19 Julho 2022
As conversas entre uma das personalidades mais importantes do jornalismo e o pontífice contadas pelo diretor da Civiltà Cattolica, Antonio Spadaro.
"A personagem que mais me interessa é o Papa Francisco, eu cuido do Papa e sou muito amigo do Papa. É um revolucionário, é fundamental": assim declarou Eugenio Scalfari em uma de suas últimas aparições na televisão. Uma amizade recíproca entre dois grandes idosos, que se encontraram várias vezes.
Pedimos ao padre Antonio Spadaro, diretor da Civiltà Cattolica, companheiro jesuíta do Papa e profundo conhecedor deste pontificado, que comente a relação entre o Papa Francisco e o fundador do Repubblica.
A entrevista com Antonio Spadaro foi publicada por Famiglia Cristiana, 14-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Uma relação entre duas pessoas muito diferentes, mas complementares, que encontraram um nível profundo de conversação. Sempre percebi em Scalfari uma atenção emotivamente envolvida com o Papa, ele tinha uma admiração sincera, o considerava uma pessoa capaz de dar interpretações ao nosso tempo. Também avaliou a sua mensagem religiosa com curiosidade, às vezes aprofundando-se em avaliações de natureza teológica para as quais não tinha uma preparação específica. Algo que, no entanto, traia seu profundo interesse pelo tema.
O aspecto que mais o envolveu foi o valor político e cultural das posições de Francisco, por isso se aproximou dele e acabou se afeiçoando. Tive ocasião de conversar com ele sobre o Papa e o vi afetivamente envolvido. Por parte de Francisco deve-se destacar uma grande atenção de caráter pastoral, ele tinha grande respeito tanto pela pessoa como pelo intelectual.
Evidentemente o Papa estava ciente da relevância de Scalfari para a cultura italiana, sua não proximidade com o ambiente eclesial e talvez justamente por isso tenha desejado uma conversa clara, honesta e afetuosa. Recordamos como depois dos encontros em Santa Marta ele sempre o acompanhava até o carro, pequenas coisas que sabemos pelas crônicas de Scalfari, pequenos gestos que falam sobre a temperatura da relação.
Um relacionamento entre dois idosos. O Papa voltou repetidamente a falar sobre o papel dos idosos na Igreja e na sociedade, sobre a importância de valorizá-los e ouvi-los, este ano dedicou a catequese de quarta-feira aos idosos...pode ser uma chave de leitura de sua relação?
Sim, duas pessoas de idade avançada, que expressam também uma sabedoria apesar de diferentes perspectivas de leitura dos fatos. Scalfari, com uma grande história pessoal, muito envolvido com os acontecimentos italianos, expressou uma sabedoria que alguns compartilharam e outros menos, mas certamente capaz de dar fortes avaliações sobre os acontecimentos italianos.
Assim como o Papa, com sua posição no topo da Igreja Católica, capaz de ter uma visão internacional. Duas pessoas sábias, duas pessoas idosas, que sempre se confrontaram com grande sensibilidade e disponibilidade, expressando visões de vida muito diferentes. Um homem de fé e outro que sempre enfatizou sua não crença.
A este respeito, sempre me impressionou o fato de que Scalfari fizesse questão de salientar que ele era um leigo não crente. Mas o fez de maneira tão insistente, em um aspecto tão óbvio, que parecia trair uma inquietude. Por outro lado, está claro desde 1995, com seu livro “Alla ricerca della morale perduta”, que ele havia feito sua escolha, e entre Voltaire e Pascal ele havia escolhido precisamente Pascal e sua inquietude.
O que o estilo do encontro fala sobre a qualidade do diálogo entre o Papa católico e o jornalista leigo não crente?
“O Papa não seleciona seus interlocutores e sobretudo não escolhe pessoas semelhantes a ele. Sempre gostou de se confrontar com pessoas, mesmo distantes, desde que estivessem abertas à discussão. Da parte de Scalfari, fiquei impressionado com uma dinâmica diferente. Ler suas entrevistas muitas vezes significava ler os desejos que o próprio Scalfari projetava sobre o Papa. São transcrições de memória, filtradas pela sensibilidade, a linguagem e a perspectiva de Scalfari.
Deve-se notar essa sua necessidade de encontrar uma pessoa que atuasse como um espelho para expressar a si mesmo e é interessante que o tenha feito com um interlocutor completamente diferente de si para esclarecer-se e se confrontar.
Scalfari inseria Francisco em suas extensas reflexões nas quais tentava interpretar os nossos tempos. A sua intuição de jornalista permitiu-lhe apreender a relevância histórica deste Pontificado, inclusive muito melhor do que outros”.
Isso também criou alguns problemas de comunicação, com algumas desmentidas por parte da Sala de Imprensa do Vaticano...
Sem dúvida. Lembro-me de ter visto Scalfari às vésperas do lançamento de sua primeira entrevista com Francesco, e depois ao lê-la tive a percepção de que aquela não era a linguagem, que Scalfari estivesse falando mais de si mesmo que do Papa., o que certamente gerou desconcerto. Mas suas entrevistas são importantes como evento, como fato histórico.
Uma personalidade profundamente leiga que gostava de se confrontar com Francisco, reconhecendo sua importância histórica. Quanto aos conteúdos, Scalfari evidentemente não tinha a linguagem para poder comunicar perfeitamente a intencionalidade de Francisco. Por outro lado, repito, Scalfari havia entendido Francesco em sua relevância histórica, se quisermos, também de ‘ruptura’.
Não teve nenhum problema em reconhecer em Bergoglio – ou seja, num Papa - uma figura de grande importância religiosa, mas também cultural e especificamente política para os nossos tempos. Ele entendeu, por exemplo, o sentido de sua ‘política da misericórdia’ que nunca dá nada por perdido nas relações internacionais.
Como o senhor se lembra de Scalfari?
Uma das maiores personalidades do jornalismo, italiano e não só. Acredito que levará algum tempo para fazer um balanço de sua contribuição. Parece-me que nesta última passagem, nos seus textos sempre quis enquadrar as questões em molduras muito amplas, do ponto de vista histórico e intelectual, em contextos complexos e com perspectivas que fossem além da mera ilustração, dos efeitos imediatos.
Reportando-se a razões históricas e intelectuais. Uma escolha que, por um lado, o expunha ao risco de ter uma linguagem não perfeitamente adequada, ou um pouco vaga, mas, por outro lado, revela-se um elemento interessante: um homem que no final da vida, lendo os eventos, sente que devemos ir além do dia a dia e compreender o significado desses eventos dentro da história, das ideias e dos fatos.
E esta é também a chave para ler a sua relação com Francisco. Percebeu uma personalidade de forte descontinuidade, de forte impacto na história dos eventos e das ideias. E ele queria dizer isso de todas as formas.
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Aquelas conversas com Francisco em busca do Deus de Pascal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU