19 Mai 2021
"Recalcati capta e ao mesmo tempo torna ainda mais clara a essência contestadora da mensagem do Livro de Jó, mostrando que no final do Livro a conversão de Jó não é consequência de seu arrependimento que não existe, mas a sua fé obstinada. De fato - e este é o cerne da leitura de Recalcati - a mudança de perspectiva e, portanto, a 'conversão' de Jó é o resultado de uma outra visão da Lei que em suas normas nunca será capaz de integrar o sofrimento que se abate contra o homem justo e o bem que recompensa o homem ímpio", escreve Enzo Bianchi, monge italiano fundador da Comunidade de Bose, na Itália, em artigo publicado por La Repubblica, 18-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ler Jó em um tempo que não suporta a invocação do Pai Nosso "não nos deixeis cair em tentação" porque pode favorecer a imagem de um Deus perverso (Deus de fato não pode e não quer nos tentar, diz o Novo Testamento), torna-se uma operação difícil que desanima especialmente o fiel.
Il grido di Giobbe | Massimo Recalcati
Não era assim no passado do Cristianismo, quando o Livro de Jó merecia a assídua consulta de quem sofre para “aprender a paciência” e aceitar a mão esquerda de Deus para purificar os pecados cometidos. Na verdade, todo o Livro de Jó é baseado em um Deus que tenta, testa o crente, o induz à tentação. E nós hoje, lendo Jó, nos perguntamos: mas que imagem de Deus tinha Jó? No conflito de interpretações, buscamos uma possível leitura do livro mais enigmático do Grande Código.
Massimo Recalcati com esse seu novo livro tenta interpretar o Livro de Jó, um grito que está presente no início e no final da vida humana e que se eleva em direção ao Outro (quem é esse Outro?) quando a dor e o sofrimento recaem sobre todo homem ou mulher que está debaixo do céu. Até em Jó esse grito é invocação e blasfêmia, é assombro e revolta, porque no grito ao Outro Jó deve inventar uma imagem de Deus a partir do sofrimento padecido sobretudo pelos justos. Jó é um homem de fé, isto é, alguém que adere a Deus, mas fica abalado e despenca para o fundo, no fracasso e na desgraça que se abateram sobre ele após uma vida de justiça e fidelidade à Lei de Deus.
Por quê? Este é o grito mais dilacerante em Jó, mas não por acaso é o grito às vezes mudo de muitos fiéis na Bíblia, na hora de sua própria paixão como na hora da catástrofe em Jerusalém. Por quê? Lammah? Também repetem as Lamentações do profeta Jeremias. Mas vamos tentar nos concentrar sobretudo em um desses "porquês": por que a violência do mal se enfurece contra o inocente? Essa pergunta que o livro de Jó grava na carne do homo patiens, uma pergunta que tem atravessado os séculos e mantém intacta a sua atualidade é para Recalcati a pedra do escândalo:
“O sofrimento que não foi gerado pela culpa, que não é uma manifestação da retaliação da Lei contra o réu, excede toda forma de explicação. A dor do inocente subverte a representação moral da Lei de Deus, uma vez que nenhuma Lei, nem mesmo aquela de Deus, pode justificar sua existência”. Muito pouco para Jó constatar a insensatez da dor e a força de sua crueldade injustificada e por isso tem a audácia de convocar Deus à sua presença para encontrá-lo pessoalmente, "cara a cara". Diante do escândalo do justo atingido pelo mal, pelo sofrimento, pela rejeição de todos, Jó tem a coragem e a audácia de gritar como Deus lhe parece: "Um adversário, um opressor, um perseguidor, um ogro que ataca, um leão que devora ...”, porque Jó se sente esmagado, alvo das flechas de Deus, tratado pior do que um ímpio. Sim, Jó também se dirige ao Outro dessa forma, contestando não apenas sua ação, mas blasfemando contra sua face.
Por outro lado, a radicalidade da dor torna, de fato, inconsistente a explicação "religiosa" dos amigos de Jó, que sugerem que ele se encaminhe pela via do sacrifício purificador e expiatório. O justo Jó grita a Deus a radicalidade de sua inocência e a agudeza de seu grito subverte a representação da Lei de Deus porque ele pede ao Deus da Aliança as razões para a quebra da Aliança que a impossível justificação da dor inocente implacavelmente revela.
Recalcati capta e ao mesmo tempo torna ainda mais clara a essência contestadora da mensagem do Livro de Jó, mostrando que no final do Livro a conversão de Jó não é consequência de seu arrependimento que não existe, mas a sua fé obstinada. De fato - e este é o cerne da leitura de Recalcati - a mudança de perspectiva e, portanto, a "conversão" de Jó é o resultado de uma outra visão da Lei que em suas normas nunca será capaz de integrar o sofrimento que se abate contra o homem justo e o bem que recompensa o homem ímpio: "Se antes censurava a Deus por não presidir a uma Lei justa, agora não há mais nenhuma expectativa na existência desta Lei, porque é como se a própria Lei de Deus se dissolvesse no plano inescrutável da criação. O silêncio de Deus não revela a injustiça de Deus, mas é a condição para a existência do mundo".
Jó não é o homem de paciência, é o homem da contestação, mas para Recalcati ele é o homem de fé que, como Abraão e como Jesus - "Meu Deus, meu Deus por que me abandonaste?" - continua a ter fé em Deus, dirigindo-se para ele para encontrar aquele saber que lhe falta e para vir a compreender o sentido da insensatez do mal. Tanto para Jó como para Jesus “a única coisa que resiste para ambos - observa Recalcati - é a fé como resto salvífico, a fé no Pai que é a fé no próprio desejo e na sua lei. Ela - esta Lei, a Lei da fé - é o resto fecundo que retém a vida na vida, que não a deixa escorregar na morte e na destruição”.
A leitura de Recalcati é uma leitura que discretamente abre o Livro de Jó ao Evangelho, a Jesus, que para os cristãos foi aquele árbitro invocado por Jó entre ele e o Outro: “Porque ele não é homem, como eu, a quem eu responda, vindo juntamente a juízo. Não há entre nós árbitro que ponha a mão sobre nós ambos” (9,32-33). Podemos dizer que Jó permaneceu fiel mesmo quando Deus se mostrou infiel.
Através dos instrumentos da psicanálise, mais uma vez, após A noite do Getsêmani (em tradução livre, Einaudi 2019) e O gesto de Caim (Einaudi 2020), Recalcati mostra uma rara inteligência dos textos bíblicos que, sem ser confessional, sabe apreender a substância, tornando-a é eloquente para o homem e a mulher de hoje.
No final da leitura de Il grido di Giobbe (O grito de Jó) como fiel, tenho ainda mais razões para acreditar que ao sofrimento e à dor inocente pode-se dar um sentido quando, tendo abandonado todo titanismo, negada toda resignação e toda rendição ao sofrimento, engajados em uma verdadeira resistência ao sofrimento, então nos submetemos com um “Amém” para poder dizer: “Eu sou maior que o sofrimento que vivo”. Não resistência e rendição, mas resistência e submissão, como escrevia Bonhoeffer.
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O grito de Jó é um ato de fé. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU