06 Janeiro 2017
O jesuíta Antonio Spadaro não possui nenhum dos títulos autoridade geralmente associados com clérigos no Vaticano. Mas este padre italiano já entrevistou o Papa Francisco várias vezes e é conhecido como um dos assessores de confiança do pontífice.
A principal função de Spadaro é a de editor da Civiltà Cattolica, respeitado periódico que conta com a revisão do Vaticano antes de ter suas edições publicadas. No entanto, é a sua identificação com Francisco e com os esforços do papa para reformar a Igreja Católica o que tem feito de Spadaro, 50 anos, um para-raios para os muitos críticos do pontífice, especialmente os conservadores.
Spadaro sentou-se para uma entrevista com o Religion News Service em novembro passado em seu escritório na Villa Malta, sede da Civilta Cattolica. Em um diálogo abrangendo vários temas, ele falou sobre a oposição a Francisco, o que vem pela frente em 2017 para o papa e a Igreja, como Francisco, hoje com 80 anos, lida com a sobrecarga de trabalho e por que Spadaro está cansado de ver o querido pontífice ser descrito como um papa “legal”.
A entrevista é de David Gibson, publicada por Religion News Service, 27-12-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O Papa Francisco deu início a vários projetos e reformas diferentes numa ampla gama de questões, muitas delas bem polêmicas. O que vem a seguir para o papa e a Igreja Católica em 2017?
O modo como Francisco toma decisões é não fazer planos ou propostas, com grandes coisas a fazer aqui e poucas coisas ali. Não.
Há apenas um real discernimento. É durante o trajeto que ele compreende o que fazer. Portanto não é possível fazer uma previsão, mesmo para ele próprio. Em nossa entrevista de 2013 e em outros momentos, o papa me contou que há sempre uma surpresa. Não tem como prever o que irá ser.
Porém me parece que não há uma pressa, de forma alguma, mas sim uma urgência em tirar vantagem do tempo. Aproveitar o momento.
Ele completou 80 anos em dezembro...
Sim, mas esta sensação não tem a ver com pressão. Ele não sente a necessidade de pressa porque sabe que a Igreja depende de Deus. Não depende dele. O papa está liderando através da abertura de processos. Pelo menos, ele poderá ver o final de alguns processos que começaram em seu pontificado.
Francisco não sente nenhum tipo de pressão ou pressa. Mas quer aproveitar o momento, como dito: quer tirar vantagem do tempo que lhe é dado. É uma sensação de responsabilidade; não uma sensação de pressa.
Percebo isso porque ele está sempre calmo e quieto. É incrível. É um tipo de milagre!
Em entrevista recente, ele falou que “dorme como uma tora” por seis horas a cada noite. Também disse que reza bastante, e que sua resistência é uma “graça do Senhor”. Qual o segredo dele?
Sim, ele nunca fica estressado. Sempre está trabalhando, mas nunca estressado. É um tipo de milagre. Mas, como ele diz, é um homem de oração.
Tudo isso é fruto da oração...?
Começa na capela. Ele não tem um escritório. Tem uma sala na [residência] Santa Marta. O seu escritório é a capela.
Certo, mas alguma ideia do que virá a seguir?
Na verdade, isso não atrai a atenção...
O próximo Sínodo dos Bispos no Vaticano, programado para outubro de 2018 sobre a juventude, certamente parece um foco importante, não?
O grande tópico, ou tema, que vi surgir nos últimos meses é o “discernimento”. Este tema está no centro de Amoris Laetitia, especialmente o discernimento para os padres e seminaristas [1]. Ele percebe que o problema no coração de Amoris Laetitia não é um problema dogmático. O que realmente não é – não se trata de um problema dogmático.
O problema é que a Igreja deve aprender a aplicar melhor e de modo mais profundo a prática do discernimento, e não só aplicar regras da mesma forma a todo mundo. A Igreja deve estar atenta à vida das pessoas, à caminhada de fé delas e à maneira como Deus atua em cada uma. Assim um pastor não pode ser um pastor por aplicar regras gerais a pessoas individuais. A Igreja precisa crescer no discernimento. Este será também um dos tópicos mais importantes do próximo sínodo.
Enquanto isso, os críticos do discernimento – como os famosos quatro cardeais – dizem que precisam de respostas do tipo “sim ou não”. Não sei se eles são críticos do discernimento. Só sei que o papa tem dito que a vida não é preto ou branco. É cinza. Há inúmeras nuances, e nós precisamos discerni-las.
É este o significado da Encarnação – o Senhor fez-se carne, o que significa que estamos envolvidos com a verdadeira humanidade, que jamais é fixa ou demasiado clara. Portanto, o pastor precisa adentrar-se na verdadeira dinâmica da vida humana. Eis a mensagem da misericórdia. O discernimento e a misericórdia são os dois grandes pilares deste pontificado.
Existe a sensação de que a oposição à abordagem de Francisco está crescendo e ficando mais intensa?
Não, não! O problema é que alguns opositores fazem muito barulho, especialmente nas mídias sociais. Eles criaram uma câmara de eco. Mas podemos ouvir o barulho somente no lado de dentro das sacristias.[2] Se sairmos das sacristias, nada conseguimos ouvir. Então, só as pessoas dentro delas é que podem ouvir estas coisas.
A questão não é sobre os quatro cardeais ou quaisquer outros. Francisco já disse muitas vezes que gosta que haja oposição. Oposição não é um problema para ele. Em sua vida ele sempre teve oposição. O papa já se acostumou com ela e percebeu que a vida é feita de tensões. E porque a vida é feita de tensões, se não houver tensão não há vida. Um bom sinal da eficácia do processo de reforma é exatamente o surgimento da oposição.
Mas o Papa Francisco distingue entre dois tipos de oposição: existe a oposição crítica feita por pessoas que cuidam da Igreja. Eles amam a Igreja. Querem, realmente, em boa consciência o bem da Igreja. Mas existe um outro tipo de oposição, que é simplesmente impor a própria visão, que é uma oposição ideológica. O papa ouve os primeiros e está aberto à aprendizagem. Porém não presta muita atenção a este segundo tipo.
A “boa” oposição está crescendo? E o que isso significaria para a abordagem do papa?
A boa oposição é discreta. Há pessoas que conversam com o papa e são muito claras. E ele gosta deste tipo de pessoa, desde que elas não façam barulho, expressões teatrais.
Em 2013, no começo de nossa entrevista, ele me disse que seu eu achasse que alguma coisa que ele estivesse dizendo estivesse errada, por favor que eu lhe dissesse. Fiquei surpreso com algo assim. É uma coisa pequena, mas mostrou como está aberto a críticas.
Mas temos de levar em conta o fato de que há alguns gestos ou documentos, como Amoris Laetitia, que são fruto de um longo processo. Não é só o papa que diz o que está aí escrito, são dois sínodos, e os sínodos foram bem abertos e diretos. O papa gosta disso. No final, ele escreveu a sua exortação porque sabe que esta é a sua função como papa – porque ele não é apenas um papa “legal”.
O que quer dizer com isso? Muitíssimas pessoas acham que, na realidade, ele é muito legal e é por isso que elas o adoram.
Estou cansado de ver isso, de que o papa é “legal e bondoso”. Sim, ele é legal e ele é bondoso, evidentemente. Mas ele sabe o que significa ser um papa. Ele está absolutamente ciente de sua função. Sabe o que fazer e sabe que tipo de poder ele tem – que é um poder de serviço.
Ele é o papa, e sabe que é o papa. Está plenamente ciente de seu ministério como sucessor de São Pedro. Portanto ele exercita a autoridade das chaves de Pedro quando necessário. Mas o papa ouve muito, obtém informações, ele é aberto. Reza muito antes de fazer algo. Mas quando toma uma decisão, essa decisão vem a partir de um longo processo. Isso é bem importante. Ouvir, rezar e discernir.
Então quando ele age como papa, não é um capricho pessoal?
Ele é bastante duro. Toma decisões. Mas é o resultado de um processo. Ele não é legal; é duro. É misericordioso. É quieto e calmo.
Não gosto da imagem de um papa “legal” apenas. Jesus deu um testemunho do amor de Deus. Ele não foi só legal. O jeito de agir do papa e de dizer as coisas decorre do Evangelho. É moldado pelo Evangelho. Não é moldado pelo desejo de ser legal.
Olhando para frente, as pessoas estão também falando sobre o que acontecerá “depois de Francisco”. Ele está com 80 anos. Qual o futuro do papado? Vimos a reação depois do governo Obama, com a eleição de Donald Trump. Teremos uma dinâmica parecida com Francisco?
Essa questão não me chama a atenção. Ela faz sentido, evidentemente. Mas não me chama a atenção porque acredito, realmente, nas surpresas de Deus e penso que há o papa certo na hora certa, como foi nas décadas passadas.
Só acho que o processo que Francisco iniciou não é reversível. Isso, porém, não quer dizer que o seu sucessor precisa ser como ele. Ele pode ser completamente diferente. Vamos ver, mas não sabemos.
Francisco também parece respeitar a tradição de um jeito que, em geral, é ignorado. Ele não ultrapassou o limite de 120 cardeais, por exemplo, como fez João Paulo II algumas vezes.
De forma alguma ele é progressista. Ele não é conservador, mas também não é progressista. O papa é diferente disso. Ele também não gosta de estar rodeado de “bergoglianos” – pessoas como ele. Então é um modo completamente diferente de compreender.
Como anda a reforma da Cúria Romana? Tem havido muitas mudanças organizativas.
As estruturas podem mudar, mas Francisco já disse que temos de mudar a alma antes de mudar as estruturas. E a alma está mudando. A visão dos departamentos é bastante inclusiva, não dividindo cada departamento em partes diferentes da vida católica ou da doutrina.
Para mim, o maior desafio é não reduzir o povo de Deus a regras, de forma que os padres estejam aqui e os leigos acolá. Existe uma visão diferente, uma visão mais pastoral, mais global, mais enraizada no Concílio Vaticano II.
As reformas estão em curso, e o espírito estará moldando as coisas, lentamente. Leva tempo, mas não estamos com pressa. A mudança é fruto de uma consulta. Ela está avançando. As coisas estão acontecendo, estão se desenvolvendo muito bem.
Eis o mais importante para mim: Qual a intenção do papa? Certa vez fiz ao papa esta pergunta: Mas o senhor quer reformar a Igreja? A resposta foi: “Não”. Lembro-me disso muito bem. Estávamos aqui naquela sala, na [residência] Santa Marta. Ele falou: “Só quero empurrar Cristo para o centro da Igreja. Quero dizer, mais e mais. Assim, se Cristo estiver no centro da Igreja, ele irá fazer a reforma. Não cabe a mim. Cabe a ele”.
Se colocarmos Cristo no centro, seremos capazes de mudar tudo. Para mim isso é bem importante, pois me fez perceber que ele não está interessado em fazer um monte de mudanças; não está preocupado com elas. Ele está preocupado com o interior da Igreja. Para Francisco, aí tem de estar Cristo.
Por exemplo, a misericórdia – misericórdia significa pôr o coração do Evangelho no lado de dentro do coração da Igreja. Não regras, não problemas, não normas. O centro da Igreja é a misericórdia de Deus. Assim se a misericórdia divina estiver no centro, poderemos compreender todas as coisas sob uma perspectiva diferente. E poderemos fazer todas as reformas que quisermos.
Isso também ajuda a entender o seu próprio papel na Igreja. Ele não se sente sendo o centro da Igreja, como se tudo estivesse a seu encargo. É por isso que o papa não se sente pressionado, é por isso que não fica estressado. Não cabe a ele. Cabe a Deus. Ele é um canal e trabalha para isso. Depois de concluir o seu dia de trabalho, ele come bem e dorme bem. É esta a percepção de seu papel na Igreja.
Ele está em boa saúde?
Muito boa, sim. À noite ele se sente cansado. Mas se recupera muito facilmente. Às vezes durante as viagens, por exemplo, posso vê-lo muito cansado no final da manhã. Em seguida, dorme por duas ou três horas, e então volta renovado.
O papa sabe como lidar consigo próprio. Uma vez eu lhe disse: “Cuide-se, preserve suas energias”. Ele falou: “Não se preocupe com isso. Quando eu me sinto cansado, eu paro”. Portanto ele vai cancelar audiências, ou às vezes quando se sente cansado ele come uma maçã e tira uma soneca. Francisco sabe lidar com sua saúde.
Notas:
[1] Amoris Laetitia: é a extensa exortação que Francisco publicou no ano passado em que apresenta suas considerações a partir das deliberações de dois grandes encontros episcopais, ou sínodos, voltados à abordagem da Igreja em torno da família moderna. O documento tem gerado grande polêmica por aparentemente permitir que os pastores contornem as regras junto aos fiéis diante do sacramento da Comunhão. (Nota do Religion News Service)
[2] Sacristia: Local em uma igreja onde os padres e bispos trocam suas vestimentas. (Nota do Religion News Service)
[3] Vaticano II: Concílio reformador ocorrido na década de 1960. (Nota do Religion News Service)
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Sessão de perguntas e respostas com Pe. Antonio Spadaro, jesuíta que tem a atenção do papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU