Este papa não muda os padrões escritos, nem destrói as estruturas externas; no entanto, ele transforma a prática e a vida. Não muda a Igreja de fora. Em vez disso, ele a transforma muito mais profundamente – espiritualmente, a partir de dentro. Ele a transforma mediante o espírito do Evangelho; é uma revolução da misericórdia.
A opinião é do teólogo e padre tcheco Tomáš Halík, professor de Sociologia na Universidade Charles, de Praga, presidente da Academia Cristã Tcheca e capelão da universidade. Durante o regime comunista, militou na chamada “Igreja clandestina”. Recebeu o Prêmio Templeton 2014 e é doutor honoris causa pelas universidades de Oxford e Erfurt. Seus livros já foram traduzidos para mais de 20 idiomas.
O artigo foi publicado por Settimana News, 03-11-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Vários dias atrás, notícias sensacionais e surpreendentes do Vaticano apareceram nas primeiras páginas dos principais jornais do mundo. Independentemente da forma, a substância da mensagem dizia respeito ao Papa Francisco, que chocou o mundo ao falar dos homossexuais e do seu direito a amar, de forma muito humana, como pessoas normais do século XXI que são ternas de coração e têm a cabeça no lugar sobre os seus pescoços.
Ele falava como se não tivesse havido longos séculos de medo, preconceitos e ódio contra as pessoas não heterossexuais – preconceitos que causaram uma série de tragédias humanas e levaram muitos ao suicídio. Não muito tempo atrás, um certo número de tragédias desse tipo ocorreram na zona rural tcheca, devido ao temor da reação de uma família católica conservadora à “saída do armário” de um adolescente.
Desta vez, o papa não se contentou com uma mera referência à posição pseudoprogressista, mas, de fato, incoerente em relação aos documentos da Igreja existentes que recomendam tratar as pessoas LGBT “com compreensão”, propondo aos fiéis homossexuais, no entanto, a abstinência por toda a vida como única solução aceitável.
As pessoas estão perdendo a paciência ao ler documentos da Igreja, que lembram um conto de fadas sobre uma menina inteligente que foi convidada a vir ao castelo “nem nua nem vestida”. Jamais esquecerei os olhos e a voz de um certo intelectual católico gay que respondeu às minhas palavras de que talvez poderíamos aceitar a sua união como um “mal menor” – palavras que eu, então, considerava bona fide as mais generosas e progressistas da minha parte como confessor – com uma pergunta tranquila: “Padre, por que eu deveria considerar a relação de uma vida inteira de amor, de fidelidade e de apoio mútuo com o meu companheiro como um mal?”.
Nas décadas posteriores, experimentei surpresas ainda maiores, ao me dar conta de que a percepção de uma alta porcentagem de gays no clero católico não se deve apenas a boatos maliciosos espalhados pelos inimigos da Igreja. Conheci uma grande variedade deles: desde aqueles que viveram uma vida de absoluta castidade, projetando uma espécie de maternidade delicada e compreensiva em sua abordagem pastoral às pessoas, até aqueles que negavam totalmente a sua orientação sexual, vivendo uma vida dupla e compensando seus conflitos interiores como resultado dessa situação exercendo uma agressividade ultraconservadora contra os homossexuais.
Por trás de quase todos os casos dos mais zelosos ativistas contra o “tsunami da homossexualidade”, eu descobri, graças à minha experiência de prática psicoterapêutica, um padre que tentava “sufocar” o seu problema pessoal.
Não está claro o que exatamente o papa disse naquele documentário; o seu apoio às “uniões civis” (não o “casamento”) das pessoas LGBT e uma abordagem humana a elas é antigo e bem conhecido em muitas de suas declarações anteriores.
Eu esperava uma reação dos inimigos conservadores do Papa Francisco às suas palavras mais recentes. Haverá ainda novas “correções filiais” por parte de um grupo de teólogos conservadores e dubia (dúvidas, objeções) por parte de alguns cardeais como anteriormente, quando o Papa Francisco lembrou com sensibilidade, na sua encíclica Amoris laetitia, que a eucaristia não deve ser negada severamente a todas as pessoas divorciadas e recasadas a que a abstinência sexual não deve ser imposta no seu segundo casamento em todas as circunstâncias e para sempre, mas que cada caso deve ser abordado com sabedoria e gentileza, levando em consideração também a sua consciência?
O que esses opositores estão pedindo ao papa é a rígida adesão à letra da Lei. Esta é exatamente a atitude a que Jesus se opôs durante toda a sua vida nos seus encontros com algumas elites religiosas do seu tempo, convidando os seus discípulos a se resguardarem do “fermento dos fariseus”.
Acho que os fariseus de hoje ainda estão deliberando sobre a ação deles. Alguns bispos disseram que o papa deixou frivolamente escapar algo a mais na frente da câmera, e que as suas palavras não têm autoridade dogmática. “Acalmem-se, amigos! O papa não disse nada de importante: tudo prosseguirá como antes, como sempre!”.
Isso corresponde exatamente ao que me foi dito por um certo prelado tcheco logo após o Papa Francisco ter sido eleito: “Disseram-me no Vaticano: fique calmo e tranquilo, o papa é velho, morrerá logo, e depois tudo voltará a ser como era antes!”.
Do mesmo modo, os escribas da Cúria haviam buscado conforto na época do Papa João XXIII antes que ele anunciasse um Concílio de reforma que mudaria para sempre a história da Igreja Católica.
Um dos nossos principais representantes da Igreja tcheca inventou a teoria mais elaborada até agora, de uma conspiração política: o diretor do filme é homossexual, e o filme foi feito para influenciar as eleições presidenciais dos Estados Unidos!
As teorias da conspiração do filme com o Papa Francisco certamente seriam adequadas às pessoas que saúdam o cínico político completamente amoral, mentiroso, arrogante, cuja vida, ação e atitude mostram abertamente que o seu único deus é o dinheiro, que pode permitir que ele compre os bens mais luxuosos, os arranha-céus mais altos, belas mulheres (a serem mudadas como camisas) e, em última análise, o máximo poder político neste planeta (embora a sua personalidade seja imatura para deter qualquer responsabilidade política) como o defensor que salva os “valores cristãos”.
Sim, há pessoas entre alguns evangélicos e ultras católicos que se transformam em autômatos não humanos sem razão e consciência assim que se aperta o botão “Criminalizar o aborto” ou “Expulsar homossexuais, estrangeiros e imigrantes”. Seu reflexo de Pavlov logo se ativa, e eles estão prontos para dançar ao seu ritmo, mesmo que o músico seja o próprio diabo. Eles estão completamente alheios às qualidades morais e intelectuais de tal indivíduo; para eles, ele se torna imediatamente o seu “herói cristão”.
Mais do que pelas suas palavras, essas pessoas podem ser identificadas por meio da sua linguagem corporal. Ao assistir a discursos políticos, é útil silenciar o áudio e examinar atentamente as expressões faciais e os gestos do político. Eu aconselho estudar os gestos exagerados de Trump, o seu queixo para a frente de forma complacente, os seus sorrisos artificiais e as suas palmas para si mesmo, e depois reproduzir as atuais gravações junto com os discursos de Mussolini. As semelhanças são surpreendentes!
É totalmente lógico que aqueles que admiram Trump odeiem o Papa Francisco. Não é uma questão de simples preferência política, mas sim uma escolha moral e cultural fundamental. Se a Igreja deve ser um “hospital de campanha”, as suas tarefas proféticas devem incluir a análise do clima moral e político da sociedade e fornecer uma visão crítica dos respectivos protagonistas. Graças à sua experiência de perseguição, talvez seja a Igreja da nossa parte do mundo que não deva ser uma “Igreja silenciosa” em um tempo em que os símbolos religiosos são abusados para fins políticos pela extrema direita.
Voltemos, porém, ao Papa Francisco e ao seu estilo de reforma da Igreja, que já se tornou evidente em várias ocasiões. O papa não é um revolucionário decidido a mudar a doutrina da Igreja. Aqueles que o conhecem bem há décadas dizem que ele não é um progressista teológico; antes, é misericordioso. A misericórdia é a chave para compreender a sua personalidade e a sua reforma.
Esse papa não muda os padrões escritos, nem destrói as estruturas externas; no entanto, ele transforma a prática e a vida. Não muda a Igreja de fora. Em vez disso, ele a transforma muito mais profundamente – espiritualmente, a partir de dentro. Ele a transforma mediante o espírito do Evangelho; é uma revolução da misericórdia.
No seu caso, essas palavras não são meras frases vazias piedosas. Por isso, a sua reforma tem o potencial de mudar a Igreja e de levá-la de volta ao cerne da mensagem de Jesus mais profundamente do que muitas reformas do passado.
Para combater Francisco, apareceu na cena católica tcheca dos “detentores da verdade” um panfleto intitulado com a sugestiva pergunta: “Misericórdia sem verdade?”. Eu decidi não responder ao opúsculo, confiando que, para o leitor crítico, o próprio título imediatamente levantaria a contrapergunta: “Verdade sem misericórdia?”.
A ênfase na convicção de que a mudança do comportamento é mais do que a mudança da letra da lei e das estruturas inspirou não só a Igreja primitiva, mas também, por exemplo, a filosofia da dissidência política na era comunista.
Na carta a Filêmon, lemos uma história paradigmática. O apóstolo Paulo cuidou do escravo fugitivo Onésimo, batizou-o e mandou-o de volta para o seu patrão cristão, Filêmon, com o acréscimo de que o escravo continuaria a servi-lo. No entanto, Filêmon deve agora lembrar que Onésimo é seu irmão em Cristo.
O cristianismo não recomenda uma violenta derrubada revolucionária do sistema de escravidão como a rebelião de Espártaco. Em vez disso, pede que se crie um clima moral de fraternidade humana e o respeito recíproco pelo valor de cada ser humano, no qual o sistema de escravidão deve, no fim, dar o seu último suspiro. No entanto, é necessário acrescentar que a Igreja fez muito pouco para adotar essa posição sobre a escravidão na sua história posterior. Essa ênfase seria repetidamente evocada desesperadamente por figuras proféticas como Bartolomeu de las Casas e outros.
Encontro uma certa analogia com a ética política na dissidência anticomunista, particularmente no movimento Carta 77 na Tchecoslováquia. Os signatários da carta não pediram uma derrubada revolucionária do governo comunista no período da ocupação soviética (1968-1989). Pelo contrário, eles lançaram um desafio ao governo, convidando-o a respeitar as suas leis (um desafio que eles bem sabiam que não seria aceita pelo governo) com um desafio dirigido aos cidadãos para começarem a agir como pessoas livres, ou seja, como se as leis estivessem em vigor.
Além disso, os signatários da carta tornaram-se modelos de comportamento desse tipo, embora tivessem que esperar como resposta intimidações e repressões. No entanto, esse exemplo de resistência moral e não violenta e de comportamento alternativo tornou-se uma “escola de coragem”, que, nas circunstâncias econômicas, políticas, estrangeiras e culturais específicas do fim dos anos 1980, levou a protestos em massa e à rápida capitulação com aparente e “incrível facilidade” do regime comunista.
Sem dúvida, é útil enumerar uma série de influências várias no annus mirabilis de 1989, mas seria cínico esquecer que muitos indivíduos começaram então – pelo menos por um breve período – a se comportar como pessoas verdadeiramente livres.
Sim, a mentalidade de um certo tipo de “catolicismo sem cristianismo” (que considera hoje Donald Trump como seu ídolo) realmente nos lembra não só os escribas e os fariseus do tempo de Jesus, mas também o regime burocrático comunista na sua fase final. Como seria possível viver com esse peso da história da Igreja, manter o respeito pela Igreja, sentire cum ecclesia e a fidelidade ao Evangelho e haurir forças na promessa de Deus de nos dar um “futuro cheio de esperança”?
O Papa Francisco não muda os dogmas, nem mesmo desafia aquelas seções dos documentos da Igreja que representam, esperando que todos as conheçam, os “produtos” que já expiraram e que agora são tóxicos e nocivos. Do mesmo modo, nem mesmo o Concílio Vaticano II anulou oficialmente, por exemplo, os indefensáveis anátemas de Pio IX relativos à liberdade de consciência, de imprensa e de religião (o infame Sílabo dos Erros). Em vez disso, ele publicou um documento vinculante (a constituição Gaudium et spes) que transformou esses valores, até então rejeitados pela Igreja, em uma parte do seu ensino. As mudanças de estilo, de comportamento e de abordagem pastoral (o Vaticano II pretendia ser um “Concílio pastoral”), no entanto, levaram inúmeras estruturas e formulações oficiais, mais cedo ou mais tarde, simplesmente ao seu declínio.
Com o seu exemplo pessoal de coragem cristã, o Papa Francisco nos inspira a não sermos nem intimidados nem desencorajados por alguns eventos na Igreja. Pelo contrário, ele nos convida a agir como livres filhos de Deus, vivendo responsavelmente a liberdade com que Cristo nos libertou e a não nos deixarmos impor novamente o jugo da escravidão da religião da lei, como nos adverte o apóstolo Paulo na carta aos Gálatas.
“Não está acontecendo nada, tudo continuará como antes!”, gritam os exaltados coveiros da Igreja, seguidores de uma religião morta. Sim, na realidade, não há nada que possa prender o Papa Francisco ou apedrejá-lo, como os habitantes de Nazaré queriam fazer com Jesus. Francisco não é um herege, assim como também não o são aqueles que acolheram o seu convite à renovação espiritual da Igreja. É necessário continuar nesse espírito, confiando no poder revolucionário da misericórdia de Deus, que é o alfa e o ômega da teologia de Francisco, mesmo que o próprio papa tenha perdido o poder de levar em frente a reforma necessária.
No início do Ano da Misericórdia, alguns nós tínhamos certas dúvidas teológicas sobre o fato de que a noção de misericórdia não acabaria interpretando o amor de Deus muito a partir “de cima”. No entanto, ficou claro por que o papa nos chama à misericórdia por meio da qual nós convidamos Deus para dentro das relações humanas complexas e dolorosas, não como fiador de princípios imutáveis, mas como um poder amável, cortês, generoso, compreensivo, indulgente e curador, capaz de transformar o ser humano, a Igreja e a sociedade.
A linha horizontal da “fraternidade humana” de que o papa falou na recente encíclica Fratelli tutti precisa da linha vertical do amor como misericórdia infinita que supera todas as fronteiras humanamente concebíveis; é o amor sem fronteiras rumo ao qual só podemos nos dirigir como objetivo que não será plenamente realizado até que sejamos acolhidos entre os braços de Deus.
Esse ideal não deve se tornar uma “lei”, de acordo com grande parte das palavras importantes de Jesus. Em vez disso, deve permanecer como um impulso constantemente provocador e profeticamente inspirador, em relação ao qual nenhum cristão jamais poderá “chegar ao fim”.
No início da pandemia, alguns cristãos tentaram novamente jogar a sua carta de um deus malvado e vingativo com o qual podiam assustar aqueles que já haviam se livrado da influência da Igreja. O medo sempre foi um terreno fértil para os empresários de uma falsa religião. Toda dor humana se presta a eles como suposta prova das suas visões apocalípticas. Assim como João Paulo II, o Papa Francisco também repete sublinhando as palavras de Jesus cheias de esperança e de força: não tenham medo! Não se deixem intimidar!
Devo admitir que, mesmo nestes dias em que o coronavírus está matando muitas pessoas no meu país, pessoalmente não posso deixar de me preocupar com outra pandemia, ou seja, a do fundamentalismo e da intolerância. Olhando para os apoiadores católicos de Donald Trump, eu luto contra a forte tentação do ceticismo: “O diálogo ecumênico dentro da Igreja Católica ainda é possível?”.
Eu acho que o diálogo inter-religioso, e particularmente com pessoas educadas e reflexivas fora da Igreja, é muito mais fácil do que qualquer comunicação com as pessoas que misturam a religião com os esforços populistas e nacionalistas. Por meio século, eu vivi um grande sonho de unir todos os que acreditam em Cristo. Hoje, para mim, esse sonho virou fumaça. Existem diferenças que eu considero insuperáveis – e estas diferenças não estão entre as Igrejas, mas sim no meio delas.
Eu realmente não posso marchar sob a mesma bandeira com pessoas que afirmam com segurança que sabem que Deus criou o mundo em seis dias; que Moisés é o autor dos Cinco Livros de Moisés (incluindo as passagens sobre a sua morte); que os destroços da Arca de Noé foram recuperados no Monte Ararat; com aqueles que são contrários à ordenação das mulheres afirmando que Jesus não escolheu nenhuma mulher como sua apóstola (afinal, ele não escolheu nenhum de nós, sequer os gentios incircuncisos. Seguindo essa lógica, não podemos, portanto, ordenar nenhum não judeu?); com aqueles que ignoram que a vitória aclamada dos grupos “pró-vida” na Polônia, a criminalização do aborto, encorajará o “turismo do aborto” das mulheres polonesas para a República Tcheca e a Eslováquia, contribuindo muito pouco para a proclamada proteção do nascituro, não conseguindo impedir efetivamente o mal do aborto. Não está claro, talvez, que muitos protestos “pró-família” têm pouco a ver com o apoio às famílias?
De fato, trata-se de protestos contra os direitos dos homossexuais, na Polônia também ligados às vezes a agressões físicas contra eles. Na Polônia, está atualmente em curso o processo de secularização mais rápido da Europa; se alguns bispos às vezes apoiam com miopia os políticos autoritários nacionalistas que abusam cinicamente do cristianismo para os seus próprios fins, eles são cúmplices do fato de que uma parte importante da sociedade polonesa, incluindo especialmente a geração mais jovem, se afastará definitivamente da Igreja; e a “Polônia católica”, assim como a “Irlanda católica”, acabará por ser história.
Para um grande número de cristãos hoje, o conteúdo positivo da fé se esvaziou. Portanto, eles sentem a necessidade de fundamentar a sua “identidade cristã” em “guerras culturais” contra os preservativos, o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo etc.
O Papa Francisco foi suficientemente corajoso ao se referir a esse catolicismo reduzido e negativamente definido como “obsessão neurótica”.
Eu não tenho absolutamente nenhuma intenção de abandonar a Igreja, onde continuarei encontrando pessoas com tais opiniões e convicções morais na única mesa eucarística. Estou bem ciente de que eu também sou uma pessoa humana falível e sujeita ao erro. No entanto, luto com uma grande dúvida: não chegou, talvez, o momento de deixar para trás o objetivo do ecumenismo de “todos os cristãos” e, em vez disso, concentrar todas as energias no aprofundamento de um fecundo ecumenismo (partilha, sinergia e enriquecimento recíproco) entre as pessoas dotadas de raciocínio, tanto crentes quanto não crentes?
Devemos continuar desperdiçando tempo e energias em fúteis tentativas de dialogar com pessoas exaltadas que ficam na defensiva quando a própria palavra diálogo é usada – mesmo que talvez possamos entender a motivação subjetiva da sua posição?
Um dos porta-vozes da direita católica tcheca, um ex-presidente da sua organização e ferrenho ativista contra a União Europeia, colocou “ecumenismo e homossexualidade” lado a lado na lista dos inimigos da verdadeira Igreja no seu manifesto há muito tempo.
Hoje, pessoas com essa mentalidade encontram o apoio de uma certa parte da hierarquia eclesiástica para as suas nomeações para os comitês das mídias no nosso país.
Na Hungria e na Polônia, esses adeptos da “democracia iliberal” (o Estado autoritário) eliminam pouco a pouco a liberdade e a independência das mídias, da justiça, das organizações não governamentais e das universidades.
Sim, rezamos a mesma oração do Senhor e o mesmo Credo junto com essas pessoas. Não nego que haja pessoas boas e honestas entre elas. No entanto, temo que vivamos em universos paralelos não relacionáveis.
Ouvindo um certo discurso apocalíptico sobre o mundo depravado que não contém a menor centelha do Evangelho, da fé, do amor e da esperança, e cujo autor não podia ser desculpado pelo seu simplismo de pensamento, perdi a convicção de que estava verdadeiramente ligado pela mesma religião com pessoas dessa mentalidade, mesmo que possamos pertencer formalmente à mesma Igreja.
Concordo plenamente com as palavras de um dos maiores líderes cristãos do século XX, o cardeal Martini: não tenho muito medo das pessoas que não têm fé; o que me perturba são as pessoas que não pensam. Porém, me dei conta de que a linha divisória entre as pessoas que pensam e as que não pensam não é absolutamente idêntica à diferença existente entre as pessoas instruídas e as não instruídas; o meu apelo não é por uma “religião elitista de intelectuais”. A diferença é muito mais profunda – está no “coração” das pessoas.
Eu me sinto no mesmo nível das pessoas que seguem os conhecimentos científicos em todos os campos em que a ciência é competente, fazendo, ao mesmo tempo, perguntas éticas e espirituais profundas.
O caminho entre o fundamentalismo religioso de um número considerável de cristãos e o fundamentalismo cientificista igualmente arrogante dos ateus militantes é muitas vezes estreito e exigente. Mas estou convencido de que é o caminho para seguir a Cristo hoje.
Talvez pudéssemos ainda evitar um cisma pensando em uma espécie de “Concílio Apostólico de Jerusalém”, do qual se fala nos Atos dos Apóstolos, dividindo as tarefas: alguns se ocupam das necessidades dos fiéis que aspiram às certezas do passado, enquanto outros ouviriam os chamados de Deus que se manifestam nos “sinais dos tempos”.
Muitas vezes, reflito se hoje poderíamos nos encontrar em uma situação semelhante à do apóstolo Paulo, que deixou que Tiago, Pedro e os outros veneráveis apóstolos continuassem o seu ministério entre os judeus cristãos (que, aliás, é a expressão de uma Igreja que logo chegou ao fim) e conduziu o corajoso jovem cristianismo do espaço limitado do judaísmo da época à ecumene – em um contexto cultural completamente diferente.
A missão de Paulo deu origem ao fenômeno que hoje chamamos de cristianismo; um fenômeno que muito provavelmente antecipa uma coragem semelhante para cruzar as atuais fronteiras.
Hoje, o Papa Francisco talvez nos mostre – e não apenas na sua declaração mais recente – tal compreensão do Evangelho e tal atitude em relação à criação e às pessoas, especialmente aquelas nas margens, que indicam profeticamente aquele que podemos chamar de cristianismo do amanhã.
A identidade cristã não está enraizada no imobilismo, mas sim no movimento do Espírito que atua na história para conduzir os discípulos de Jesus cada vez mais fundo na plenitude da verdade. Não estou defendendo um culto acrítico da personalidade e dos pontos de vista do Papa Francisco. Pelo contrário, o que eu peço é uma cultura do discernimento espiritual e a promoção daqueles valores que levam ao coração do Evangelho e a uma resposta corajosa e criativa aos “sinais dos tempos”.