União civil de homossexuais. A coragem de Francisco que estimula o debate e coloca a Igreja diante das realidades do mundo. Entrevista especial com Lucas Paiva

Para o jovem, a grande contribuição do pontífice é abrir a discussão sobre qualquer tema, como a união civil homossexual, mesmo que de imediato isso não implique mudança na Doutrina

Foto: Pixabay

Por: João Vitor Santos | 28 Outubro 2020

Nas últimas semanas, a divulgação de uma entrevista em que o papa Francisco defende a união civil entre pessoas do mesmo sexo tem causado furor dentro e fora dos muros da Igreja. No documentário Francesco, com direção de Evgeny Afineevsky, lançado no último dia 21 num festival de cinema em Roma, o Papa diz que “devemos criar uma lei de união civil para que (os homossexuais) sejam legalmente protegidos”. Para muitos, é um grande avanço. Para outros, nem tanto, pois a Igreja segue celebrando o sacramento do matrimônio apenas entre homem e mulher. Enquanto isso, alas mais conservadoras se insurgem contra o Papa, dizendo que tal afirmação causa confusão entre os fiéis. Mas, para o jovem Lucas Paiva, que integra um grupo LGBT católico, há sim o que comemorar. “O Papa segue determinado em pôr um fim às guerras culturais que sequestraram o discurso da Igreja nas últimas décadas”, destaca.

 

Na entrevista a seguir, concedida por email à IHU On-Line, Paiva ainda observa que a grande contribuição de Francisco é mesmo trazer esses assuntos à tona. “Ele não tem medo dessas discussões, e está permitindo e incentivando que os bispos, os teólogos e os católicos de modo geral possam discutir livremente todo e qualquer assunto, inclusive porque a sobrevivência da Igreja depende de um ajuste de contas com a sexualidade humana”, analisa.

 

No entanto, o jovem reconhece que não há mudanças práticas na Doutrina da Igreja. “Ainda que animadora, essa fala fora dos canais oficiais mostra como ainda estamos distantes do pleno reconhecimento pela Igreja do valor do amor, seja entre pessoas hétero ou homossexuais. Mas seguramente estamos a caminho”, observa. Para ele, muito ainda precisa ser revisto e não somente o que se refere aos homossexuais. “O matrimônio como está é um problema também para os casais heterossexuais. O Sínodo de 2014, o primeiro convocado pelo papa Francisco, começou a tocar nessas questões, mas enquanto os fiéis já se resolveram por si e aceitaram de bom grado temas como o divórcio e o controle de natalidade, os bispos pelo mundo afora permanecem encastelados numa visão idealizada e restritiva de família”, aponta. E provoca: “se os bispos olharem para o seu povo, verão que a maioria dos católicos já está muito além da Igreja e reconhece a sacralidade do amor e sua superioridade frente às leis”.

 

Lucas Paiva (Foto: Arquivo pessoal)

Lucas Paiva é formado em Administração e Pós-Graduado em Mídias Digitais. Escritor, gay católico e membro do Grupo de Ação Pastoral da Diversidade – GAPD, é comprometido com a construção de pontes entre as pessoas LGBTI+ e a Igreja.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – O papa Francisco apoiou as uniões civis em um novo documentário, Francesco, estreado em Roma. O que isso significa?

Lucas Paiva – Significa que o Papa segue determinado em pôr um fim às guerras culturais que sequestraram o discurso da Igreja nas últimas décadas. Desde o início do seu pontificado, Francisco vem abandonando a cruzada da moral e dos bons costumes e ajustando o foco da instituição para as questões de justiça social. Ele chegou a dizer que não compreendia a ideia de valores inegociáveis e criticou a Igreja por ser extremamente centrada em questões sexuais e reprodutivas, enquanto o mundo arde em uma crise econômica, política e ecológica.

Ao se posicionar favoravelmente às uniões civis para casais do mesmo sexo, Francisco reconhece que as pessoas LGBTI+ devem ter seus direitos assegurados e alerta os católicos para não usarem a religião como justificativa para seus preconceitos. Além disso, é a primeira vez que o Papa faz menção à família quando fala de pessoas LGBTI+, e mesmo que não tenha falado em “formar família”, mas “fazer parte de uma família”, isso muda seguramente a perspectiva para uma abordagem mais pastoral e respeitosa.

 

 

É interessante ver também que essa declaração é um modo de fazer as pazes com o estado laico, pois o Papa demonstra compreender e valorizar os limites entre a lei civil e os dogmas religiosos.

 

 

IHU On-Line – O que tem de importante e o que tem de fetiche e espetáculo na repercussão sobre a fala do Papa?

Lucas Paiva – Se pensarmos nos posicionamentos adotados por Francisco, sua fala não é exatamente uma surpresa. Porém, ela é um passo extraordinário na caminhada da Igreja Católica para se libertar de seus mecanismos de exclusão e discriminação. O papado é pela sua própria natureza uma fonte de inspiração e orientação para mais de 1 bilhão de católicos, e se somarmos a isso o reconhecimento que Francisco tem inclusive entre não católicos e não cristãos, podemos imaginar o tamanho do impacto positivo que suas palavras podem ter na vida das pessoas LGBTI+.

E isso é muito importante, sobretudo enquanto as alas conservadoras do catolicismo estão se tornando cada vez mais aguerridas em suas lutas moralistas, como na Polônia, onde o episcopado está aliado a um governo declaradamente LGBTIfóbico; ou em Uganda, onde os bispos apoiam formalmente a lei que criminaliza a homossexualidade; ou ainda no Brasil e nos EUA, onde o espantalho da ideologia de gênero vem unindo católicos e evangélicos fundamentalistas num ecumenismo de ódio.

 

 

Obviamente, é preciso reconhecer que uma fala do Papa não muda o ensino oficial da Igreja, e nele os relacionamentos homoafetivos continuam sendo carimbados como pecado mortal. Portanto, ainda que animadora, essa fala fora dos canais oficiais mostra como ainda estamos distantes do pleno reconhecimento pela Igreja do valor do amor, seja entre pessoas hétero ou homossexuais. Mas seguramente estamos a caminho.

 

 

IHU On-Line – Como compreender as reações a essa afirmação do pontífice, especialmente as contrárias?

Lucas Paiva – Uma das primeiras reações negativas veio do cardeal Gerhard Müller, ex-guardião da Doutrina, que acusou o Papa de querer se colocar acima da palavra de Deus. O prelado alemão queixou-se que as declarações de Francisco causaram desorientação em muitos fiéis que inclusive lhe telefonaram em busca de direção. No Brasil, a reação mais agressiva e menos inesperada veio do pastor e empresário Silas Malafaia, que acusou o Papa de estar a serviço de um tal “marxismo nojento que quer destruir os valores da família”.

Os dois casos são exemplares de como age e pensa o movimento conservador, e suas falas em muito me lembram o pensamento do Sinédrio que julgou Jesus por ter curado um homem no sábado. Francisco, ao contrário deles, entende que o Ser Humano é maior do que o Sábado, ele defende a dignidade das pessoas acima de procedimentos, regras e leis.

 

IHU On-Line – Quais os avanços e os limites desse pontificado na acolhida à comunidade LGBT?

Lucas Paiva – Os avanços são significativos, e falo a partir da minha experiência como membro de um grupo católico LGBTI+ (o GAPD - Grupo de Ação Pastoral da Diversidade). Há 10 anos, quando começamos a nos reunir liderados pelo padre e teólogo James Alison, o tema da homossexualidade era um completo tabu na Igreja Católica, sobre o qual se fazia voto de silêncio. Sempre houve muitos LGBTI+ envolvidos nas atividades cotidianas da Igreja, mas era imperativo não se apresentar livremente como um.

No GAPD tomamos a decisão de nos definir publicamente como LGBTI+ e Católicos, trabalhando pela conciliação entre essas duas dimensões de nossas vidas, e encontramos emocionalmente muitas pessoas machucadas por conta de preconceitos sofridos especialmente em suas paróquias e comunidades. Da hierarquia católica recebemos como resposta uma postura de distanciamento, por vezes até combativa e ríspida, que nos levou a viver nossa fé como se tivéssemos retornado ao tempo das catacumbas.

 

 

O fato é que Francisco destravou o debate sobre esse tema e desde então nós podemos respirar um pouco mais aliviados. Os avanços ficam evidentes no número cada vez maior de pessoas do clero que se posicionam com liberdade contra nossa discriminação, na quantidade crescente de grupos de católicos LGBTI+ no Brasil e no mundo, inclusive em cidades menores, ou no surgimento de uma pastoral oficial para a diversidade como a das Igrejas de Nova Iguaçu-RJ e de Belo Horizonte-MG. De modo lento e consistente a demonização das pessoas LGBTI+ vem sendo desfeita, pelo menos para boa parte dos católicos, e os que permanecem agressivos contra nós são as alas irremediavelmente reacionárias.

Mas claro, existem limites para o avanço. A doutrina ainda não foi revisitada, não aconteceu nenhum desdobramento oficial sobre a forma negativa como o ensino católico classifica as relações homoafetivas, e ao que tudo indica isso não acontecerá no curto prazo. Basta ver as reações raivosas ao documento Amoris Laetitia, que apenas suavizou a relação da Igreja com os divorciados recasados, para compreender que a velocidade das transformações não é alta.

 

 

IHU On-Line – Mesmo reconhecendo que “as pessoas homossexuais têm direito a uma família”, Francisco não associa esse direito ao sacramento do matrimônio ministrado pela Igreja. Como interpreta essa relação?

Lucas Paiva – Esse já era o posicionamento de Bergoglio como arcebispo em Buenos Aires, onde ele apoiava uma lei que reconhecesse e protegesse as uniões homoafetivas, mas que as diferenciasse do casamento. O sacramento do matrimônio na Igreja Católica é compreendido de uma forma muito limitante, pois só se entende como válida a união indissolúvel entre um homem e uma mulher que estejam abertos à vida, ou seja, à procriação. Desse entendimento decorrem tanto o veto da Igreja aos métodos contraceptivos quanto a proibição de comungar imposta aos divorciados recasados, tratados como adúlteros.

Essa leitura fez do sacramento do matrimônio uma bandeira para os conservadores, que enxergam no exemplo de Adão e Eva um desejo explícito do próprio Deus para a humanidade, ainda que a dita família tradicional composta de homem, mulher e prole não seja exatamente a mais recorrente nos relatos bíblicos. O rei Salomão, por exemplo, tinha setecentas mulheres e trezentas concubinas, o patriarca Abraão era casado com Sarah e teve um filho com a escrava Agar, e a própria definição do casamento como sacramento aconteceu somente no século XI por decisão do papa Gregório VII.

Portanto, o matrimônio como está é um problema também para os casais heterossexuais. O Sínodo de 2014, o primeiro convocado pelo papa Francisco, começou a tocar nessas questões, mas enquanto os fiéis já se resolveram por si e aceitaram de bom grado temas como o divórcio e o controle de natalidade, os bispos pelo mundo afora permanecem encastelados numa visão idealizada e restritiva de família. Enquanto essa ideia não for desmontada é impossível esperar que a Igreja reconheça o matrimônio para casais do mesmo sexo.

 

 

IHU On-Line – Por que a conciliação entre sexualidade e catolicismo ainda parece algo distante para muitos, inclusive dentro da própria estrutura da Igreja? Como superar essa realidade?

Lucas Paiva – O Cristianismo tem um problema sério com a sexualidade humana, embora Jesus Cristo tenha falado muito pouco sobre o tema. Já São Paulo, o apóstolo, não economizou palavras para criticar o desejo sexual, promovendo inclusive o celibato, que cerca de mil anos depois seria adotado como regra para os padres no Ocidente. Um outro líder cristão com papel fundamental na definição do sexo como algo negativo foi Santo Agostinho que, influenciado pela filosofia de Platão, pregava que o desejo sexual levaria o homem a se rebelar contra Deus, assim como aconteceu com Adão. Vem dele a ideia de que o pecado original é transmitido de geração em geração através da relação sexual.

Estudiosos dizem que essa rejeição ao prazer físico nas primeiras comunidades cristãs estava ligada à crença do breve retorno de Jesus e do fim do mundo, tornando quase intuitiva a opção pelo espírito ante a carne. Século após século, esse conjunto de visões demonizadas sobre o desejo foi sendo reforçado e se tornou doutrina dominante, que nos atormenta até hoje. E claro, não apenas a nós homossexuais, pois a masturbação ainda consta no rol de pecados contra Deus, o sexo antes do casamento e tomar anticoncepcional ou usar camisinha também.

Desconstruir essa lista de pecados e proibições que deturpam a compreensão do prazer sexual não é tarefa fácil, mas é possível se começarmos a discutir a questão sem medo. E é esta a grande contribuição do papa Francisco, ele não tem medo dessas discussões e está permitindo e incentivando que os bispos, os teólogos e os católicos de modo geral possam discutir livremente todo e qualquer assunto, inclusive porque a sobrevivência da Igreja depende de um ajuste de contas com a sexualidade humana. O escândalo dos abusos é o sinal mais evidente disso.

 

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Lucas Paiva – Na Igreja Católica, há um conceito fabuloso que é o Sensus Fidelium. Essa expressão significa que a Igreja acredita que nós, o povo cristão, possuímos um instinto natural que nos ilumina sobre o que, em matéria de fé e prática, é coerente com a perspectiva do Evangelho. Se os bispos olharem para o seu povo, verão que a maioria dos católicos já está muito além da Igreja e reconhece a sacralidade do amor e sua superioridade frente às leis, inclusive o amor entre as pessoas LGBTI+.

 

 

Leia mais