06 Abril 2021
Foi tudo muito rápido, não deu tempo de sentir nada, nem de perceber o que estava acontecendo. Era 23 de janeiro, e José Maria Evangelista completava 12 dias de internação no Hospital Rio Negro, no centro de Manaus. Seu filho Marcelo Augusto, de 21 anos, se lembra de ouvir da médica-responsável que, a qualquer momento, seria preciso “parar de tentar salvá-lo”, pois as sequelas seriam muito graves. “Ele ficou uns 20 minutos meio que morto”, afirma Marcelo, que mal pode ficar triste ou viver seu luto. Milhares de familiares como a do jovem manauara perderam até mesmo o direito de se despedir das vítimas da Covid-19.
A reportagem é de Edda Ribeiro, publicada por Amazônia Real, 04-04-2021.
Ao receber a notícia da morte do pai, Marcelo se postou numa fila para falar com a assistente social e dar conta dos procedimentos do velório. Com um papel amarelo nas mãos, ele saiu do hospital em direção à funerária. Foi ajudado por uma tia, que, por ser mais velha, é quem “entendia melhor essas coisas“. “Quando comecei a sentir uma tristeza, já estava dentro de um carro pegando documentos e indo resolver mais coisas”, lembra.
No dia seguinte, Marcelo viu o caixão do pai ao lado de outros três, de longe, enquanto aguardavam o transporte para o Cemitério Tarumã. Aquele breve momento foi o tempo que durou o velório de José Maria. No cemitério, enquanto via os tratores abrindo valas, o jovem enfrentou mais uma fila. “Havia uma ordem de chegada, cada caixão ia chegando e as pessoas sendo enterradas. Ficamos esperando a nossa vez. Um processo rápido e estranho.”
O Amazonas passa dos 12 mil mortos pelo novo coronavírus, e a capital Manaus concentra 8,4 mil deles, segundo dados do Ministério da Saúde. Nos três meses mais críticos da pandemia, conforme o infográfico abaixo, os jovens foram os menos atingidos pelo vírus; no entanto, muitos perderam pais e avós.
O motorista de ônibus José Maria, de 52 anos, foi mais uma vítima da Covid-19. Durante a internação no Hospital Rio Negro, o filho Marcelo e os irmãos ajudavam como podiam, da rotina de exames ao monitoramento do oxigênio. “Ele precisava de ajuda para levantar, fazer necessidades dele, dar banho”.
Houve um momento em que os profissionais, segundo o estudante de Letras da UEA, ficavam de olho para que, quando José estivesse com o pulmão recuperado, pudesse ganhar alta médica e ser tratado em casa. Na mesma semana, a capital do Amazonas enfrentava, desde o dia 14, um colapso devido à falta de oxigênio na rede de saúde. Após ter uma parada cardíaca, o motorista de ônibus foi intubado na última manhã antes de falecer, uma sexta-feira.
Quase dois meses depois, Marcelo vive com a mãe na mesma casa, na Colônia Santo Antônio, na zona norte de Manaus. Ele e a dona de casa de 49 anos resolveram alugar um quarto na casa e, com esse dinheiro, pagam o aluguel. O que sobra são os 95 reais do valor do gás e mais cerca de 100 reais para comida. “Estamos vendendo uma coisa aqui, outra ali, já pensando no dinheiro que vamos precisar”, afirma Marcelo à Amazônia Real. A família não conseguiu se inscrever em nenhum programa de auxílio financeiro.
Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real
Depois de um ano de pandemia, parentes de vítimas da Covid-19 relatam perdas de familiares, sofrimento psíquico, desemprego e falta de esperança. Entre aqueles que sobreviveram a luta ainda não terminou. A assistente social Thuane Michiles, de 28 anos, hoje respira aliviada que o pai, Jhuber, conseguiu sair da internação antes do colapso do oxigênio em Manaus, no mês de janeiro.
“Ele foi contaminado com a minha família inteira. Minha irmã mais velha tinha acabado de ter bebê. Ele, por incrível que pareça, já que era o ‘atleta’ da casa, foi o que agravou mais”, lembra Thuane.
Jhuber Michiles tinha 75 quilos quando foi internado no Hospital Delphina Aziz, em novembro de 2020. No dia 25 de dezembro, saiu pesando 28 quilos a menos. “No dia em que o pai foi intubado, ele ligou para se despedir, pois tinha certeza de que ia morrer.”
Jhuber passou 54 dias numa Unidade de Terapia Intensiva, com altos e baixos, até conseguir reagir à doença. “No dia do aniversário dele, me mandaram um vídeo cantando parabéns. Quando eu vi, passei tão mal que fui parar no pronto socorro”. A assistente social, na época com 7 meses de gestação, pediu afastamento do trabalho por 20 dias para se recuperar. Jhuber voltou para casa, mas foi só o começo de outra luta.
“Ele perdeu muito peso, voltou pra casa sem andar, falar e usando cadeira de rodas. Só se alimentava com líquidos”, lembra Thuane. Ela passou a cuidar também das crises de ansiedade de Jhuber, resultado da doença e do período de internação, que também adquiriu hipertensão por conta das sequelas da Covid-19. Thuane agora é mãe de um bebê de 17 dias, morando com seu pai para ajudar na recuperação.
Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real
Embora a plataforma Inloco – Índice de isolamento social tenha registrado que os índices de quarentena no Amazonas passaram dos 60% em janeiro, os números caem diariamente – hoje estão em 37,8%. Para alguns jovens, o confinamento reduz as experiências típicas das novas gerações, e o contato de um ano com a família pode ser uma “prova de fogo”.
Cecília, 20 anos, que prefere não informar o sobrenome, é artista amazonense e teve que interromper a carreira, pois cantava em bares para auxiliar a renda de casa. Teve Covid-19 em dezembro, quando flexibilizou a quarentena por necessidade. Precisava fazer shows para levar dinheiro para a família. Hoje dá aulas de violão para ajudar o pai, pastor, e a mãe, trancista. Ficar em casa e aderir ao isolamento restrito novamente teve seu custo: ela faz hoje tratamento psicológico devido a problemas de ansiedade.
“Procurei ajuda, pois o tempo ocioso, o tédio de fazer sempre a mesma coisa e estar sempre no mesmo ambiente desencadeia ansiedade. Você está surtando e não sabe como lidar, e o isolamento potencializa muita coisa e perde o limite da individualidade”, lamenta.
O jovem indígena do povo Tukano Pedro Costa, de 22 anos, não aderiu ao isolamento por causa do trabalho, que já voltou ao presencial. Teve Covid-19 logo após a morte da mãe, que faleceu por problemas cardíacos há 1 ano.
“Há algumas semanas voltei a pegar o transporte coletivo. Vejo que há muita discussão sobre a abertura de bares e sobre a aglomeração que isso pode causar, mas pouco se fala e se indigna da aglomeração cotidiana, existentes nos terminais e ônibus da capital”, diz o estudante.
“Indígenas estão incluídos no grupo de risco, mas por sermos de contexto urbano estamos fora da prioridade de vacinação”, protesta Pedro Costa. O caso das jovens irmãs médicas, indicadas pela Prefeitura de Manaus para furar a fila da vacinação em janeiro deste ano, foi motivo de grande indignação para ele. “Me afetou diretamente, pois mostra de forma descarada como funciona a desigualdade da estrutura social e racial do País. Enquanto indígenas, tanto em contexto urbano quanto os aldeados, lutam e recorrem para ter acesso a vacinas, pessoas de influência, em sua maioria, ricos e brancos, têm o acesso facilitado”, compara.
Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real
Rafael César, 33 anos, é professor da rede estadual de Educação do Amazonas. Ele vivenciou o drama de ver a família acometida pela Covid-19 na semana do colapso de oxigênio em Manaus. Sua avó, a quem ele se referiu carinhosamente como Dona Consuelo Paiva da Costa, manifestou os primeiros sintomas dia 11 de janeiro de 2021, com fraqueza e desmaios. Após a busca por vaga em hospitais na capital, ela foi internada no SPA da Alvorada. Na mesma semana, o tio e a mãe de Rafael também apresentaram sintomas do vírus.
Nos primeiros dez meses de pandemia em Manaus, a família vivia integralmente o isolamento social. Rafael morava com sua mãe no bairro Redenção, e evitou as visitas aos avós e ao tio, que moravam juntos na Cachoeirinha. Antes da pandemia, Consuelo e o marido recebiam visita dos sobrinhos, visitavam os familiares com frequência e iam à missa, além de outras atividades rotineiras, que foram alteradas por completo pela pandemia.
Até o dia 14 de janeiro, Consuelo estava caminhando bem na recuperação. Porém, a direção chegou a chamar a família em reunião extraoficial para contar que faltavam cilindros de oxigênio na cidade. Na chegada de doações enviadas pelo governo da Venezuela ao Amazonas, Rafael esteve entre os que ajudaram a descarregar as doações e abastecer os hospitais. “Foram 48h de terror”, contou. O falecimento da avó aconteceu no sábado, cinco dias após a internação. “Foi exatamente a falta de abastecimento de oxigênio que levou a minha avó”.
O tio chegou a tentar vagas de internação em cinco hospitais, públicos e privados. Todos sem leitos, não conseguiu atendimento em nenhum deles. A situação agravava, pois dentre os sintomas, ele perdia o movimento das mãos, que ficavam roxas com o passar do tempo, devido à trombose.
Após o falecimento da avó e o agravamento da doença na família, com o tio, a mãe e o avô diagnosticados com covid19, Rafael decidiu fazer uma campanha para pedir ajuda. Denunciando a falta de oxigênio nos hospitais públicos, amigos e conhecidos se disponibilizaram a ajudar os parentes do professor, que tentava angariar fundos para levar a família para tratamento em São Paulo, onde ainda havia leitos disponíveis.
“O medo de perdê-los nos fez recorrer a essa alternativa”, desabafou. A campanha teve sucesso e todos conseguiram o tratamento contra a doença após viajarem. Durante o tratamento, a preocupação ainda aumentou, pois Rafael também foi diagnosticado com a doença, embora não tenha tido um quadro grave. Fake news e incentivo ao tratamento precoce com hidroxicloroquina também entraram no rol de desespero da família.
A recuperação ainda é difícil. “Ficaram em pânico sabendo que a mãe morreu sufocada”. Cansaço, respiração incompleta e ofegante passaram a fazer parte da rotina do professor. As questões psicológicas também não são as mesmas. “Crise de ansiedade, o abalo pela perda da avó. Meu avô, que passou a tomar remédio tarja preta, ficou muito desnorteado”.
Sem direito a velório, por conta da possibilidade de transmissão, Rafael César e seus parentes não puderam se despedir de Dona Consuelo, que morreu aos 84 anos. Irresponsabilidade, incompetência e desumanidade são as palavras usadas pelo professor para caracterizar a crise da doença no estado, o desespero e a perda que ainda tenta assimilar.
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Os jovens sem direito ao luto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU