13 Março 2020
“Jó, naquelas horas decisivas da história da Igreja, também havia entrado idealmente no conclave. Depois, ele saiu com a voz – mais pacata e com uma tonalidade menor, mas com a mesma carga interior – do papa Francisco”.
A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado em L’Osservatore Romano, 12-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eu nunca o havia encontrado antes daqueles dias. Ouvira falar dele ocasionalmente e conhecia seu perfil vagamente. Foi somente naquela tarde chuvosa de quarta-feira, 13 de março de 2013, que casualmente nos encontramos sozinhos.
O cardeal Jorge Mario Bergoglio estava atravessando a suntuosa Sala Ducal com a sua cenografia barroca: foi lá que nos cruzamos e paramos para conversar, prosseguindo e depois passeando pela seguinte e imponente Sala Regia, com os seus afrescos de Vasari não propriamente “ecumênicos” (o “Massacre dos huguenotes”, a “Vitória de Lepanto”, a “Excomunhão de Frederico II”). De lá, entraríamos na Capela Sistina, onde, junto com os outros cardeais eleitores, participávamos do conclave.
Foi ele mesmo quem reevocou o fio pessoal que nos unia e que me era desconhecido. O encontro implícito ocorrera precisamente em Buenos Aires, através das minhas publicações, duas em particular, um “comentário duplo” ao Lecionário dominical e, principalmente, o vasto comentário que eu havia elaborado em 1979 sobre um dos livros mais surpreendentes e misteriosos da Bíblia, o de Jó. Eram quase mil páginas dedicadas às 8.343 palavras hebraicas daquele poema, à sua linguagem candente e, sobretudo, ao seu enigmático significado último, certamente não redutível à “paciência” tradicionalmente atribuída ao protagonista, nem ao puro e simples escândalo do sofrimento.
Naquela obra, o interlocutor e ator principal, embora ausente até a irrupção final, de fato, é o Deus indecifrável, semelhante mais a um triunfador cruel do que a um pai. De certa forma, um livro inaferrável, como confessara o seu grande tradutor e intérprete latino, São Jerônimo, que não hesitava em compará-lo a “uma enguia ou a uma pequena moreia: quanto mais você a aperta, mais ela foge da sua mão”.
Um livro requintadamente teológico, destinado a demolir as falsas imagens de Deus contrabandeadas pelos amigos teológicos de Jó com os seus frios teoremas especulativos.
Essa divagação sobre um dos textos mais célebres do Antigo Testamento – também em nível cultural, além de popular (Jó, assim como São Roque, era o protetor dos doentes infectados e, portanto, também poderia ser invocado nos dias atuais do coronavírus) – já permite intuir o interesse e a sintonia temática do então arcebispo argentino.
De fato, ele havia realizado um curso inteiro sobre essa obra tão alta, dramática e teológica, capaz de dar voz ao suspiro de dor que sobe incessantemente da terra ao céu e pronta até para denunciar Deus processualmente: “Esta é a minha última palavra. Que o Todo-poderoso me responda. Que o meu adversário escreva a acusação. Eu a levarei sobre os meus ombros e a usarei como se fosse coroa. Eu lhe prestaria contas de todos os meus passos e me apresentaria a ele como um príncipe” (31,35-37; trad. Bíblia Pastoral).
Na sua jornada por essas páginas tão candentes, Bergoglio reconhecia que tivera como companheiro de viagem precisamente o meu comentário e, portanto, indiretamente, também a mim, sem que houvesse ocorrido um encontro explícito.
Às 16h30 daquela tarde, nós dois entrávamos na Sistina e, poucas horas depois daquele diálogo, o arcebispo de Buenos Aires se tornaria o papa Francisco. Nos anos seguintes, quando a nossa relação havia se tornado mais pessoal e constante, busquei nas múltiplas intervenções do seu magistério papal a presença de uma figura tão provocadora.
Certamente, é possível identificar as referências diretas, mesmo em vislumbres menores da incessante oração-protesto do sofredor bíblico, como ocorre na Amoris laetitia (n. 20), na qual aflora “a amarga confissão de Jó” que experimenta “numerosas dificuldades familiares” que marcam a sua vida: “Meus irmãos me abandonam, e meus parentes me tratam como estranho. [...] A minha mulher tem nojo do meu hálito, e os meus irmãos têm nojo do meu cheiro” (19,13.17; trad. Bíblia Pastoral).
Outras vezes, é o grito dilacerante de Jó, proposto no Lecionário litúrgico, um grito insone cristalizado em palavras semelhantes a pedras, marcadas até por uma automaldição: “Morra o dia em que nasci e a noite em que se disse: ‘Um menino foi concebido’” (3,3).
O papa Francisco, duas vezes, nas suas homilias de 30 de setembro de 2014 (por puro acaso eu também celebrava com ele naquele dia na capela de Santa Marta) e de 27 de setembro de 2016, deteve-se sobre este grito que abre o poema bíblico propriamente dito. E, com razão, apesar dos tons à primeira vista desesperados, ele o considerava como “uma oração especial”, apesar de ter as cores de uma maldição, semelhante à que um irmão ideal de Jó, o profeta Jeremias, emitirá no candente capítulo 20 das suas “Confissões”.
Para o papa, “rezar é tornar-se verdade diante de Deus, porque a verdadeira oração vem do coração, a partir do momento em que se vive”. É “a oração do tempo da escuridão vivida por tantas pessoas que estão na situação de Jó”, que se confrontam com “grandes tragédias e se perguntam: Mas, Senhor, eu acreditei em ti. Por que crer em ti é uma maldição?”. É uma “oração sem esperança”, lançada em direção a um céu mudo e indiferente.
Seguindo uma antiga tradição espiritual, Francisco coloca ao lado de Jó “o próprio Jesus, que percorreu esse caminho; da tarde no Monte das Oliveiras até a última palavra da cruz: ‘Pai, por que me abandonaste?’”. E continua: “Não são blasfêmias, mas desafogos”, que, no livro do Antigo Testamento, atingem picos de violência expressiva extrema, encarnam “um estado de espírito sombrio, sem esperança, desconfiado, sem vontade de viver, sem ver o fim do túnel, com muitas agitações no coração e nas ideias”.
Paradoxalmente, Lutero, comentando Jó precisamente, afirmava que “Deus gosta mais das blasfêmias do homem desesperado do que dos louvores compassivos do bem-pensante no domingo de manhã no culto”.
O papa Francisco continua afirmando que esse “rezar com autenticidade” varre a retórica consolatória dos amigos teólogos, advogados defensores de ofício de um Deus que, no fim, prefere o grito de Jó às afirmações deles. Ou, melhor, reduz a “estupidezes” as suas intervenções e adverte que, “quando uma pessoa sofre e está na desolação espiritual, é preciso falar o mínimo possível, ajudando, em vez disso, com o silêncio, a proximidade, as carícias”.
Mas, nesse ponto, a sintonia dos temas de Jó com o ensinamento e a própria sensibilidade pessoal do papa Francisco deveria ser traçada também no imenso delta ramificado das suas mensagens. Nelas, de fato, domina uma espécie de filigrana constante: é a empatia incessante com o anseio de dor, de miséria, de amargura que permeia a humanidade e da qual ele se faz intérprete, até mesmo no aparente silêncio de Deus.
Ésquilo, o grande poeta grego, na sua tragédia “Os persas”, estava convencido de que nenhuma divindade dá ouvidos à voz lancinante do sofredor. Jó, no fim, em vez disso, receberá uma resposta, enquanto o cristianismo irá mais longe e verá em Cristo o Filho de um Deus que desce sobre a terra e caminha lado a lado com os muitos desesperados da terra, assumindo plenamente aquela “carteira de identidade” particular da humanidade que é a dor e a morte.
Diante do Olimpo e do Destino grego “apáticos”, o Deus cristão é “patético”, e o papa Francisco é uma testemunha apaixonada desse “pathos” divino, que é partilha misteriosa e misericordiosa, como sabem as multidões que, há sete anos, acorrem para escutar a sua palavra ou que meditam os seus textos.
Em relação aos sete anos do seu pontificado, este é um pequeno e marginal atestado meu. Com o nosso diálogo, Jó, naquelas horas decisivas da história da Igreja, também havia entrado idealmente no conclave. Depois, ele saiu com a voz – mais pacata e com uma tonalidade menor, mas com a mesma carga interior – do papa Francisco.
Ele está ciente – como escrevia (na multidão dos autores que, ao longo dos séculos, recriaram essa figura bíblica) o poeta francês Lamartine – de que “a voz de Jó não é a de um homem, mas sim a voz de um tempo, é a primeira e a última lamúria da alma ou, melhor, de toda alma”.
Como selo desta minúscula memória pessoal sobre o papa Francisco, é natural para mim reevocar um autor caro a ele, até porque ele teve a oportunidade de tê-lo como convidado durante uma semana, em Santa Fe, em 1965, em uma escola superior dos jesuítas, onde Bergoglio lecionava.
Trata-se de Jorge Luis Borges, que confessava: “De todos os livros da Bíblia, os que mais me impressionaram são o livro de Jó, o Eclesiastes e, evidentemente, os Evangelhos”. De fato, ele havia testemunhado a Jó essa sua predileção, seja dedicando-lhe uma conferência, publicada em 1967 no “Instituto de Intercâmbio Cultural Argentino-Israelí”, seja preparando um prefácio para a Exposición del Libro de Job, do Frei Luis de León (1527-1591), um autor místico, considerado um clássico espanhol do “Siglo de Oro” dessa literatura.
Borges havia sido conquistado pelo fogo das imagens “barrocas” com as quais se expressa a tragédia de Jó, pelo processo proteiforme do livro e pela “treva luminosa” (um oxímoro presente justamente em Jó 10,22) dessa obra tão terrestre-imanente e tão divino-trascendente.
Mas, talvez, para o papa Francisco, é o comentário “cristológico” de Georges Bernanos no “Diário de um pároco de aldeia” que expressa em profundidade os seus próprios sentimentos: “O bom Deus não escreveu que fôssemos o mel da terra, mas o sal. Ora, o nosso pobre mundo assemelha-se ao velho pai Jó, cheio de chagas e úlceras, sobre os seus dejetos. O sal, sobre uma pele em ferida, é uma coisa que arde. Mas também a impede de apodrecer”.
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Jó no conclave. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU