11 Agosto 2022
“A mudança de época em que as sociedades do trabalho democráticas se encontram hoje implica não apenas a defesa do que já existe, mas também que essas sociedades questionem sua própria noção de liberdade para existirem como sociedades livres”, escreve Lea-Riccarda Prix, assistente de pesquisa no Centro de Humanidades e Mudança Social, do Instituto de Filosofia da Universidade Humboldt de Berlim, em artigo publicado por Nueva Sociedad, Agosto/2022. A tradução é do Cepat.
Esta pergunta tem ao menos duas dimensões: o que entendemos por trabalho e o que realmente caracteriza o trabalho? A primeira é a dimensão conceitual, ao passo que a segunda é a empírica. Sendo assim, uma primeira resposta à pergunta inicial pode ser que o que entendemos hoje por trabalho difere do que realmente constitui uma boa parte do trabalho. Para compreender isto, vale a pena olhar para a história.
Em sociedades do trabalho abertas e democráticas, o conceito de trabalho deve estar vinculado à ideia de liberdade. Na história, esta conexão está imediatamente relacionada ao surgimento da sociedade do trabalho moderna. Durante séculos, o trabalho foi a expressão da necessidade natural e da falta de liberdade. Só podia ser livre quem não trabalhava.
Contudo, essa velha ideia mudou com as revoluções científicas e civis dos séculos XVI e XVII. Iniciou-se, então, um processo por meio do qual o conceito de trabalho foi paulatinamente vinculado à ideia de liberdade. Surgiu o paradigma moderno do trabalho, sendo considerado fonte de liberdade, tanto para o indivíduo como para a sociedade.
Do lado do indivíduo, dois ideais em particular se tornaram essenciais para esse paradigma moderno do trabalho: o “ideal de esforço” e o “ideal de autorrealização”. O ideal de esforço se baseia na suposição de que não é a origem social que determina a posição econômica e social do indivíduo na sociedade, mas o esforço de cada indivíduo em seu trabalho. Uma suposição gerada durante a revolução burguesa impulsionou a transição de uma sociedade feudal a uma sociedade burguesa, no século XVIII, e continua sendo até hoje uma das bases essenciais de legitimidade das sociedades do trabalho livres.
O ideal de autorrealização se baseia na suposição de que o trabalho é uma fonte essencial de expressão do próprio ser. Segundo este ideal, o trabalho não é “meramente” um instrumento para ganhar dinheiro com a finalidade de alcançar a independência econômica, mas a própria questão da identidade ganha centralidade no trabalho. Nele se expressa quem a pessoa é ou gostaria de ser.
Do lado da sociedade, os dois seguintes ideais, em particular, tornaram-se fundamentos do paradigma do trabalho moderno: o trabalho como fonte de libertação do ser humano dos ditames da necessidade natural e o trabalho como fonte de prosperidade social. Os dois ideais foram estabelecidos pelas revoluções científica e industrial dos séculos XVI, XVII e XVIII. Pode-se dizer que o primeiro ideal é o ideal técnico do trabalho, e o segundo, o ideal econômico do trabalho.
Segundo o ideal técnico, a combinação de trabalho e tecnologia, ou o trabalho como meio que impulsiona desenvolvimentos técnicos, é crucial para libertar os humanos das necessidades naturais que os definem como seres físicos e parte do ambiente natural. Esse ideal se baseia em uma ideia de liberdade na qual a liberdade do ser humano se expressa essencialmente em sua independência e seu domínio da natureza.
Segundo o ideal econômico, o trabalho é um fator de produção econômica e a fonte real de criação de valor econômico. Esta “economização” do trabalho foi decisiva para que a finalidade geral do trabalho passasse da “mera” subsistência para o aumento da prosperidade geral.
Esses quatro ideais do trabalho impulsionaram o surgimento da sociedade do trabalho e estabeleceram sua base normativa de legitimidade: a sociedade do trabalho permite a cada indivíduo, por meio da atividade trabalhista que escolheu, a justa participação na prosperidade da sociedade, que é gerada pelo trabalho. Mas se lançarmos um olhar para o estado atual do mundo do trabalho, rapidamente surgem muitas coisas que levantam dúvidas justificáveis sobre a validade desses quatro ideais de liberdade no trabalho.
Enquanto nas décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial o ideal de esforço experimentou um apogeu nas nações industrializadas ocidentais, atualmente, a perspectiva de experimentar uma ascensão social e econômica por meio do trabalho individual esvaeceu em um futuro distante para a maioria dos trabalhadores. A mobilidade ascendente das décadas do pós-guerra, que o sociólogo Ulrich Beck descreveu, em 1986, com a expressão “efeito elevador”, tornou-se hoje uma mobilidade descendente, que o sociólogo Oliver Nachtwey resume na imagem da “escada rolante em descida”.
A “sociedade de mobilidade ascendente” das décadas do pós-guerra se caracterizava, assim como a atual “sociedade de mobilidade descendente”, por um PIB crescente com uma simultânea desigualdade social. Enquanto na “sociedade de mobilidade ascendente” todos recebiam um pedaço do bolo que crescia e subiam juntos no “elevador”, hoje, na “sociedade de mobilidade descendente”, só alguns se beneficiam do bolo que cresce e cada vez mais pessoas pegam a “escada rolante em descida”.
São diversas as razões para a precarização das condições de trabalho refletidas nesse processo: da redução de impostos e a falta de investimento nas instituições públicas, passando pelo desmantelamento dos sistemas de seguridade social, até a expansão das estruturas de subcontratação e o aumento do emprego temporário e os falsos trabalhadores autônomos no setor privado.
Claro, ainda é possível experimentar alguma ascensão social e econômica através do esforço individual. No entanto, cada vez mais estudos sobre a situação atual do mundo do trabalho apontam que a possibilidade de um trabalho remunerado não é a regra, mas, sim, a exceção na realidade trabalhista da maioria dos trabalhadores, mesmo nas nações industrializadas do Ocidente.
Em especial, chama a atenção o seguinte: as condições de trabalho são particularmente problemáticas em setores que foram rotulados como “relevantes para o sistema”, durante a pandemia de coronavírus. Se quando é perguntado a alguém o que exatamente entende por “trabalho”, oferece a resposta plausível de que é uma atividade particularmente relevante ou importante para a sociedade, então, nesse ponto, fica evidente uma contradição no atual mundo do trabalho.
Essa contradição em relação ao ideal de esforço também se reflete no que diz respeito ao ideal de autorrealização. Ao mesmo tempo, a visão de que o próprio trabalho é uma expressão da identidade pessoal não está muito difundida nos trabalhos que ganharam visibilidade, durante a pandemia de coronavírus, como particularmente relevantes para o sistema. A questão não é tanto quem a pessoa é ou gostaria de ser no trabalho, mas fazer algo pelos outros através do próprio trabalho.
Nos setores com trabalhos “menos” relevantes para o sistema, como os setores criativo, artístico e cultural, nos quais o ideal de autorrealização desempenha um papel importante, a visão de que o trabalho é uma expressão da identidade e da paixão pessoal costuma ser uma justificativa para aceitar condições precárias de trabalho. Possivelmente, não se ganha muito dinheiro, nem se tem um emprego garantido, mesmo assim, “ama-se” o que se faz.
Também podem surgir dúvidas justificadas em relação à validade do ideal técnico e econômico do trabalho. Nunca antes na história, a dependência da humanidade dos recursos naturais e a estreita imbricação da vida humana com o ambiente natural foram tão evidentes como hoje. Os efeitos problemáticos da exacerbação da crise climática são difíceis de negar, mesmo para os mais céticos, e um vírus paralisou o mundo inteiro em poucos meses.
Ao mesmo tempo, a humanidade entrou em uma era tecnológica em que a influência da tecnologia na vida e no trabalho humanos adquiriu dimensões históricas. Hoje, é inimaginável viver e trabalhar sem usar alguma tecnologia. Por mais revolucionárias que tenham sido as conquistas técnicas do século passado e por mais que tenham facilitado e permitido o trabalho e a vida cotidiana das pessoas, ainda não as libertaram da dependência de seu ambiente natural. Pelo contrário, a forma como as pessoas vivem e trabalham aumentou ainda mais a influência da natureza sobre as pessoas.
Além disso, o trabalho e a vida atuais estão cada vez mais determinados pela chamada “economia de plataformas”, que gera valor econômico não tanto com trabalho humano, mas com dados. Inclusive, o historiador econômico Aaron Benanav chega a sustentar a tese de que é possível falar do trabalho humano como um fator extremamente importante para criar valor econômico somente em referência a um período muito específico do capitalismo industrial. A transição de uma sociedade industrial para uma de serviços já havia enfraquecido essa importância. Agora, no capitalismo de dados do século XXI, está se tornando diretamente obsoleta.
Independentemente de concordarmos ou não com essa tese, pode-se dizer que a economia de plataformas está fazendo com que, atualmente, um número cada vez menor de grandes players globais domine o mundo dos negócios e expulse do mercado as empresas menores. Por outro lado, é possível observar que as condições de trabalho são particularmente precárias nas indústrias que oferecem serviços por meio de uma plataforma. Mesmo que o público, a política e as leis estejam cada vez mais conscientes desses efeitos problemáticos da economia de plataformas, combatê-los de forma efetiva é muito difícil, justamente porque a influência política e legal das instituições nacionais na rede global da economia de plataformas continua sendo limitada.
Que conclusão se tira disso? A resposta pessimista seria: o trabalho não está tão relacionado à liberdade como gostaríamos. No entanto, essa resposta não facilita exatamente a solução dos problemas atuais no mundo do trabalho. Portanto, caso haja o desejo de continuar associando o trabalho à ideia de liberdade – e as sociedades do trabalho devem fazer isto, se quiserem existir como sociedades livres –, é necessário questionar nossa noção de liberdade em relação ao estado real do mundo do trabalho contemporâneo.
Não se trata de demonizar completamente os quatro ideais de liberdade do trabalho. O ideal de que não é a origem social, mas o próprio trabalho que determina a posição social e econômica do indivíduo na sociedade e o de que a pessoa também deve alcançar a autoafirmação em seu trabalho - ou seja, a presunção de que cada pessoa é a autora de sua própria vida - são, sem dúvida, atraentes. A suposição de que o progresso tecnológico ajudou e está ajudando a libertar as pessoas do esforço físico e a promover a igualdade também é correta em muitos aspectos. E, claro, é indiscutível que o trabalho humano impulsiona a prosperidade econômica.
O problema destes ideais é que cada um contém uma ideia unilateral de liberdade, que ao mesmo tempo se baseia na subestimação de suas condições necessárias. Primeiro, o esforço se expressa não apenas como capacidade individual, mas também como capacidade de compartilhar um mundo entre indivíduos. Segundo, a autorrealização não requer apenas a autoafirmação individual, mas também a criação de um mundo em que haja lugar para a autorrealização e a diversidade individual. Terceiro, a emancipação do ser humano não exige apenas se libertar da natureza, mas também preservar uma natureza na qual o ser humano possa ser livre. Quarto, a prosperidade da sociedade não requer apenas criar valor econômico, mas também (re)produzir um mundo social no qual a criação de valor econômico se distribua de forma equitativa.
Tudo isso exige nada menos do que uma mudança de paradigma que implica que as sociedades do trabalho reconheçam que o atual mundo do trabalho é um mundo que conecta as pessoas através de fronteiras geográficas e gerações, e cuja condição influencia significativamente para que mundo seja ou não um mundo livre. A mudança de época em que as sociedades do trabalho democráticas se encontram hoje implica, então, não apenas a defesa do que já existe, mas também que essas sociedades questionem sua própria noção de liberdade para existirem como sociedades livres.
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E se o capitalismo de plataformas ameaçar a liberdade? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU