Por: Jonas | 17 Dezembro 2015
“A misericórdia leva em consideração todos os atenuantes do outro. Neste nosso mundo histórico e socialmente pervertido, quase todo pecador é também uma vítima; e o misericordioso conhece suficientemente sua própria miséria para compreender a do outro”, escreve o teólogo jesuíta José Ignacio González Faus, em artigo publicado no seu blog Miradas Cristianas”, 15-12-2015. A tradução é do Cepat.
Fonte: http://goo.gl/bhfxgO |
Eis o artigo.
Esta ferramenta assombrosa que é a linguagem humana tem dois limites importantes: é insuficiente e nunca chega a alcançar a realidade que enfatiza. Recordo como esta constatação obcecou o grande poeta que foi J. M. Valverde, em seus últimos anos. Além disso, e talvez por essa razão, a linguagem humana é tremendamente prostituível; e mais ainda, quanto maior for a realidade que tenta abarcar.
Pois bem: Deus é a palavra mais prostituída da linguagem humana. E, por trás dela, outras grandes palavras como amor e liberdade. Também é chamativo como nós, os cristãos, degradamos a palavra caridade, hoje quase insignificante, sendo que em sua origem etimológica caridade é o mesmo que gratuidade plena...
Nestes meses, gostaria de ir reexaminando algumas dessas grandes palavras. Começando pela misericórdia, vocábulo decisivo na linguagem do papa Francisco e, por conseguinte, em seu modo de ver a realidade (pois, todo o universo linguístico traduz um modo de ver e de ser). Isto o fez declarar um “ano da misericórdia”, inaugurado no último mês de outubro. Contudo, há um perigo inegável de que o desvalorizemos, reduzindo-o a uma flor de plástico ou, como escreveu Domingo Soto, ainda no século XVI, a uma “misericórdia desnatada”.
Assim como ocorre com outros vocábulos humanos, o que mais se aproxima do verdadeiro significado das palavras é voltarmos a sua origem etimológica, ou a sua evolução, a partir dela. Neste caso, basta dizer que misericórdia significa simplesmente colocar o coração (cor-cordis em latim) na miséria (ou, talvez melhor, no mísero ou miserável): ‘miseri-cor’. A partir daí surgem alguns esclarecimentos:
1. Misericórdia não é o mesmo que permissividade (assim se desejou degradar a proposta de misericórdia para com os fracassados em sua primeira união matrimonial). A permissividade é uma falsa forma de querer, que busca mais o afeto e a gratidão do outro que o seu bem e seu crescimento. No exercício da paternidade ou da maternidade é possível aprender muito disto.
A misericórdia tem o valor de aproximar o coração da miséria do outro, mas sem negar esta. E isto por duas razões:
a) Porque sabe que o outro vale mais que essa miséria que agora o aprisiona e não o deixa aparecer como é. Isto é fácil de perceber em misérias físicas; no entanto, quando se trata da miséria moral do outro, implica em uma aposta. Por isso, a misericórdia sempre tem algo de risco.
b) Porque a misericórdia leva em consideração todos os atenuantes do outro. Neste nosso mundo histórico e socialmente pervertido, quase todo pecador é também uma vítima; e o misericordioso conhece suficientemente sua própria miséria para compreender a do outro.
2. A Misericórdia também não é essa pseudocompaixão que se presenteia com certa autocomplacência, para se sentir um superior, perdoador, melhor que o outro. A misericórdia é, intrínseca e dinamicamente, igualitária. Por outro lado, observemos quantas vezes as críticas que nós fazemos aos outros mascaram um desejo de nos apresentar como superiores a eles. Em geral, quanto mais dura é a crítica que fazemos, maior sinal costuma ser desse orgulho que, inconscientemente, busca se sentir superior (exceto quando a dureza provém da indignação pela dor causada a outros).
A Carta de São Paulo aos Romanos que, em boa parte, é uma proclamação da Misericórdia, concretiza em dois pontos esse igualitarismo que acabo de mencionar: “todos são pecadores e necessitam da bondade de Deus”. Mas, também, todos foram agraciados e podem aderir a essa bondade.
3. Finalmente, a misericórdia é intrinsecamente dolorosa. O coração sofre quando se aproxima da miséria física do outro. E ao nos aproximar de sua ruindade moral, o coração também sofre porque o amor procura triunfar sobre a indignação. O teólogo japonês K. Kitamori, em uma obra memorável (Teologia da dor de Deus), definia essa dor de Deus como “o amor de Deus triunfando sobre sua ira”. Nós somos incapazes de viver as duas coisas ao mesmo tempo: amor e ira; por isso, é tão difícil para nós sermos autenticamente misericordiosos. Então, ou consideramos que Deus é Amor e eliminamos sua ira, criando para nós um “deus à la carte”, que é mera projeção de nossos desejos infantis, ou ficamos com a ira de Deus (que se torna evidente, quando lançamos um olhar para este mundo cruel e injusto) e criamos um deus do medo, que desfigura radicalmente toda a religiosidade humana ( e que hoje continua presente em muitos que se consideram católicos).
O ano da misericórdia não deverá ser uma dessas celebrações quase só nominais, ao qual estamos tão acostumados e que deixam as coisas como estão (“ano da infância”, “da mulher”, “dos povos indígenas”...). Deveria ser um ano muito mais sério, que nos torne um pouco mais humanos, desenvolvendo aquilo que todos nós temos de divino. Poderíamos marcá-lo com esta simples frase, que parodia algumas palavras de Jesus:
“Querer aquele que não te quer, isso é de verdade querer, se for de outra forma, chama-se corresponder. E isso... qualquer um faz”.
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Ano da misericórdia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU