24 Agosto 2022
"A comunidade católica carrega em si complexidades, nuances, contradições, sensibilidades que não devem ser lisonjeadas (não é estúpida) nem escarnecidas (não está morta): e traz em si uma expectativa de paz que esperamos não ter que lamentar ter deixado de lado por tanto tempo e com tanto simplismo", escreve Alberto Melloni, historiador italiano, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha, em artigo publicado por La Repubblica, 22-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
O catolicismo é hoje contestado nas campanhas eleitorais de todo o Ocidente. Nos Estados Unidos de Trump, sua conexão com o mundo evangélico supremacista criou um verdadeiro “ecumenismo do ódio” (conforme expressão de Spadaro). Na Europa, o catolicismo oriental forneceu a cola para escolhas que atraíram não maiorias, mas regimes. E aqui na Itália também o salvinismo tentou usar os sinais da fé - incluindo o rosto de uma migrante judia que viajava com um homem que não era o verdadeiro pai de seu filho - em uma operação de naufrágio por pouco. Obviamente, portanto, que nas próximas eleições a posição da Igreja italiana é relevante: mas para prevê-la ou decifrá-la, três coisas devem estar claras.
Primeiro. Os clérigos não são todos gênios políticos. Mas só um cego não veria que indo às urnas as direitas desfraldarão a bandeira dos "valores" em torno da retórica gandolfiniana família/vida, sobre a qual se construiu um castelo ideológico no qual não há misericórdia nem vida. E só um cego não veria que as esquerdas se iludem que basta um pouco de acolhimento e inclusão para capturar um voto católico que encontrou voz em Andreatta, Onida, Sassoli. Portanto, a "regra número um" da Igreja será evitar cair nas armadilhas da propaganda.
Segundo. O Papa não costuma manifestar estima pelos bispos italianos. Muitas vezes, depois de escolhê-los, vê neles apenas seus defeitos; e escolhe outros destinados ao mesmo fim. Ele nega o cardinalato aos que estão nas cidades mais difíceis (onde hoje as máfias podem agir matando com calúnias). E não deixou à secretaria de estado um milímetro de margem política. Portanto, não sei se ele deu ordens particulares para as eleições: mas deduzo que ele olha a Itália com um binóculos invertido, pelo que diz em um magistério social que, neste país, os católicos colocaram na Constituição quando ele tinha onze anos. Portanto, a "regra dois" da Igreja é evitar que o Papa fique com a ideia de que a CEI ainda vive do sonho ruiniano de ser "relevante", mesmo ao custo de se aconchegar como um cãozinho cego aos pés de Berlusconi e morder os calcanhares de Prodi.
Terceiro: ontem uma pequena minoria de pessoas foi à missa; entre 5 e 7 milhões de pessoas.
Comparado a isso, tudo o que a opinião pública acredita ser representativo do catolicismo é uma pequena fagulha multiplicada pelas redes sociais e pela vaidade; e tudo o que ali se agita é desde sempre impermeável às lógicas hierárquicas. Quando Ottaviani quis fazer a centro-esquerda fracassar, Fanfani resistiu. Quando o próprio Paulo VI tomou partido contra o divórcio, os católicos votaram a favor. Quando Ruini tentou impedir a vitória de Prodi, este prevaleceu (embora mais tarde tenha conseguido derrubá-lo). Assim, a “regra três” do episcopado italiano é entender se o catolicismo vivido com sua complexidade interna é realmente como as pesquisas o descrevem ou se os dois instintos permanecem dentro dele – o instinto de ir votar e o instinto que a Constituição é (também) sua - que poderiam afetar o horizonte de 25 de setembro.
Se os dados estiverem corretos, segue-se que as quatro coalizões deveriam evitar tratar o catolicismo como se faz com o segmento eleitoral dos "donos de animais de estimação". A comunidade católica carrega em si complexidades, nuances, contradições, sensibilidades que não devem ser lisonjeadas (não é estúpida) nem escarnecidas (não está morta): e traz em si uma expectativa de paz que esperamos não ter que lamentar ter deixado de lado por tanto tempo e com tanto simplismo.
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O cristianismo contestado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU