“O flagelo da Pandemia. Um teste e uma grande ocasião para nos convertermos e recuperarmos a autenticidade”, constata o Papa Francisco

Foto: Vatican Media

22 Dezembro 2020

"A reflexão sobre a crise alerta para não julgarmos precipitadamente a Igreja com base nas crises causadas pelos escândalos de ontem e de hoje, como fez o profeta Elias que, desabafando com o Senhor, Lhe apresentou uma descrição da realidade sem esperança: «Ardo em zelo pelo Senhor, Deus do universo, porque os filhos de Israel abandonaram a tua aliança, derrubaram os teus altares e mataram os teus profetas. Só eu escapei; mas agora também me querem matar a mim» (1 Rs 19, 14)", afirmou o Papa Francisco na audiência à Cúria Romana por ocasião da apresentação das Saudações de Natal, no dia 21-12-2020.

O discurso é publicado por Vatican News, 21-12-2020.

Segundo o papa, "estamos assustados com a crise não só porque nos esquecemos de a avaliar como o Evangelho nos convida a fazê-lo, mas também porque olvidamos que o Evangelho é o primeiro a colocar-nos em crise.[2] Mas, se reencontrarmos a coragem e a humildade de dizer em voz alta que o tempo da crise é um tempo do Espírito, então, mesmo no meio da experiência da escuridão, da fraqueza, da fragilidade, das contradições, da confusão, já não nos sentiremos esmagados, mas conservaremos sempre a confiança íntima de que as coisas estão prestes a assumir uma forma nova, nascida exclusivamente da experiência duma graça escondida na escuridão. «Porque no fogo se prova o ouro; e os eleitos de Deus, no cadinho da humilhação» (Sir 2, 5)"

 

 

Eis o discurso.

 

Queridos irmãos e irmãs!

 

1. O Natal de Jesus de Nazaré é o mistério dum nascimento que nos recorda que «os homens, embora tenham de morrer, não nasceram para morrer, mas para começar», como observa de maneira clarividente e incisiva Hannah Arendt, a filósofa judia que inverte o pensamento do seu mestre Heidegger, segundo o qual o homem nasce para ser lançado na morte. Sobre as ruínas dos totalitarismos do século XX, Arendt reconhece esta verdade luminosa: «O milagre que preserva o mundo, a esfera das vicissitudes humanas, da sua ruína normal, “natural”, é em última instância o fato da natalidade. (...) É esta e esperança no mundo que encontra a sua expressão talvez mais gloriosa e eficaz nas poucas palavras com que o Evangelho anunciou a “feliz notícia” do advento: “Um menino nasceu para nós”».[1]

 

 

2. Perante o mistério da Encarnação, junto do Menino deitado numa manjedoura (cf. Lc 2, 16), bem como diante do Mistério Pascal, na presença do homem crucificado, só encontramos o lugar certo se nos apresentarmos desarmados, humildes, essenciais; só depois de termos realizado no meio onde vivemos – incluindo a Cúria Romana – o programa de vida sugerido por São Paulo: «Toda a espécie de azedume, raiva, ira, gritaria e injúria desapareça de vós, juntamente com toda a maldade. Sede, antes, bondosos uns para com os outros, compassivos; perdoando-vos mutuamente como também Deus vos perdoou em Cristo» (Ef 4, 31-32); só se estivermos «revestidos de humildade» (cf. 1 Ped 5, 5), imitando Jesus «manso e humilde de coração» (Mt 11, 29); só depois de nos termos colocado «no último lugar» (Lc 14, 10) e feito «servo de todos» (cf. Mc 10, 44). A este respeito, nos seus Exercícios, Santo Inácio chega ao ponto de pedir que nos imaginemos no cenário do presépio, «fazendo-me eu – escreve – pobre e indigno servo que olha para eles, contempla-os e serve-os nas suas necessidades» (114, 2).

 

 

3. Este Natal fica marcado pela pandemia, pela crise sanitária, econômica, social e até eclesial que atingiu, sem distinções, o mundo inteiro. A crise deixou de ser um lugar-comum dos discursos e da elite intelectual para se tornar uma realidade partilhada por todos.

 

Este flagelo foi um teste considerável e, ao mesmo tempo, uma grande ocasião para nos convertermos e recuperarmos a autenticidade.

 

 

Quando em 27 de março passado, no Adro de São Pedro com a Praça aparentemente vazia quando, na realidade, estava cheia graças à pertença fraterna que nos acomuna nos vários cantos da terra, quis rezar por todos e com todos, tive ocasião de referir em voz alta o possível significado da «tempestade» (cf. Mc 4, 35-41) que se abatera sobre o mundo: «A tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. Mostra-nos como deixamos adormecido e abandonado aquilo que nutre, sustenta e dá força à nossa vida e à nossa comunidade.

A tempestade põe a descoberto todos os propósitos de “empacotar” e esquecer o que alimentou a alma dos nossos povos; todas as tentativas de anestesiar com hábitos aparentemente “salvadores”, incapazes de fazer apelo às nossas raízes e evocar a memória dos nossos idosos, privando-nos assim da imunidade necessária para enfrentar as adversidades. Com a tempestade, caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso “eu” sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos».

 

 

4. Precisamente neste tempo difícil, quis a Providência dar-me a possibilidade de escrever a encíclica Fratelli tutti, dedicada ao tema da fraternidade e da amizade social. E dos «evangelhos da infância», onde se narra o nascimento de Jesus, vem-nos uma grande lição, ou seja, a de uma nova cumplicidade e união que se cria entre quantos são os seus protagonistas: Maria, José, os pastores, os magos e todos aqueles que, duma forma ou doutra, ofereceram a sua fraternidade, a sua amizade, para poder ser acolhido na escuridão da história o Verbo que Se fez carne (cf. Jo 1, 14).

Assim deixei escrito na referida encíclica: «Desejo ardentemente que, neste tempo que nos cabe viver, reconhecendo a dignidade de cada pessoa humana, possamos fazer renascer, entre todos, um anseio mundial de fraternidade. Entre todos: Aqui está um ótimo segredo para sonhar e tornar a nossa vida uma bela aventura. Ninguém pode enfrentar a vida isoladamente (...); precisamos duma comunidade que nos apoie, que nos auxilie e dentro da qual nos ajudemos mutuamente a olhar em frente. Como é importante sonhar juntos! (...) Sozinho, corres o risco de ter miragens, vendo aquilo que não existe; é juntos que se constroem os sonhos. Sonhemos como uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos desta mesma terra que nos alberga a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos» (Fratelli tutti, 8).

 

5. A crise da pandemia é ocasião propícia para uma breve reflexão sobre o significado da crise em si mesma, que nos possa ajudar a cada um.

 

A crise é um fenômeno que afeta tudo e todos. Presente por todo o lado e em cada período da história, envolve as ideologias, a política, a economia, a técnica, a ecologia, a religião. Trata-se duma etapa obrigatória da história pessoal e social. Manifesta-se como um facto extraordinário, que provoca sempre um sentimento de trepidação, angústia, desequilíbrio e incerteza nas opções a tomar. Como lembra a raiz etimológica do verbo krino, a crise é aquele crivo que limpa o grão de trigo depois da
ceifa.

 

A própria Bíblia está povoada por pessoas que foram «passadas pelo crivo», por «personagens em crise», mas que, precisamente através dela, realizam a história da salvação.

 

A crise de Abraão, que deixa a sua terra (Gn 12, 1-2) e vive a grande prova de dever sacrificar a Deus o seu único filho, Isaac (Gn 22, 1-19), é resolvida, do ponto de vista teologal, com o nascimento dum novo povo. Mas este nascimento não poupa Abraão de viver um drama onde a confusão e o desorientamento só não prevaleceram graças à fortaleza da sua fé.

 

A crise de Moisés manifesta-se na falta de confiança em si mesmo: «Quem sou eu para ir ter com o faraó e fazer sair os filhos de Israel do Egito?» (Ex 3, 11); «eu não sou um homem dotado para falar (...), tenho a boca e a língua pesadas» (Ex 4, 10); «sou incircunciso de lábios» (Ex 6, 12.30). Por isso, tenta evitar a missão que Deus lhe confia: «Senhor, envia a mensagem pela mão de outro» (Ex 4, 13). Mas, por meio desta crise, Deus fez de Moisés o seu servo, que guiou o povo para fora do
Egito.

 

Elias, o profeta tão forte que foi comparado ao fogo (cf. Sir 48, 1), num momento de grande crise até desejou a morte, mas depois experimentou a presença de Deus, não no vento impetuoso, nem no tremor de terra, nem no fogo, mas no «murmúrio duma brisa suave» (cf. 1 Rs 19, 11-12). A voz de Deus nunca é a voz rumorosa da crise, mas é o murmúrio que nos fala dentro da própria crise.

 

João Baptista sente-se acabrunhado pela dúvida sobre a identidade messiânica de Jesus (cf. Mt 11, 2-6), porque não Se apresenta como o justiceiro que ele talvez esperasse (cf. Mt 3, 11-12); mas é precisamente depois do facto da prisão de João que Jesus começa a pregar o Evangelho de Deus (cf. Mc 1, 14).

 

E ainda a crise religiosa de Paulo de Tarso: abalado pelo deslumbrante encontro com Cristo no caminho de Damasco (cf. At9, 1-19; Gal 1, 15-16), é impelido a deixar as suas seguranças para seguir Jesus (cf. Flp 3, 4-10). São Paulo foi verdadeiramente um homem que se deixou transformar pela crise e, por isso, foi o artífice daquela crise que impeliu a Igreja a sair do recinto de Israel para chegar aos confins da terra.

 

Poderíamos prolongar a lista de personagens bíblicos; e cada um de nós poderia encontrar nela o seu lugar. Mas a crise mais eloquente é a de Jesus: os evangelhos sinóticos destacam que inaugura a sua vida pública com a experiência da crise vivida nas tentações. Embora o protagonista desta situação possa parecer o diabo com as suas falsas propostas, todavia o verdadeiro protagonista é o Espírito Santo; é Ele, de facto, quem conduz Jesus neste momento decisivo da sua vida: «O Espírito conduziu Jesus ao deserto, a fim de ser tentado pelo diabo» (Mt 4, 1).

 

Os evangelistas evidenciam que os quarenta dias vividos por Jesus no deserto estão marcados pela experiência da fome e da fragilidade (cf. Mt 4, 2; Lc 4, 2). E é precisamente no mais fundo desta fome e desta fragilidade que o maligno tenta jogar o seu trunfo, aproveitando-se da humanidade cansada de Jesus. Mas, naquele homem provado pelo jejum, o Tentador experimenta a presença do Filho de Deus que sabe vencer a tentação por meio da Palavra de Deus. Jesus nunca dialoga com o diabo: expulsa-o ou obriga-o a manifestar o seu nome; com o diabo, nunca se dialoga.

 

Depois Jesus enfrentou uma crise indescritível no Getsêmani: solidão, medo, angústia, a traição de Judas e o abandono dos Apóstolos (cf. Mt 26, 36-50). Por fim, vem a crise extrema na cruz: a solidariedade com os pecadores até ao ponto de Se sentir abandonado pelo Pai (cf. Mt 27, 46). Apesar disso, é com plena confiança que entregou o seu espírito nas mãos do Pai (cf. Lc 23, 46). E este seu abandono total e confiante abriu o caminho da ressurreição (cf. Heb 5, 7).

 

6. Esta reflexão sobre a crise alerta para não julgarmos precipitadamente a Igreja com base nas crises causadas pelos escândalos de ontem e de hoje, como fez o profeta Elias que, desabafando com o Senhor, Lhe apresentou uma descrição da realidade sem esperança: «Ardo em zelo pelo Senhor, Deus do universo, porque os filhos de Israel abandonaram a tua aliança, derrubaram os teus altares e mataram os teus profetas. Só eu escapei; mas agora também me querem matar a mim» (1 Rs 19, 14).

 

Quantas vezes também as nossas análises eclesiais parecem descrições sem esperança. Uma leitura da realidade sem esperança não se pode chamar realista. A esperança dá às nossas análises aquilo que muitas vezes o nosso olhar míope é incapaz de captar. Deus responde a Elias que a realidade não é assim como ele a percebeu: «Vai e volta pelo caminho do deserto em direção a Damasco (...), deixarei com vida em Israel sete mil homens que não ajoelharam perante Baal e cujos lábios o não beijaram» (1 Rs 19, 15.18). Não é verdade que o profeta está sozinho. Deus continua a fazer germinar as sementes do seu Reino no meio de nós. Aqui, na Cúria, muitos são os que dão testemunho com o seu trabalho humilde, discreto, silencioso, leal, profissional, honesto. O nosso tempo também tem os seus problemas, mas possui igualmente o testemunho vivo de que o Senhor não abandonou o seu povo, com a única diferença de que os problemas vão parar imediatamente aos jornais, enquanto os sinais de esperança fazem notícia só depois de muito tempo e... nem sempre.

 

Quem não olha a crise à luz do Evangelho limita-se a fazer a autópsia dum cadáver. Estamos assustados com a crise não só porque nos esquecemos de a avaliar como o Evangelho nos convida a fazê-lo, mas também porque olvidamos que o Evangelho é o primeiro a colocar-nos em crise.[2] Mas, se reencontrarmos a coragem e a humildade de dizer em voz alta que o tempo da crise é um tempo do Espírito, então, mesmo no meio da experiência da escuridão, da fraqueza, da fragilidade, das contradições, da confusão, já não nos sentiremos esmagados, mas conservaremos sempre a confiança íntima de que as coisas estão prestes a assumir uma forma nova, nascida exclusivamente da experiência duma graça escondida na escuridão. «Porque no fogo se prova o ouro; e os eleitos de Deus, no cadinho da humilhação» (Sir 2, 5).

 

7. Por fim, gostaria de vos exortar a não confundir a crise com o conflito. A crise geralmente tem um desfecho positivo, enquanto o conflito cria sempre um contraste, uma competição, um antagonismo aparentemente sem solução, entre sujeitos que se dividem em amigos a amar e inimigos a combater, com a consequente vitória de uma das partes.

 

A lógica do conflito sempre busca os «culpados» a estigmatizar e desprezar e os «justos» a justificar, a fim de introduzir a noção – muitas vezes mágica – de que esta ou aquela situação nada tem a ver conosco. Esta perda do sentido duma pertença comum favorece o crescimento ou a afirmação de certas atitudes elitistas e de «grupos fechados» que promovem lógicas restritivas e parciais, que empobrecem a universalidade da nossa missão. «Quando paramos na conjuntura conflitual, perdemos o sentido da unidade profunda da realidade» (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 226).

 

Lida com as categorias de conflito – direita e esquerda, progressista e tradicionalista –, a Igreja divide-se, polariza-se, perverte-se e atraiçoa a sua verdadeira natureza: é um Corpo perenemente em crise, precisamente porque está vivo, mas não deve tornar-se jamais um Corpo em conflito com vencedores e vencidos, pois deste modo semeará temor, tornar-se-á mais rígida, menos sinodal, e imporá uma lógica uniforme e uniformizadora, muito distante da riqueza e pluralidade que o Espírito deu à sua Igreja.

 

A novidade introduzida pela crise querida pelo Espírito nunca é uma novidade em contraposição ao antigo, mas uma novidade que germina do antigo e o torna sempre fecundo. Jesus usa uma frase que expressa esta passagem de forma simples e clara: «Se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto» (Jo 12, 24). O ato de morrer da semente é ambivalente, porque assinala simultaneamente o fim dalguma coisa e o início doutra. Ao mesmo momento chamamos morte-apodrecer e nascimento-germinar, porque são a mesma coisa: diante dos nossos olhos, vemos um fim e, ao mesmo tempo, naquele fim manifesta-se um novo início.

 

 

Neste sentido, todas as resistências que fazemos ao entrar em crise, deixando-nos conduzir pelo Espírito no tempo da prova, condenam-nos a ficar sós e estéreis. Defendendo-nos da crise, obstaculizamos a obra da graça de Deus, que quer manifestar-se em nós e por meio de nós. Por isso, se um certo realismo nos mostra a nossa história recente apenas como a soma de tentativas, nem sempre bem-sucedidas, de escândalos, quedas, pecados, de contradições, de curtos-circuitos no testemunho, não devemos assustar-nos, nem negar a evidência de tudo aquilo que em nós e nas nossas comunidades é afetado pela morte e precisa de conversão. Tudo aquilo que de mau, contraditório, fraco e frágil se manifesta abertamente, lembra-nos ainda mais intensamente a necessidade de morrer para um modo de ser, raciocinar e agir que não reflete o Evangelho. Só morrendo para uma certa mentalidade é que conseguiremos também abrir espaço à novidade que o Espírito suscita constantemente no coração da Igreja.[3]

 

8. Subjacente a cada crise, há sempre uma justa exigência de atualização. Mas se quisermos de verdade uma atualização, devemos ter a coragem duma disponibilidade sem limites; há que deixar de pensar na reforma da Igreja como remendo dum vestido velho ou mera redação duma nova constituição apostólica.

 

Não se trata de «remendar uma peça de vestuário», porque a Igreja não é simples «vestido» de Cristo, mas o seu Corpo que abraça a história inteira (cf. 1 Cor 12, 27). Somos chamados, não a mudar ou reformar o Corpo de Cristo – «Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e pelos séculos» (Heb 13, 8) –, mas a revestir com um vestido novo aquele mesmo Corpo, a fim de que resulte claramente que a graça possuída não vem de nós, mas de Deus: de facto, «trazemos este tesouro em vasos de barro, para que se veja que este extraordinário poder é de Deus e não é nosso» (2 Cor 4, 7). A Igreja é sempre um vaso de barro, precioso pelo que contém e não pelo que às vezes mostra de si mesma.

 

Este é um tempo em que parece evidente que o barro de que fomos feitos está lascado, rachado, partido. Temos de esforçar-nos por que a nossa fragilidade não se torne obstáculo ao anúncio do Evangelho, mas lugar onde se manifeste o grande amor com que Deus, rico em misericórdia, nos amou e continua a amar (cf. Ef 2, 4).

 

Durante o período da crise, Jesus acautela-nos dalgumas tentativas de sair dela que, à partida, estão condenadas ao fracasso, como aquela que «recorta um bocado de roupa nova para o deitar em roupa velha»; o resultado é previsível: ficará rasgada a nova e, «à roupa velha, não se ajustará bem o remendo que vem da nova». Da mesma forma, «ninguém deita vinho novo em odres velhos; se o fizer, o vinho novo rompe os odres e derrama-se, e os odres ficarão perdidos. Mas deve deitar-se o vinho novo em odres novos» (Lc 5, 36-38).

 

O comportamento correto é o do «doutor da Lei instruído acerca do Reino dos céus [que] é semelhante a um pai de família, que tira coisas novas e antigas do seu tesouro» (Mt 13, 52). O tesouro é a Tradição; esta, como recordava Bento XVI, «é o rio vivo que nos liga às origens, o rio vivo no qual as origens estão sempre presentes. O grande rio que nos conduz ao porto da eternidade (Catequese, 26/IV/2006). São «coisas antigas» a verdade e a graça que já possuímos. As «coisas novas» são os vários aspetos da verdade que pouco a pouco vamos compreendendo. Nenhuma modalidade histórica de viver o Evangelho esgota a sua compreensão. Se nos deixarmos guiar pelo Espírito Santo, iremos dia após dia aproximando-nos cada vez mais da «Verdade completa» (Jo 16, 13). Ao contrário, sem a graça do Espírito Santo, pode-se até começar a conceber a Igreja de forma sinodal, mas, em vez de se referir à comunhão, chega a ser concebida como qualquer assembleia democrática composta por maiorias e minorias. Só a presença do Espírito Santo fará a diferença.

 

9. Como comportar-nos na crise? Antes de mais nada, aceitá-la como um tempo de graça que nos foi dado para compreender a vontade de Deus sobre cada um de nós e a Igreja inteira. É preciso entrar na lógica, aparentemente contraditória, de que, «quando sou fraco, então é que sou forte» (2 Cor 12, 10). Tenha-se presente a garantia dada por São Paulo aos Coríntios: «Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças, mas, com a tentação, vos dará os meios de sair dela e a força para a suportar» (1 Cor 10, 13).

 

Ponto fundamental é não interromper o diálogo com Deus, mesmo que seja cansativo. Não devemos cansar-nos de rezar sempre (cf. Lc 21, 36; 1 Ts 5, 17). Não conhecemos outra solução para os problemas que estamos a viver, senão a de rezar mais e, ao mesmo tempo, fazer tudo o que nos for possível com mais confiança. A oração permitir-nos-á ter «esperança, para além do que se podia esperar» (Rm 4, 18).

 

 

10. Amados irmãos e irmãs, conservemos uma grande paz e serenidade, plenamente conscientes de que todos nós, a começar por mim, somos apenas «servos inúteis» (Lc 17, 10), com quem usou de misericórdia o Senhor. Por isso, seria bom se deixássemos de viver em conflito e voltássemos a sentir-nos a caminho. O caminho sempre tem a ver com os verbos de movimento. A crise é movimento, faz parte do caminho. Ao contrário, o conflito é um caminho fictício, é um girovagar sem motivo nem finalidade, é permanecer no labirinto, é só desperdício de energias e ocasião de mal. E o primeiro mal a que nos leva o conflito e do qual devemos procurar fugir, é a murmuração, a maledicência, que nos fecha na mais triste, desagradável e sufocante autorreferencialidade e transforma toda a crise em conflito. Narra o Evangelho que os pastores acreditaram no anúncio do Anjo e puseram-se a caminho para ir ver Jesus (cf. Lc 2, 15-16). Ao contrário, Herodes fecha-se diante da narração dos Magos e transformou este seu fechamento em mentira e violência (cf. Mt 2, 1-16).

 

Cada um de nós, independentemente do lugar que ocupa na Igreja, interrogue-se se quer seguir Jesus com a docilidade dos pastores ou com a autoproteção de Herodes, segui-Lo na crise ou defender-se d’Ele no conflito.

 

Permiti que vos peça expressamente, a todos vós que me acompanhais no serviço do Evangelho, esta prenda de Natal: a vossa colaboração generosa e apaixonada no anúncio da Boa Nova sobretudo aos pobres (cf. Mt 11, 5). Lembremo-nos que só conhece verdadeiramente a Deus quem acolhe o pobre que vem de baixo com a sua miséria e que, precisamente nestas vestes, é enviado do Alto; não podemos ver o rosto de Deus, mas podemos experimentá-lo ao olhar para nós quando honramos o rosto do próximo, do outro que nos ocupa com as suas necessidades.[4]

 

 

Não haja ninguém que dificulte voluntariamente a obra que o Senhor está a realizar neste momento, e peçamos o dom da humildade do serviço a fim de que Ele cresça e nós diminuamos (cf. Jo 3, 30).

 

Boas-festas a todos, a cada um de vós, às vossas famílias e aos vossos amigos. E, por favor, rezai sempre por mim. Feliz Natal!

 

 

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Notas:

[1] Hannah Arendt, The Human Condition (Universidade de Chicago 1958), traduzido em italiano: Vita activa. La condizione umana (Bompiani – Milão 1994), 182.

[2] «Depois de O ouvirem, muitos dos seus discípulos disseram: “Que palavras insuportáveis! Quem pode entender isto?” Mas Jesus, sabendo no seu íntimo que os seus discípulos murmuravam a respeito disto, disse-lhes: “Isto escandaliza- vos?”» (Jo 6, 60-61). Mas somente a partir desta crise é que pôde nascer esta profissão de fé: «A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna» (Jo 6, 68).

[3] Bem cientes disto estavam os Padres da Igreja apelando continuamente à metanoia, de que já nos falava São Paulo: «Não vos acomodeis a este mundo. Pelo contrário, deixai-vos transformar, adquirindo uma nova mentalidade, para poderdes discernir qual é a vontade de Deus: o que é bom, o que Lhe é agradável, o que é perfeito» (Rm 12, 2).

[4] Cf. E. Levinas, Totalité et infini (Paris 2000), 76.

 

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