Porque amamos também aqueles que nos deixam. Artigo de Enzo Bianchi

Foto: Betinho Casas Novas | Voz das Comunidades (Licença Creative Commons)

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27 Abril 2021

 

"Mas agora deixar que se acumulem caixões sem sepultamento, impedindo por semanas o último adeus, o dom de uma flor, uma visita vivida junto com aqueles que amaram aquela pessoa morta, é realmente desumanocruel. Dessa forma, os fundamentos da piedade humana são destruídos: também a Igreja hoje, infelizmente, tem dificuldade para compreender que não existe apenas uma pastoral dos vivos, mas também um serviço pastoral e humano para os mortos", escreve Enzo Bianchi, monge italiano fundador da Comunidade de Bose, na Itália, em artigo publicado por La Repubblica, 26-04-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

Sentimos dor e até horror quando vimos filas de caminhões militares saindo da cidade de Bérgamo carregando os caixões dos mortos de Covid para outros cemitérios ou crematórios, mas agora estamos atordoados, sentimos vergonha pelo que está acontecendo em algumas cidades italianas, a começar por Roma e Palermo: caixões empilhados que há semanas aguardam enterro. Essa situação dá a medida da aceleração da barbárie destas últimas décadas, pois a qualidade da humanização se mede pelas relações entre homens e mulheres que vivem, é claro, mas também pelas relações que se estabelecem com os homens e mulheres que nos deixaram.

Sabemos que o ato de sepultamento dos mortos remonta ao homem de Neandertal, que não abandonava os cadáveres a mercê dos animais ou ao relento, mas dava ao corpo morto uma postura especial, o colocava em uma caverna ou embaixo da terra em uma posição de descanso e cercado com uma decoração: pedras, objetos, flores que se tornaram um sinal de afeto e honra. Do homo sapiens, nosso ancestral, encontramos esqueletos fósseis de amantes abraçados até na morte, quase uma declaração de que o amor vive também na morte. Por que essa especificidade dos humanos dentro da comunidade dos animais a que pertencem? No enterro podemos discernir o sentimento de cuidado, a afirmação de um vínculo, a necessidade de recordar as pessoas desaparecidas dando-lhes um "sítio", um lugar preciso onde poder ir para uma visita, para uma oração, para levar uma flor. Talvez no enterro haja a esperança de que a morte não tenha a última palavra. Espalhar as cinzas, por outro lado, deveria ser um ato mais meditado e consciente: porque se mantidas em casa correm o risco de obedecer à lógica do fetichismo, se dispersas impedem ter um "memorial".

Mas agora deixar que se acumulem caixões sem sepultamento, impedindo por semanas o último adeus, o dom de uma flor, uma visita vivida junto com aqueles que amaram aquela pessoa morta, é realmente desumano, cruel. Dessa forma, os fundamentos da piedade humana são destruídos: também a Igreja hoje, infelizmente, tem dificuldade para compreender que não existe apenas uma pastoral dos vivos, mas também um serviço pastoral e humano para os mortos. E quando se torna impossível até mesmo um sepultamento que poderia encontrar lugar em tanta terra, então uma dimensão essencial da humanidade está prestes a desaparecer: a da comunhão entre vivos e mortos. Então não há mais espaço para nos pensarmos na continuidade das gerações e falta a consciência de que cada um de nós é precedido por outros pelos quais devemos nutrir sentimentos de gratidão. Assim, a morte aparece como um caminho fechado, a última realidade triunfante.

 

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