julgamento sobre a criação como "muito boa" encontra inúmeras atestações contrárias: o relato da serpente, o assassinato de Abel por Caim, a cena muito difícil de decifrar dos filhos de Deus que se enamoram pelas filhas dos homens e delas nascem os gigantes, página da qual os primeiros Padres da Igreja viram a origem do mal e de Satanás, depois o dilúvio universal, Babel e a divisão das línguas, a escravidão do Êxodo...
Portanto, como se pode dizer que a criação está concluída e que o mundo é todo bom? Na realidade, a própria Bíblia diz que o mundo é bom, mas não é "o" bem. E é por isso que a criação precisa de uma continuação, um trabalho contínuo que se pode chamar de amor, paixão, sacrifício.
A mente humana pensou a relação entre a origem do ser e o mundo em que a origem se manifesta de diversas maneiras. Nos dois extremos, há o modelo do monismo e do gnosticismo. Segundo os monistas, há uma perfeita coincidência entre a origem do ser e o ser que nos foi dado, há uma plena identificação entre Deus e o mundo: Deus sive natura, diz Spinoza; "tudo o que é real é racional, e tudo o que é racional é real", segundo as palavras de Hegel. Queres conhecer a Deus? Vai para dentro da natureza, diz Spinoza, entra em ti mesmo, porque tu também és natureza, não faças nada mais do que viver de modo mais consciente o teu ser natureza, porque Deus sive natura, natureza sive Deus.
No extremo oposto, o gnosticismo elaborou a teoria da catástrofe segundo a qual teria sido melhor se a criação não tivesse acontecido, porque ela não foi desejada por Deus, mas foi gerada por um deus de ínfimo nível (algumas correntes do gnosticismo consideravam que o mundo era obra não do Deus supremo do 1º eón, mas da última divindade, o 30º eón), que coloca um abismo intransponível entre a natureza e o sumo Deus. Se queres encontrar Deus, se queres alcançar a verdade última sobre ti, deves fugir do mundo, negar tudo o que tem a ver com a natureza, particularmente o teu corpo de carne.
Nós, cristãos, adotamos o modelo da criação e nos colocamos mais ou menos no meio do caminho entre os dois extremos, porque crer na criação significa que o ser da forma como ele aparece, isto é, o nosso corpo, os animais, as plantas, a água, o ar, toda a realidade criada vem realmente de Deus, mas não é o próprio Deus. É bom, mas não é "o" bem. O ser criado é uma realidade secundária de uma Realidade primária da qual provém.
Aqui se insere o grandíssimo problema do mal que o modelo da criação contínua ajuda a definir de maneira nova. Ele requer um processo em devir e não uma perfeição inicial; consequentemente, o negativo do mundo não é interpretado como a consequência de um evento particular pensado como rebelião, como culpa original, que rompeu a perfeição, pela simples razão de que o início não é perfeição. O estado inicial do mundo, ao invés, é pensável como quantum de energia informe e caótica que, pouco a pouco, recebe forma produzindo oásis de cosmos. Toda a história, bíblica ou não, é uma contínua luta contra o caos, todo o processo em que estamos inseridos é logos mais caos.
Mesmo os pensamentos que saem da nossa mente são o resultado dessa luta contínua entre logos e caos. Quando o logos consegue vencer sobre o caos, gera-se o cosmos; na medida em que temos uma mente ordenada, ela é cosmos, jardim, éden. Diante da desordem caótica dos pensamentos, uma alma capaz de viver segundo uma espiritualidade e segundo valores é o cosmos, jardim, beleza. Mas o jardim da nossa mente requer que, todos os dias, nós trabalhemos para dar ordem ao caos, porque o caos pressiona.
Quem é o santo, o sábio, a pessoa luminosa? Aquele cuja existência é constantemente cosmos, jardim. A meta é alcançar essa ordem, cada um segundo o seu próprio estilo, as próprias características, a própria cultura, a própria tradição espiritual. A meta é fazer de nós mesmos um jardim.
O caos, porém, não é apenas um fator negativo, é também a condição para que o novo possa nascer. Se a vida fosse só resistência contra o caos, a sua interpretação seria simples, mas às vezes o caos requer a abertura das portas à sua ação, que ele seja aceito, às vezes até que ele seja incrementado. Por isso é tão difícil viver, porque a fronteira entre resistência e rendição deve ser cada vez compreendida e definida.
Penso que o nosso tempo é o tempo das perguntas radicais: se não enfrentarmos as objeções poderosas, se trouxermos à tona o negativo, se não discutirmos os problemas na raiz, hoje não há nenhuma possibilidade de viver responsavelmente e, além disso, de transmitir aos nossos jovens o patrimônio espiritual cristão.
Recentemente, eu estive dialogando com um mestre budista que me dizia: vocês, cristãos, são decididamente mais fracos do ponto de vista lógico, são menos preparados, não se colocam as perguntas radicais sobre o fundamento de Deus. Vocês são mais fortes, porém, no que diz respeito à caridade: quando eu abro o meu coração ao amor, eu entendo que estou Deus e que Deus está em mim, essa é a experiência essencial dos cristãos.
Com efeito, a espiritualidade budista, quanto à sua capacidade de gerar paz através da meditação, é mais eficaz. O cristianismo, ao invés, é bastante dramático, o seu símbolo é a cruz, expressão máxima de tragicidade e de dor. A própria Bíblia é um texto dramático, às vezes até mesmo trágico e violento.
Segundo o cristianismo, a relação entre Deus e o mundo não é uma relação pacífica; ao invés, é drama, luta, trabalho, criação contínua. E requer amor. O cristianismo é a religião do amor como pathos-paixão.
Nós, cristãos, sempre voltamos a falar do amor e não podemos fazer outra coisa. Mas o amor cristão é tensão, é expressão de um coração e de um ser que tende a algo maior e mais justo deste mundo, um amor inquieto que espera céus e terra novos para consolar os aflitos e secar as lágrimas da dor inocente.
Se tirarmos o amor-tensão, a insatisfação profunda que a ideia do bem verdadeiramente realizado nele insere, as diversas formas de monismo panteísta, seja orientais, seja ocidentais, têm razão. A tensão ética do amor, ao invés, obriga a olhar para o mundo como um processo que tem elementos de positividade, mas que também contém muita negatividade, é uma tensão que vem do amor e que produz amor como ação. Não é por acaso que os direitos humanos foram afirmados no Ocidente cristão e não em países dominados por outras espiritualidades – e digo isso sem nenhuma acepção polêmica, ao contrário, tenho um grandíssimo respeito por todas as tradições espirituais, particularmente pelo budismo, que eu considero como a tradição mais profunda e mais pura ao lado do cristianismo, e acredito que o futuro levará a integrar cada vez mais essas duas tradições.
Se desaparecesse essa tensão com relação ao primado do amor, o cristianismo desapareceria. O que significa "Deus é amor"? Significa que o sentido último do ser é o amor, não só como eros ou sentimento erótico, não só como philia ou amizade apaixonada por pessoas e coisas, mas também e sobretudo como ágape, amor universal, dedicação gratuita, luta pelo bem e pela justiça.
Em que relação a tensão com respeito ao amor que eu tenho dentro de mim está com o meu ser natureza, com o meu ser um pedaço de mundo? Quando eu amo, quando eu estou tenso com relação ao bem e à justiça, eu realizo a mim mesmo como natureza, ou vou contra o meu ser elemento natural? Disso depende a relação entre espiritualidade e ética, de um lado, e entre física, biologia e cosmologia, de outro.
Quem aceita olhar para o mundo e para a natureza como criação contínua considera que viver segundo o bem não é algo que se contrapõe ao próprio ser natural, mas, ao contrário, é algo que o cumpre e o aperfeiçoa. Apesar da minha grande admiração por Simone Weil, não compartilho o seu ideal do bem e da justiça pensados sob a insígnia da "decriação". Ao contrário, encontro-me do lado de Etty Hillesum e de Teilhard de Chardin, isto é, daqueles que consideram que a matéria também participa da santidade, que entre espírito e matéria não há distinção, e que, portanto, quando se trabalha pelo bem, não se faz nada mais do que potencializar a lógica da criação.
Se examinarmos a criação no seu processo, vemos que a forma pela qual ela se desenvolve é a relação: para que haja uma evolução com relação ao caos inicial, é necessário que os elementos primários se entrelacem em relações ordenadas. A lógica última das coisas é a relação: quanto mais se insere energia positiva no mundo, potencializando as relações, criando harmonia entre os diversos elementos, mais nos realizamos, sobretudo como ser natural. O que realizar-se? Tornar-se mais real, mais verdadeiro, significa aderir mais ao real.
Crer cristãmente na criação significa pensar que a relação entre a Realidade primária tradicionalmente chamada de Deus e a realidade secundária tradicionalmente chamada de mundo está marcada de modo exemplar, paradigmático, normativo na história de Jesus. Significa crer que a história da encarnação, paixão, morte e ressurreição, bem longe de ser apenas uma história ocorrida há 2.000 anos, nos confia, aqui e agora, a lógica eterna mediante a qual se dá a relação entre Realidade primária e realidade secundária.
Para que possa se dar a evolução neste mundo, para que haja vitória do cosmos contra o caos, é preciso inserir trabalho no sistema-mundo, e essa inserção de trabalho é paixão. Essa paixão se chama amor, mas também se pode chamar de cruz. A cruz, nessa perspectiva, não é mais dolorismo; por trás da cruz, há algo muito mais profundo, porque a história que disse respeito a Jesus de Nazaré há 2.000 anos é a representação de uma lógica perene que desde sempre, mesmo agora, marca a relação Deus-mundo.
Os Evangelhos testemunham que a lógica mediante a qual o mundo se faz, requer que subamos a Jerusalém, sejamos perseguidos e, algumas vezes, cheguemos a derramar o próprio sangue. Essa lógica é exemplificada na vida dos mártires eclesiais e dos mártires civis de todos os tempos, daquelas pessoas que deram a vida para introduzir justiça e ordem vital neste mundo.
Oscar Romero sabia muito bem que seria morto, do mesmo modo como sabiam Giovanni Falcone, Paolo Borsellino, Rosario Livatino, Giorgio Ambrosoli, o Mahatma Gandhi, Martin Luther King, Isaac Rabin...
Platão escreveu, quatro séculos e meio antes de Cristo: "O justo, precisamente por causa das suas atitudes, será flagelado, torturado, jogado em cadeias, lhe serão queimados os olhos e, por último, depois de ter sofrido todos esses males, será suspenso na estaca". Muitos Padres da Igreja definiram Platão como um profeta: é verdade, mas não é um profeta do Jesus histórico, mas sim do Cristo cósmico, daquela lógica divina que necessariamente encontra oposições na medida em que quer realizar neste mundo o bem e a justiça.
No dia 13 de fevereiro de 1937, um matemático, teólogo e sacerdote russo, no quinto ano de prisão em um campo de concentração russo, detido por ter se recusado a abjurar a própria fé, negação viva da ideologia comunista, segundo a qual bastaria estudar para fazer cair da mente todas as superstições da religião, Pavel Florensky, escreveu à esposa, Anna Giacintova: "Sim, a vida é feita de modo que se possa dar algo ao mundo somente pagando o preço com sofrimentos e perseguições, e quando mais o dom é desinteressado, mais cruéis são as perseguições e mais duros são os sofrimentos. Tal é a lei da vida, o seu axioma básico".
É por isso que nós, cristãos, cremos na criação contínua através do amor, ou seja, através da cruz.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A criação contínua. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU