01 Junho 2022
Ontem de manhã, 29 de maio, em Vicenza, no âmbito do Festival Bíblico, juntamente com Marinella Perroni, e com a moderação de G. Caramore, lemos e comentamos a "carta à Igreja italiana" que aqui reproduzimos na íntegra.
A carta é de Marinella Perroni, biblista, fundadora da Coordenação de Teólogas Italianas, e de Andrea Grillo teólogo italiano, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, publicada por Come se non, 30-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Festival Bíblico 2022
Vicenza, 29 de maio
"O que vês,
Escreve-o num livro e envia-o às sete Igrejas ...
O mistério das sete estrelas, que viste na minha destra,
e dos sete castiçais de ouro.
As sete estrelas são os anjos das sete Igrejas,
e os sete castiçais são as sete Igrejas” (Ap 1,1.20)
O que significa e o que comporta, então, para nós também hoje exercer a profecia em virtude do batismo, olhar para a realidade da nossa Igreja italiana que embarcou no caminho sinodal e imaginar, ao longo as linhas das sete cartas às sete igrejas pedidas no Apocalipse, para lhe enviar uma carta que a lembre da coragem do testemunho?
Não lhe falte a coragem.
Se você olha para o futuro e o faz como Igreja, deve ter coragem. Uma coragem que não é primariamente força de negação. A coragem de negar nem sempre é coragem. Muitas vezes é o medo disfarçado de coragem. Olhar para frente com coragem e sem medo significa entrar no jogo de luz dos sinais dos tempos. Hospedar coisas novas na realidade e através delas reler a tradição de forma mais rica, mais completa, mais profunda. Os tempos enviam sinais como comunidade de homens e mulheres regenerados pela morte e pela vida, pela dor e pela alegria. E os sinais falam novas linguagens, que você pode aprender, mas só se tiver coragem, se não se deixar paralisar pelo medo.
Você nasceu, como todas as outras igrejas nacionais, nos dias do Concílio. Os dias da primavera, os dias em que finalmente caiu o interdito, você também trouxe de volta a Bíblia daquele exílio a que a havia forçado uma guerra religiosa centenária entre irmãos. E a Palavra voltou a ressoar no coração das nossas liturgias, na vida das nossas comunidades e na vida de cada um de nós. Por que, lentamente, você novamente tirou de sua vida aquela Escritura da qual toda eclesialidade toma vida e força, da qual nenhuma pregação e nenhuma catequese podem prescindir? Por que você prefere ceder ao fascínio das antigas superstições?
Recorde os dias em que você nasceu e retome com coragem o caminho: lâmpada para os seus passos e luz para o seu caminho só poderá ser a sua Palavra (cf. Sl 119,105). E os dias de primavera e do entusiasmo voltarão.
De fato, assim diz o Senhor: “Em lugar do espinheiro crescerá a faia, e em lugar da sarça crescerá a murta; o que será para o Senhor por nome, e por sinal eterno, que nunca se apagará” (Is 55:13).
Ao reabrir os ouvidos e os olhos para os tesouros que a palavra podia lhe assegurar, aos poucos você retornava à antiga arte de celebrar. Você reconhecia, novamente, que o Senhor com sua Igreja é o centro da liturgia. Que todos celebrem juntos com o Senhor Jesus, e que o Bispo e o padre são apenas aqueles que presidem um ato de todos, ninguém excluído. Você soube reencontrar, na liturgia, a forma do ministério difundido e do movimento de povo. A coragem desta memória viva e fresca deve conter todos aqueles medos que só sabem correr para trás, viver de nostalgia do passado, de intolerância para com o futuro, de suficiência em relação ao presente. A liturgia começa com o tato: você, como Igreja, lembre-se de que toca a vida de homens e mulheres concretos e se deixa tocar por suas vidas, principalmente, no rito eucarístico.
Escute, antes de falar, e suas palavras voltarão a ter autoridade. Mas aprenda que escutar não é um ato paternalista, não trai suficiência condescendente, mas exige autêntico reconhecimento e profundo respeito. A escuta é exigente, exige um discernimento cuidadoso e um desejo resoluto de mudança. Não é justamente esta a maneira de deixar para trás a época do clericalismo? Não é esta a primeira grande reforma da qual também a nossa igreja, como todas as outras igrejas, tem grande necessidade? Gerações de adultos que acreditaram no Concílio, gerações de mulheres para as quais a fé e a consciência de si amadurecem no coração umas das outras, gerações de jovens que não aceitam ser órfãos de Deus ainda esperam que você seja capaz de abrir espaços de diálogo. Porque você não tem medo de mudar.
Com grande coragem, você pode se dispor a descobrir o sexo como sexualidade. Ou seja, sair de uma leitura redutiva da relação sexual, orientada apenas para a geração. Aqui você tem que lutar contra muitos preconceitos, que pretendem identificar você como o baluarte contra toda liberdade. O fechamento rígido do sexo ao âmbito do casamento não é mais apenas "ordenamento social", mas incapacidade de percepção. As formas da relação sexual, que encontram sua realização no casamento, também existem fora dele e não são simplesmente um mal. O processo que conduz as pessoas à vida fraterna como cônjuges exige respeito e paciência, acompanhamento e poucos formalismos. Se com a burocracia fere, com a burocracia será ferida. Em vez disso, você poderia encontrar a autoridade para reconhecer a comunhão que existe, em vez de distribuir autorizações à esquerda e à direita, mas sem autoridade.
Você sempre pensou que os cismas e as excomunhões são aqueles que se consumam entre os chefes das igrejas. E muitas vezes foi assim. Agora, porém, não mais. E o cisma silencioso de mulheres e dos jovens torna nossas comunidades exangues. É verdade: uma igreja que defende vigorosamente a hierarquia dos sexos não pode aceitar a força das mulheres; e para uma igreja patriarcal, aquela dos jovens é uma linguagem incompreensível. E, no entanto, justamente por isso pode se tornar um tempo de confiança para você: dê confiança às instâncias das mulheres: não são perigosas, são vitais; dê confiança à inquietação dos jovens: é uma semente que se desmancha na terra e dará o seu fruto no tempo certo. Não permita que vão embora, e se ainda assim eles decidirem ir, pelo menos dê a eles a parte da herança que lhes cabe.
Você tem que aprender uma nova linguagem, a do tempo relacional, do espaço social. Entramos agora, há mais de um século, num "tempo completamente homogêneo" que nos permite muito, mas nos subtrai igualmente. O tempo homogêneo e o tempo irreversível não deixam espaço para a festa. Tudo no tempo pode ser diferente, tudo igual, tudo livre ou tudo vinculado, mas só a festa revela o irmão, revela a irmã. Fraternidade, sororidade e tempo festivo se correspondem. Você é uma igreja e por isso mãe e mestra de fraternidade e sororidade. Ensinar o espaço e o tempo da verdadeira irmandade/sororidade: para isso os discípulos de Cristo poderiam trabalhar hoje na Itália com uma nova e surpreendente capacidade cultural. Encontre coragem para criar cultura, sair do nicho, navegar em mar aberto. Aprendendo a fundo justamente no momento em que você realmente ensina. Em última análise, nada mais é do que sua coragem de ser Igreja.
Não lhe falte coragem, igreja que vive o evangelho na Itália. Depois de Jerusalém e Antioquia, Roma foi a terceira igreja mãe do cristianismo. Lembre-se disso, igreja italiana. Não para perseguir antigas glórias imperiais, nem para se propor como modelo para todas as igrejas: cada igreja tem sua própria história, percorre seu próprio caminho, vive e convive em um dos cantos do mundo. Antes, ouça o convite do Papa Francisco: lembre-se do seu passado para ser "uma Igreja adulta, antiga na fé, sólida nas raízes e ampla nos frutos" (Florença, 10 de novembro de 2015).
Que seus dois mil anos de história a tornem sábia, não velha, prudente no movimento, não na estase:
"Pois assim me disse o Senhor: Vai, põe uma sentinela e ela que diga o que vir […] “Guarda, que houve de noite? Guarda, que houve de noite?”.
E disso o guarda: ‘Vem a manhã, e também a noite; se quereis perguntar, perguntai, voltai, vinde!’”" (Is 2, 6.12).
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Carta à Igreja italiana: não lhe falte a coragem. Artigo de Marinella Perroni e Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU