16 Março 2015
É muito provável que o Jubileu desejado por Francisco seja justamente o início da ação missionária, com todas as suas consequências, não só do outro mundo, mas também terrivelmente atuais na maré de terrorismo, guerras e tensões locais, crescente violência, famílias destroçadas e filhos desesperados, e, suma, do mais grave dos pecados que é o da desigualdade, da pobreza ignorada.
A opinião é de Eugenio Scalfari, jornalista e fundador do jornal italiano La Repubblica, 15-03-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
"Devemos evitar que os bons se percam e devemos fazer tudo o que for possível para salvar os perdidos."
A misericórdia à qual o Papa Francisco dedica o próximo Jubileu tem esse objetivo, o filho pródigo da parábola que o pai acolhe como a festa da vida, o perdão entre as pessoas e o perdão infinito Deus para com as Suas criaturas. E o arrependimento, que é a condição para que a misericórdia desça sobre aquela alma e a ilumine com a sua luz.
O Papa Bergoglio, não por acaso, tomou o nome de Francisco, totalmente incomum na Igreja de Roma: o santo de Assis via e amava as criaturas de Deus, todas as criaturas de Deus, porque todas trazem dentro de si uma centelha de divindade; o bom pastor é aquela centelha que deve descobrir, apagando com o seu amor, as escórias que a vida acumulou sobre ela, relegando-a profundamente e sufocando a sua luz.
No entanto, resta o tema do pecado e do arrependimento. E se o arrependimento não vem? Se a centelha se apagou ou nunca existiu? O Papa Francisco nunca pensou que essa centelha possa se apagar ou mesmo que algumas naturezas possam ser privadas dela desde o nascimento, por isso o cuidado das almas nunca deve parar nem ser interrompido, e essa é a tarefa da Igreja missionária.
Um dia, em um dos nossos encontros, ele me falou daquela missão que também dizia respeito aos não crentes. "A Igreja missionária – disse-me – não faz proselitismo, busca despertar nas pessoas a busca do bem na sua alma."
"Santidade – respondi-lhe –, eu não acredito que exista a alma." "O senhor não acredita na alma, mas a tem."
Essa é a fé que o sustenta e que ilumina o seu caminho, o amor ao próximo é a paixão que o move.
Lembro-me também de ter lhe dito que, a meu ver, não houve nenhum pontífice como ele, e a resposta foi que é o Senhor que conhece o futuro e a sua infinita misericórdia.
Repensando a história da Igreja Católica, há principalmente dois entre os seus antecessores que fizeram da misericórdia o tema principal do seu pontificado: Lambertini, no século XVIII, e Roncalli, há meio século. Quase todos os outros, do Concílio de Niceia em diante, mantiveram unidas a pregação evangélica e a gestão do poder temporal, dando a prevalência a uma ou a outra, segundo a época em que viveram e o caráter da sua personalidade.
Francisco também disse, na entrevista a uma tv mexicana divulgada nesse sábado, que tem a sensação de que o seu pontificado será breve, quatro ou cinco anos, e a atenção dos jornais se concentrou nessa frase: talvez ele esteja mal? Talvez pensa em renunciar de uma tarefa tão onerosa?
Ele desmentiu tanto uma quanto a outra hipótese. Além disso, há um ano, voltando de uma viagem para a Coreia, ele já havia dito a mesma frase. É possível que ele deixe claro para quem o ouve e também para si mesmo que a sua idade cronológica se chama velhice, e os velhos estão às vésperas do desaparecimento.
Ele não teme a morte, que é apenas uma passagem para a verdadeira vida do além. Ele teme o sofrimento, isso sim, e já disse isso várias vezes, mas a morte, não. A morte é uma festa e, como tal, deve ser enfrentada por aqueles que têm fé no Pai que espera no alto dos céus.
E para aqueles que não têm fé? A resposta é que, se amou os outros ao menos como a si mesmo (possivelmente um pouco mais do que a si mesmo), o Pai vai acolhê-lo. A fé ajuda, mas não é esse o elemento de quem julga, é a vida. O pecado faz parte da vida, o arrependimento também. O remorso, o sentimento de culpa e o desejo do resgate, o abandono do egoísmo.
Quem teve o dom de conhecer o Papa Francisco sabe que o egoísmo é o inimigo mais perigoso para a nossa espécie. O animal é egoísta, porque é presa apenas dos próprios instintos, o principal dos quais é o da sobrevivência, a própria sobrevivência. Mas o homem também é animado pela sociabilidade e, além disso, sente o amor pelos outros, pela sobrevivência da espécie a que pertence. Se o egoísmo supera e sufoca o amor pelos outros, ofusca a centelha divina que está dentro dele e se autocondena.
O que acontece com essa alma apagada? Será punida? E como?
A resposta de Francisco é clara: não há punição, mas o anulamento dessa alma. Todas as outras participam da bem-aventurança de viver na presença do Pai. As almas anuladas não fazem parte daquela festa; com a morte do corpo o seu percurso acabou, e essa é a motivação da Igreja missionária: salvar os perdidos. E também é a razão pela qual Francisco é jesuíta até o fim.
A Companhia fundada por Loyola ensinou e ensina aos seus adeptos que a missão tem como premissa entrar em sintonia com os outros, entender o seu comprimento de onda, sem o que o diálogo seria impossível. Por isso, a Igreja missionária deve se atualizar segundo o passar do tempo e a diversidade do lugar.
Quando, finalmente, o diálogo se torna possível entre pessoas diferentes, de culturas diferentes, de civilizações diferentes e até de religiões diferentes, então a Igreja missionária pode estimular a vocação ao bem e limitar o amor por si mesmo.
Esse ensinamento de Francisco tem muito sentido também para quem não crê, porque toca um aspecto profundamente humano, independentemente da fé em Deus e em Cristo, seu Filho. É um ensinamento que enfatiza a diferença entre o homem e o animal do qual provém, e uma mente capaz de pensar por si mesma e autojulgar-se, segurando pelas rédeas o próprio narciso e levantando a cabeça para olhar novamente as estrelas.
* * *
Agora Francisco ainda deve enfrentar problemas muito árduos, até agora apenas mencionados.
O primeiro deles, que ninguém ainda se fez, mas que é de uma evidência flagrante, diz respeito aos presbíteros, isto é, aos sacerdotes que administram os sacramentos e têm o poder de absolver ou punir aqueles que julgam como pecadores.
Os presbíteros, isto é, os padres e a hierarquia que envolve a todos, só existem na Igreja Católica e têm a proibição de se casarem.
Em nenhuma outra religião existem padres e celibato, e em nenhuma outra religião a doutrina é transformada em código. Os judeus têm as suas Escrituras e os seus preceitos, mas os rabinos são apenas mestres, não têm nenhum sacramento nem obrigações de celibato. Explicam e interpretam as Escrituras, essa é a sua tarefa, não mais do que isso.
Os muçulmanos também têm as suas Escrituras e a sua doutrina, mas não há qualquer vestígio de sacerdotes. Mas atenção: as várias seitas muçulmanas têm mestres que interpretam o Alcorão, mas também tribunais que indicam o inimigo a ser morto por ser infiel. Potencialmente, são teocracias, às vezes de modo direto como no Irã, e às vezes indiretamente, já que a tentação ao fundamentalismo é forte e muitas vezes nefasta.
E assim, mesmo sendo cristãos, isso ocorre em todas as várias confissões protestantes onde não existem padres, mas pastores. Os pastores se assemelham de algum modo aos rabinos, são mestres, têm famílias, administram aqueles sacramentos que as várias confissões conservaram, mas o contato entre o homem e Deus não é obrigatoriamente mediado pelos bispos com o cuidado das almas e, em todo o caso, dos padres. É um contato direto.
Essa foi a grande revolução de Lutero: o crente lê as Escrituras, a Bíblia, os Evangelhos, e a fé lhe permite o contato direto com Deus.
Então, a pergunta é esta: a Igreja de Roma conseguirá conservar a Ordem eclesiástica com os seus deveres, os seus direitos quase de casta? O problema é ainda mais atual porque algumas confissões não católicas estão se aproximando da Igreja de Roma e também podem decidir se unificar com ela. Já aconteceu com alguns anglicanos, pode acontecer com os ortodoxos.
Mas os pastores, se decidem se tornar católicos, trazem consigo a família que legitimamente constituíram, como, aliás, já acontece há séculos com a Igreja Oriental, que sempre foi católica, mas sem a obrigação do celibato.
E, depois, há o outro grande tema da família, ao qual o Papa Francisco dedicou grande parte do Sínodo que terá, nos próximos meses, a sua conclusão.
Por fim, há o tema do Concílio Vaticano II: o contato com a cultura moderna, que tem suas raízes no Iluminismo. Esse movimento intelectual, que teve o seu maior desenvolvimento na Inglaterra e na França do século XVIII e teve em Diderot, em Voltaire, em Hume, em Kant os seus mais altos representantes, não acreditava na verdade absoluta, mas na relativa, que exclui a existência de Deus ou a admite como motor da criação da vida, que, depois, se desenvolve através de uma evolução autônoma e ditada por leis autônomas.
O Deus dos "teístas" não tinha nenhum atributo que se assemelhasse ao Deus cristão: não era misericordioso, nem vingativo, nem generoso, não intervinha na história e no destino, não se coloca o problema do mal e do bem. Era um motor, uma força cosmogônica que tinha acendido a luz da vida em alguns lugares do universo e, depois, tinha se retirado, adormentado ou ocupado em outras criações vitais.
A Europa teve o Iluminismo como base da modernidade. O tema do Vaticano II, que está muito no coração Papa Francisco, é entender o comprimento de onda com o qual se pode falar com essa Europa (e América do Norte) fortemente descristianizada e que se tornou terra de missão.
É muito provável que o Jubileu desejado por Francisco seja justamente o início da ação missionária, com todas as suas consequências, não só do outro mundo, mas também terrivelmente atuais na maré de terrorismo, guerras e tensões locais, crescente violência, famílias destroçadas e filhos desesperados, e, suma, do mais grave dos pecados que é o da desigualdade, da pobreza ignorada, da supremacia do poder e da guerra sobre amor e sobre a paz; o tema da misericórdia, em suma, é o mais adaptado não só religiosamente, mas também social e economicamente para recuperar o amor, a paz e a esperança em relação ao poder, à guerra e ao desespero.
Que o Papa Francisco viva muitos anos.
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O que Francisco pode dizer aos não crentes. Artigo de Eugenio Scalfari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU