A cadeia de desmontagem: o trabalho sujo

Fonte: Rawpixel

08 Julho 2022


Press considera e rejeita a noção de que as formas de trabalho tecnológico possam contar como trabalho sujo: ele vê o trabalho tecnológico como um emprego de elite que não implica o mesmo tipo de dano moral. Mas é mal pago, inseguro e igualmente dependente da ocultação”. A reflexão é de Katrina Forrester, em artigo publicado por Sin Permiso, 03-07-2022. A tradução é do Cepat.

 

Katrina Forrester é professora de teoria política na Universidade de Harvard e autora de In the Shadow of Justice: Postwar Liberalism [Na sombra da Justiça: o liberalismo do pós-guerra] e The Remaking of Political Philosophy [A transformação da Filosofia Política].

 

Eis o artigo.

 

Muitos empregos envolvem trabalhos sobre os quais preferimos não pensar. Quando você recicla seu lixo, sabe que alguém, em algum lugar, terá que separá-lo. Quando você come carne, sabe que alguém teve que matar o animal. Negligenciamos grande parte do trabalho feito para atender às nossas necessidades, mesmo quando este é feito mais perto de casa: limpar as ruas, desentupir os esgotos, cavar as sepulturas. Alguém sempre tem que fazer o trabalho sujo.

 

Supunha-se que com a Internet seria diferente. As novas tecnologias centrais ao capitalismo contemporâneo oferecem a possibilidade de melhorar nossa vida laboral, mesmo que o façam em parte eliminando nossos postos de trabalho. Mas o trabalho mal pago e repetitivo não diminuiu; pelo contrário, proliferou. Acontece que o aprendizado de máquina depende de humanos fazendo coisas chatas e desagradáveis, principalmente limpando e anotando dados. Vinte milhões de pessoas em todo o mundo ganham a vida fazendo tarefas em sites de “microtrabalho” como Amazon Mechanical Turk, Appen, Scale e Clickworker.

 

Por “microtrabalho” entende-se qualquer pequena tarefa realizada na linha de montagem virtual que um algoritmo não pode executar de forma confiável. Os microtrabalhadores trabalham como etiquetadores de dados para empresas como Google, Amazon e Tesla, adicionando, corrigindo ou removendo etiquetas à medida que identificam quadras, carros, casas, semáforos e muito mais na mídia digital. É um trabalho que entorpece a mente. Também pode ser pior do que isso: o Facebook precisa de um pequeno exército de pessoas para remover imagens de violência e pornografia infantil.

 

O “trabalho técnico” continua sendo sinônimo de engenheiros de computação e empresários bem pagos do Vale do Silício. Mas os trabalhadores de baixos salários que mantêm grande parte da Internet funcionando vivem na Índia, Uganda, Palestina, Venezuela, no campo de refugiados de Dadaab no Quênia e no campo de refugiados de Shatila no Líbano. Em Work without the worker [Trabalho sem o trabalhador], Phil Jones chama isso de “morada oculta da automação”, fazendo uma analogia com a fábrica de Marx. De acordo com seu relato, os grandes empreiteiros, assim como as empresas menores e os pesquisadores individuais, atuam como “solicitantes”, solicitando “encarregados” que não precisam de muito mais do que uma conexão com a Internet para realizar seu trabalho.

 

Eles são pagos por tarefa, geralmente com apenas alguns centavos por pesquisa concluída ou dados marcados. Acredita-se que o salário médio seja inferior a US$ 2 por hora. Se as tarefas são concluídas de forma imperfeita ou muito lenta, o microtrabalhador sai perdendo: Jones afirma que até 30% deles “não são pagos regularmente”. Às vezes, são pagos com “pontos” ou cartões-presente, que eles só podem usar em sites ou lugares específicos, o que fere o princípio da compensação do trabalho com um salário. Em países como Botsuana, Catar e África do Sul, a Amazon atua como aquilo que Jones chama de “cidade empresarial digital”, pagando os trabalhadores com fichas que devem ser gastas em seus bens e serviços.

 

O microtrabalho é a prova mais recente de que o desenvolvimento tecnológico não acaba com o trabalho, mas apenas produz novas formas de trabalho e novas formas de ocultá-lo. A fachada fácil de usar do Facebook esconde o trabalho mal pago e precário que acontece nos bastidores, replicando, em vez de se distanciar, instituições do mundo físico como o lar de idosos, a fábrica de roupas, o frigorífico ou a prisão.

 

Em Dirty work [Trabalho sujo], seu relato sobre os “trabalhos de baixo status de último recurso”, Eyal Press entrevista Harriet Krzykowski, uma licenciada em psicologia que precisava de um emprego para financiar sua pós-graduação em consultoria. O único emprego estável que conseguiu encontrar (isso foi em 2008) foi no Departamento de Correções da Flórida, fornecendo apoio na área da saúde mental à terceira maior população carcerária dos Estados Unidos. Nas últimas décadas, o número de pessoas encarceradas com necessidades de saúde mental nas prisões da Flórida cresceu 153%.

 

O número de trabalhadores não cresceu na mesma proporção, e Krzykowski tinha poucas ilusões sobre o trabalho que faria. Mas ela não estava preparada para a brutalidade. Na penitenciária de Dade, os guardas negavam comida e batiam nos presos, insultavam as vítimas de estupro, empurravam e abusavam dos cadeirantes. Os doentes mentais eram rotineiramente submetidos a banhos em chuveiros com água escaldante. Ela tentou denunciar o que via, mas os guardas fizeram retaliações: abandonaram o protocolo e a deixavam sozinha para administrar as situações de violência. Ela queria denunciar o que estava acontecendo ou ir embora. Mas precisava do emprego e temia por sua própria segurança.

 

Provavelmente é mais fácil simpatizar com os microtrabalhadores do Sul Global do que com os trabalhadores das prisões da Flórida. Para Press, essa falta de simpatia existe em função de nossa relação ética com o que ele chama de “trabalho sujo”: um trabalho moralmente comprometido, segundo ele, mas necessário para a manutenção do status quo. Além de psicólogos de prisões, ele entrevista operadores de drones, trabalhadores de frigoríficos e engenheiros da indústria de combustíveis fósseis. São trabalhos que defendem a ordem política e social dos Estados Unidos, mas são empurrados para as margens. Esses trabalhos existem em todas as economias neoliberais; a tendência é ignorá-los.

 

Esse argumento sustenta-se melhor em alguns exemplos de Press do que em outros. Por exemplo, o trabalho em frigoríficos. No início dos anos 1990, um quarto dos empacotadores de carne dos Estados Unidos eram imigrantes indocumentados. Em todos os frigoríficos do Texas, grande parte dos 1,6 milhão de imigrantes indocumentados do Estado trabalhou, ou continua trabalhando, na “linha de desmontagem”, ganhando entre 11 e 13 dólares por hora. Os trabalhadores içam o gado e acorrentam suas patas à esteira transportadora (a um ritmo de 65 frangos por minuto para os trabalhadores de aves).

 

Os trabalhadores da linha abrem as carcaças. Ambos os tipos de trabalho têm um custo físico e psíquico, o que Jonathan Cobb e Richard Sennett chamam de “feridas ocultas da classe”. Nos frigoríficos, a maioria dos trabalhadores é empregada "à vontade" e pode ser demitida a qualquer momento. Em 2019, a rotatividade anual em muitos frigoríficos do Texas foi de 100%.

 

O etnógrafo Timothy Pachirat descreve os frigoríficos industriais – junto com as prisões, os hospitais, os asilos e os campos de refugiados – como “zonas de confinamento” (a frase vem de Zygmunt Bauman). Os trabalhadores desses lugares são muitas vezes segregados e isolados, e seu trabalho escondido da sociedade em geral. Esta invisibilidade não é um acidente. Os lobistas da indústria mantiveram os matadouros em segredo por meio das “leis de mordaça”, que em muitos Estados proíbem ou restringem severamente tirar fotos ou fazer gravações nos locais de produção e de processamento de carne.

 

Embora a indústria esteja sob crescente escrutínio após as campanhas de grupos de direitos dos animais, a atenção se concentrou no bem-estar animal ao invés das práticas trabalhistas. As pessoas que compram carne orgânica não estão pagando demais para melhorar a situação dos trabalhadores na linha de desmontagem. Durante a pesquisa de seu livro Labor and the locavore (2013), a cientista política Margaret Gray perguntou a um açougueiro de Hudson Valley por que os clientes não se importavam mais com as condições de trabalho nas granjas. “Eles não comem os trabalhadores”, respondeu.

 

Press não nega que os trabalhadores de seu estudo causem danos apenas por fazerem seu trabalho. Alguns fazem esse tipo de trabalho porque têm poucas opções. Todos eles operam sob algum tipo de ordem. Os analistas de dados que lançam drones para o Estado são funcionários públicos, assim como os funcionários das prisões públicas. Outras formas de trabalho moralmente suspeitas são compelidas pela escolha do consumidor: queremos comer carne, logo é preciso matar frangos. Esses trabalhadores sujam as mãos para que o resto não precise.

 

Em O processo civilizador (1939), o sociólogo Norbert Elias descreveu os atos de “ocultação”, “segregação” e “remoção da vista” como cruciais para a organização social moderna. Protegem o consumidor ou o cidadão para que não compreenda o verdadeiro custo de suas escolhas e permitem que empregos moralmente prejudiciais sejam terceirizados. Para Press, isso torna o resto de nós cúmplices.

 

Seu argumento faz sentido para algumas formas de trabalho. Se você come carne, deve algo ao trabalhador do matadouro. Mas se o seu governo for para a guerra, você deve alguma coisa ao operador de drones? Em seu extremo, essa maneira de pensar corre o risco de dispersar a responsabilidade e diluir a agência. Se todos nós somos responsáveis, logo ninguém é.

 

As decisões tomadas pelos consumidores individuais são uma base pobre para a política. Seria melhor dizer, como argumentou Iris Marion Young, que a responsabilidade política, ao contrário da culpa ou da responsabilidade pessoal, recai tanto sobre aqueles que cometem uma injustiça – aqueles que fazem o trabalho sujo ou exploram os trabalhadores – quanto sobre aqueles que participam dos processos sociais que permitem que a injustiça aconteça. Não basta reconhecer nossa cumplicidade; devemos participar da mudança desses processos.

 

Pode ser que devamos a esses trabalhadores a abolição de seu trabalho, mas não basta torná-lo visível. O primeiro passo é que os trabalhadores tentem mudar suas condições, mas para quem trabalha em setores “sujos”, os meios de resistência são limitados: preencher formulários (trabalho super tedioso), denunciar (arriscado) e sair (o mais provável). Os trabalhadores dos frigoríficos dos EUA, que fazem trabalhos essenciais que poucos querem fazer, são mais propensos à ação coletiva do que os operadores de drones.

 

O empacotador de carne foi um trabalho estável até que a indústria fechou os matadouros sindicalizados, reconstruiu-os em regiões com sindicatos fracos e empregou uma força de trabalho imigrante menos propensa à ação coletiva. Embora tenha havido alguns progressos recentes, a maioria dos trabalhadores do setor não pertence a nenhum sindicato e as associações que organizam os trabalhadores indocumentados ainda têm pouco poder para melhorar suas condições. Os trabalhadores das prisões também enfrentam represálias se resistirem aos abusos, mas pelo menos tendem a ser sindicalizados: as “ocupações de serviços de proteção” (policiais, bombeiros, agentes penitenciários) têm as maiores taxas de sindicalização entre os trabalhadores do setor público nos Estados Unidos.

 

No entanto, na enorme indústria prisional privada dos Estados Unidos e nos 28 Estados do chamado “direito ao trabalho”, a sindicalização é quase impossível. (A imprensa não enfatiza isso, mas em todo caso é difícil imaginar que os funcionários dos braços repressivos do Estado, inclusive como psicólogos e médicos, sejam aliados na transformação da estrutura e do status do trabalho sujo.)

 

O microtrabalho está oculto e fragmentado de tal forma que torna a ação coletiva particularmente difícil. Assim como outros empregadores da economia do trabalho, aqueles que empregam microtrabalhadores fizeram um grande esforço para evitar classificar seus trabalhadores como empregados e para impedi-los de agir em conjunto. Jones descreve o resultado como uma nova forma de “cegueira econômica”. A falta de um local de trabalho ou de colegas e a ausência de leis e protocolos que regulem as condições de emprego deixam os trabalhadores vulneráveis. O propósito das tarefas individuais que realizam geralmente não é claro (“por que estou colocando um rótulo na maçã?”), sem falar de qualquer sentido de sua contribuição para um todo significativo.

 

Isso traz benefícios reais para certas indústrias. Quando o Exército dos EUA recorre a esses novos diaristas, ou o Google os contrata para uma iniciativa do Departamento de Defesa, os próprios trabalhadores não sabem que o que estão fazendo – mapear características de um território, por exemplo – é para fins bélicos. (Além disso, parte desse trabalho está sendo feito, sem saber, por refugiados criados pelas guerras dos Estados Unidos.) A delegação de tarefas por meio de programas computacionais – muitas vezes chamados de “sistemas de gerenciamento de fornecedores” – torna essas cadeias de subcontratação ainda mais difíceis de serem desvendadas. Junto com os acordos de confidencialidade que os gerentes de tarefas às vezes são obrigados a assinar, permitem que as empresas mantenham seus funcionários em silêncio.

 

Press considera e rejeita a noção de que as formas de trabalho tecnológico possam contar como trabalho sujo: ele vê o trabalho tecnológico como um emprego de elite que não implica o mesmo tipo de dano moral. Mas é mal pago, inseguro e igualmente dependente da ocultação. Na verdade, muitas vezes o é mais, pois a natureza do trabalho pode ser esquiva para os próprios trabalhadores. Alguns microtrabalhos, especialmente na China, são feitos em fazendas de dados, mas os trabalhadores geralmente estão dispersos geograficamente e têm pouca ou nenhuma comunicação entre si.

 

Apesar disso, encontraram maneiras de desafiar suas condições: os trabalhadores da Amazon Mechanical Turk, por exemplo, desenvolveram um software chamado Turkopticon, que se apoia no serviço da Amazon para alertar outras pessoas sobre os contratistas abusivos. Mas essas são soluções tecnológicas que moderam o comportamento dos solicitantes, não estratégias para mudanças generalizadas. Jones chama o microtrabalho de “ápice da fantasia neoliberal”: representa um sistema econômico sem sindicatos, sem cultura de trabalho ou sem instituições, no qual o contrato salarial é quebrado, os trabalhadores não têm conhecimentos especializados e não têm oportunidades de ascensão.

 

Novas formas de organização e militância digital estão se desenvolvendo, mas podem ter dificuldades para acompanhar a proliferação de empregos que podem ser classificados como “subempregos”. O número de trabalhadores informais cujo trabalho tem uma relação instável com o salário está aumentando em todas as partes do mundo, enquanto o trabalho sujo que antes era sinônimo de emprego estável está sujeito à mesma dinâmica de empobrecimento. A imprensa descreve esses empregos como “necessários”, mas não o são em nenhum sentido real da palavra. São sintomas de disfunção social, e seria melhor se considerássemos sua prevalência não como evidência de cumplicidade moral, mas de declínio social.

 

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