14 Setembro 2022
“Esses cardeais das periferias que nunca ou quase nunca viram Roma e muito menos cruzaram pelos corredores da cúria romana, em que votarão? Torna-se, portanto, fundamental identificar quais são as questões preeminentes que atravessam a Igreja de um extremo ao outro do mundo, depurando o discurso da costumeira retórica rasa que transforma cada encontro na presença do Papa em ocasião de fraterno diálogo e exemplo brilhante de sinodalidade”, escreve o jornalista italiano Matteo Matzuzzi, em artigo publicado por Il Foglio, 11-09-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Bergoglio modelou à sua imagem o Colégio dos Cardeais chamado para eleger seu sucessor. Mas os jogos estão longe de terminar. A história e a lógica o dizem - Com a abertura às periferias, fazer previsões resulta inútil e arriscado. Classificar os cardeais trazidos do fim do mundo entre as fileiras progressistas ou conservadoras tem, no presente momento, pouco sentido.
Antigamente se consultava o horóscopo, se observava as fases da lua, até mesmo algum cardeal do grupo inimigo era eliminado com veneno ou faca, por precaução. Hoje, mais sabiamente, se estudam os perfis dos novos cardeais, se navega pelos arquivos, se procura a declaração certa, se avaliam as homilias, se tenta relembrar algumas entrevistas (ou alguns trechos de uma entrevista) da eminência em questão. Em suma, trata-se de aplicar o rótulo “certo”, conservador ou progressista, reformador moderado ou reformador radical. Certamente não é um novo jogo midiático, mas que vale pelo que vale. Ou seja, pouco.
É natural que, tendo chegado a um certo ponto do pontificado - de qualquer pontificado – se comece a discutir o declínio e o final do reino. Até algumas décadas atrás, um dos momentos mais sugestivos da coroação papal ocorria quando um chumaço de estopa na mão do recém-eleito Papa era queimado. Enquanto a chama se extinguia rapidamente, ouvia-se em voz alta três vezes "Pater Sancte, sic transit gloria mundi". Em suma, tais discursos sempre foram e continuam a ser feitos também para o pontificado de Francisco, doente e próximo dos 86 anos. Ele, o Papa, há um ano parecia irritado quando denunciou determinados discursos que ouvia sobre sua sucessão, comparando-os a tramas sombrias daqueles que "o querem morto". No entanto, basta uma rápida pesquisa no Google para descobrir que em meados dos anos 1990 as livrarias estavam cheias de ensaios mais ou menos de qualidade sobre os perfis daqueles que poderiam ter substituído João Paulo II. E ninguém ficou indignado, também porque a Providência tinha planejado tirar deste mundo quase todos aqueles que estavam na linha de frente da sucessão, os "favoritos". Nos conselhos de cardeais atuais, as listas de novos cardeais são examinadas e se faz as contas, esse fica com a gente, esse outro não, aquele outro sabe-se lá.
Durante seu pontificado, Francisco deu uma linha clara ao Colégio: não mais de sedes "tradicionalmente cardinalícias" concedidas "por inércia", como disse o arcebispo de Milão, Mario Delpini. O cardinalato é um reconhecimento pessoal e nada prescreve que o titular de uma determinada diocese, mesmo a maior do planeta, tenha por direito a indicação a cardeal. Foi assim que Milão, mesmo com rito próprio, aquele ambrosiano, ficou de fora.
O agora famoso discurso de D. Delpini por ocasião do pontifical de Santo Abbondio em Como, no final do qual ele se perguntava sarcasticamente por que o bispo da cidade de Como e não o metropolita milanês havia sido indicado cardeal, deve ser lido nesse sentido: Delpini não falava por si mesmo, o que enfatizava - e sabe-se lá com que ironia - que a exclusão de Milão do Colégio não é um assunto que possa ser considerado como casualidade. No passado já aconteceu: Pio X nunca deu o título ao arcebispo de Florença, suspeito de modernismo, Pio XII deixou Giovanni Battista Montini de fora do Sacro Colégio, que havia sido enviado justamente a Milão como arcebispo. Expoentes de ponta próximos ao pensamento de Francisco reiteraram repetidamente que não há como voltar atrás, que o caminho iniciado pelo Papa argentino é irreversível.
Era, portanto, necessário desarticular um sistema, o carreirismo tão depreciado, e surpreender. Nada de Los Angeles ou Milão, grandes dioceses e cardinalícias, espaço para Tonga e mil outras terras de fronteira, onde o catolicismo é minoritário se não reduzido a ínfimas comunidades que nem sabem o que seja um cardeal, como conta D. Giorgio Marengo, o mais novo do colégio, missionário na Mongólia. É verdade que Francisco, em seus consistórios, excluiu principalmente vozes dissonantes em relação ao programa que ele estabeleceu, escolhendo personalidades afins à sua visão de Igreja. Isso pode ser visto claramente em contextos particulares, como os Estados Unidos, onde o cardinalato foi concedido apenas para aqueles que não pertencem ao grupo episcopal majoritário que se reporta ao "conservadorismo muscular" muito forte na época das guerras culturais da época de João Paulo e ratzingeriana. Basta mencionar quatro das últimas escolhas, do arcebispo de Chicago Blase Cupich ao de Newark Joseph Tobin, a Wilton Gregory em Washington e Robert McElroy, titular da diocese de San Diego e considerado um dos bispos mais liberais dos Estados Unidos.
Mas pensar que o jogo acabou e que o próximo Conclave, quando chegar, se limitará a estabelecer uma maioria "franciscana" de fato e, portanto, eleger um cardeal que continuará no caminho traçado é uma aposta ousado. É claro que, retomando nas mãos as tabelas e os alinhamentos, há a tentação de dar tudo como garantido. Mas a história da Igreja ensina que os planos são feitos para serem, quase sempre, desmentidos. O conclave “preparado” por Pio XII elegeu João XXIII, aquele filho das escolhas de João Paulo II e Bento XVI, levou Francisco ao trono.
Não há dúvida de que Jorge Mario Bergoglio, em sua intenção de quebrar tradições consolidadas e automatismos de carreira, tenha forçado o equilíbrio do Colégio: Ratzinger indicou a cardeal vários bispos que pouco tinham a ver com sua visão teológica e pastoral, e o mesmo vale para Wojtyla. Francisco, não. A "revolução" cardinalícia, no entanto, esconde várias incógnitas, como destacava o especialista em Vaticano estadunidense John Allen: listar os cardeais trazidos do fim do mundo entre as fileiras progressistas ou conservadoras, no presente momento, faz pouco sentido. É de fato provável, destacava Allen, que esses cardeais tenham, por exemplo, ideias muito avançadas sobre justiça social e mudança climática, mas que, ao contrário, sejam muito conservadores em questões doutrinárias.
Robert Royal, do The Catholic Thing, observava que se certas aberturas para os casais homossexuais foram rejeitadas durante os Sínodos realizados em Roma durante os anos de Francisco, isso se deve aos bispos africanos. Determinados, combativos, intransigentes e pouco propensos à mediação. Já tínhamos visto isso na readmissão dos divorciados à comunhão, no início do pontificado bergogliano, quando foram justamente os prelados africanos que criaram dificuldades, como confirmou o cardeal Walter Kasper, que em 2014 em Sínodo aberto os criticou por serem prisioneiros de certos tabus um tanto antiquados. Uma frase que enfureceu o então arcebispo de Durban, cardeal Wilfrid Fox Napier, um franciscano nunca contado entre os conservadores: "É realmente preocupante ver a expressão 'teólogo do Papa' aplicada a Walter Kasper".
Em suma, esses cardeais das periferias que nunca ou quase nunca viram Roma e muito menos cruzaram pelos corredores da cúria romana, em que votarão? Torna-se, portanto, fundamental identificar quais são as questões preeminentes que atravessam a Igreja de um extremo ao outro do mundo, depurando o discurso da costumeira retórica rasa que transforma cada encontro na presença do Papa em ocasião de fraterno diálogo e exemplo brilhante de sinodalidade. Houve sínodos em que os padres os engalfinharam (metaforicamente) com veemência, é bem conhecido e não se vê porque quando chegar a hora, não se possa repetir o que já foi visto. Quais são as questões críticas hoje? Depende da perspectiva a partir da qual se olha. Um exemplo: se a defesa da vida surgisse nas congregações gerais, algum cardeal estadunidense certamente levantaria o problema do aborto. Ele seria imediatamente aplaudido e seguido por um grande número de coirmãos africanos. Se, por outro lado, um cardeal sul-americano proferisse um discurso sobre a emergência climática, a falta de água e o sofrimento das florestas e das populações que ali vivem, esses mesmos cardeais africanos só poderiam reservar uma ovação de pé a esse cardeal. É, portanto, impossível fazer previsões com base em biografias cardinalícias ou em alguma intervenção proferida sabe-se lá quando e onde.
Certamente, será decisivo - e já é – entender-se sobre o conceito de sinodalidade. Uma palavra muito nobre e rica em tradição, mas que parece ter-se tornado o cômodo tapete que cobre tudo: tudo é sinodal, tudo é sinodalidade. Não é por acaso que alguns cardeais orientais que conhecem o Sínodo melhor do que muitos ocidentais apontaram durante as reuniões à margem do consistório no final de agosto que o Sínodo não é um simples encontro entre amigos, mas é um assunto sério. Solene e não improvisado. Não deve ser confundido com a comunalidade e a colegialidade.
Alguns, por trás do anteparo da sinodalidade, gostariam de rever o primado petrino? Na Alemanha, os leigos e boa parte dos bispos pensam assim, segundo os documentos que o Caminho Sinodal Alemão está produzindo nos últimos anos antes de levá-los ao Vaticano para romper aquele vínculo para que - como disse o Cardeal Reinhard Marx - "não será Roma a nos dizer o que temos que fazer aqui”. O Papa Francisco não concorda muito com isso: por ocasião da comemoração do cinquentenário da instituição do Sínodo dos Bispos, em outubro de 2015, o Pontífice disse que "o fato de o Sínodo sempre agir cum Petro et sub Petro - portanto, não só cum Petro, mas também sub Petro - não é uma limitação da liberdade, mas uma garantia de unidade. De fato, o Papa é, por vontade do Senhor, 'o perpétuo e visível princípio e fundamento da unidade tanto dos bispos como da multidão dos fiéis'. A isso está ligado o conceito de hierarchica communio, usado pelo Concílio Vaticano II: os bispos estão unidos ao bispo de Roma pelo vínculo da comunhão episcopal (cum Petro) e ao mesmo tempo estão hierarquicamente subordinados a ele como Chefe do Colégio (sub Petro)".
O processo iniciado por Francisco e que levará os pedidos do mundo inteiro à sombra de São Pedro no próximo ano, não está destinado a se esgotar nas discussões romanas. Sim, haverá grupos de trabalho divididos por língua falada, intervenções em plenária, votos e o documento final com a exortação apostólica. Mas os pedidos que vêm não só da Europa ocidental e secularizada - mas nem mesmo a secularização pode continuar a ser a desculpa para justificar totalmente o descontentamento de um povo com a fé, como disse o Cardeal Matteo Zuppi ao Osservatore Romano - questionam as abordagens pastorais e a natureza da própria instituição. Votar em assembleia nacional o fim do celibato sacerdotal obrigatório, aprovar a ordenação de mulheres, "legislar" sobre questões de moral, como prometem fazer na Alemanha (mas não só lá), significa dar mais de um golpe ao primado da Papa: É provável que, ao transmitir todas as esperanças "de baixo", respondendo também às perguntas destinadas a acabar na grande pasta dos sonhos destinados a continuar tais, muito resultará diluído, frustrando expectativas e esperanças de quem (não muitos, na verdade) participou do caminho sinodal. Mas aqueles temas vão manter-se e voltar a propor-se, com os promotores a reiterar a necessidade de uma virada e de uma atualização e os resistentes a opor-se a eles, temendo que assim reinaria incontestada a confusão.
O presidente da Conferência Episcopal Alemã, D. Georg Bätzing, que devolveu ao remetente a Nota com a qual em julho a Secretaria de Estado do Vaticano advertia mais uma vez que nenhuma “revolução” poderia ser decidida por um Sínodo convocado e realizado sob os auspícios de um episcopado local, já se declarou publicamente “decepcionado” por “um Papa pouco corajoso no campo das reformas”. Ele mesmo, o Pontífice que inaugurou um Sínodo plurianual sobre o próprio conceito de sinodalidade. Tensões, estas, inevitavelmente ressurgirão quando se terá que decidir quem sucederá a Francisco.
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O legado do Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU