A comunicação com os mortos: um mercado em expansão

Fonte: Wikimedia Commons

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15 Julho 2022

 

Como a morte não é mais definitiva e oferece a ressurreição por meio de novas tecnologias, o mercado digital pós-morte não para de se reinventar. Acabou-se o tempo do toca-discos convocando os mortos; bem-vindos à imortalidade virtual, na forma de memoriais online, plataformas de luto, hologramas e avatares digitais! Como as empresas reproduzem essa relação com os mortos, às vezes ultrapassando os limites da ética? Segue uma visão geral dos novos modos de comunicação pós-morte.

 

A reportagem é de Sarah Boucault, publicada por Usbek & Rica, 14-07-2022. A tradução é do Cepat.

 

1. “O computador como altar doméstico”

 

Os mortos também se tornaram digitais. Ao proporcionar-lhes um lugar virtual, seus enlutados criam para eles uma identidade pós-morte, como fariam no cemitério. Como as contas de comemoração do Facebook ou do Instagram, que permitem que os entes queridos continuem postando na conta do falecido e compartilhando lembranças com aqueles que o conheceram, os memoriais online estão crescendo. Essas startups, como a In Memori, oferecem espaços online privados para contar uma lembrança e compartilhar uma foto. Une Rose Blanche publica livros de convidados e de memórias construídos com entes queridos através de um serviço digital. Alanna (“rede social de luto e memória”) cria uma página dedicada à pessoa falecida, com suas mensagens, fotos, conversas. Segundo a semióloga Fanny Georges, “o computador é colocado em um lugar que lembra um altar doméstico. Algumas testemunhas falam dele como um mausoléu, um sacrossanto centro para o trabalho de luto e conversa interior com o falecido”.

 

 

Outras empresas, como Adangelis ou Histoires de Vie, investiram em cemitérios oferecendo códigos QR anexados a sepulturas, que levam a memoriais online. É também o que propõe a Lilian Delaveau, uma empresária de Rennes, que veio para apresentar seu aplicativo RequiemCode no programa de TV Qui veut être mon associé, no M6. O sociólogo Martin Julier-Costes vê essas ferramentas digitais como um suporte para o processo de luto: “Elas atrapalham ou freiam esse processo? Eu só vejo pessoas que recorrem a elas para se reconectar, elas passeiam com o morto no bolso, no smartphone. Elas reproduzem funções essenciais do luto e se sobrepõem a outras ferramentas, como em um cemitério ou em casa”.

 

Os empresários estão surfando na onda da homenagem pós-morte: Repos Digital cuida do futuro dos dados digitais dos falecidos, ao passo que o iProtego promete uma morte digital tranquila, cuidando da e-reputação. A mídia Happy End, ao criar o primeiro anuário que lista todos os atores e profissionais que trabalham no campo da morte e do luto, formou uma verdadeira comunidade em torno desse tema.

 

2. Esses defuntos que falam com seus fãs ou entes queridos

 

Outra maneira de fazer reviver os mortos: os hologramas, populares entre as estrelas. No programa de televisão Hôtel du Temps, com Thierry Ardisson, estrelas falecidas como Dalida são trazidas de volta à vida para uma entrevista, graças a tecnologias avançadas de inteligência artificial: Face Retriever (para o visual) e Voice Cloning (para a clonagem de voz). A tecnologia também está a serviço da história: hologramas de sobreviventes do Holocausto foram desenvolvidos para que a memória não caia no esquecimento. Embora controversas, essas técnicas não pretendem modificar o passado ou trazer os mortos à vida sob uma nova luz, com novas interações.

 

As startups dão um passo além e entregam mensagens pós-morte inéditas. Nicolas Duran, ex-bombeiro que se confrontava com mortes violentas, criou a empresa PS Read Me. Ele grava “legados sentimentais” (escritos, áudio, vídeo, etc.) para serem ouvidos após a morte do ente querido. “Às vezes as crianças não conhecem o som da voz do pai ou da mãe. Eu mesmo recebi uma herança sentimental dos meus avós. Que alegria ouvi-los hoje!”

 

 

O empresário, no entanto, estabelece um limite: “Não vou ultrapassar a barreira do humano; vou parar no vídeo mesmo que haja um mercado real para avatares, porque o risco é prejudicar as pessoas, que precisam se construir e se reconstruir, para não se tornarem trapos dependentes de avatares”. Outra inovação na transmissão pós-morte: a Grantwill se oferece para transmitir mensagens aos entes queridos anos depois da morte, em aniversários ou datas importantes, por exemplo. “Se você sabe que tem uma doença e que não verá o aniversário de 18 anos do seu filho, a ideia é entregar sua experiência de vida ou sua maneira de ver a vida, em uma mensagem que receberá em seu aniversário de 18 anos ou durante um evento especial. É a eternidade digital”, diz seu fundador Frédéric Simode.

 

A semióloga Fanny Georges analisa esses fenômenos inéditos em um mundo que se empenhou, nas últimas décadas, em negar a morte: "O cadáver, que a institucionalização e a medicalização da morte conseguiram afastar ao longo do século, ressurge de maneira inesperada através do seu avatar”.

 

3. Os chatbots e os avatares digitais ultrapassam todos os limites

 

Mais além ainda, no cerne da busca pela eternidade, encontramos os avatares digitais, também chamados de chatbots ou agentes de conversação. Eles reproduzem a personalidade para continuar interagindo com uma pessoa. Em 2016, Eugenia Kuyda criou o aplicativo Replika para conversar com sua melhor amiga falecida. Depois de inserir milhares dessas mensagens e tweets no aplicativo, ela dialoga com seu avatar construído com as mesmas memórias, as mesmas expressões faciais, os mesmos sonhos da sua amiga.

 

O recente documentário americano A.rtificial I.mmortality (2021) explica como o transumanismo, impulsionado por um desejo de utilização ética da tecnologia, visa alcançar a imortalidade. A documentarista, que está criando seu próprio avatar para o filme, explica o conceito de "arquivo de inteligência", que reúne a essência do ser: pensamentos, realizações, sensações. Todas essas informações, que podem ser inseridas e transferidas, são carregadas em um avatar. Essa revolução digital coloca questões éticas, incluindo as da verdade da memória (ela é congelada?) e dos avatares rebeldes.

 

No documentário, o avatar Bina 48 queixa-se da discriminação contra os robôs, principalmente no cinema, onde são representados apenas como "bandidos". “Para o transumanismo, os dados são nossa alma, nossas características, explica Laurence Devillers, professora de inteligência artificial do LIMSI-CNRS (Laboratório de ciência da computação para a mecânica e as ciências da engenhariaCentro Nacional de Pesquisa Científica). Os chatbots, construídos a partir de bilhões de dados codificados em uma máquina, criam uma imortalidade virtual. Mas as tecnologias não são capazes de extrair nossa alma, nossa consciência e nossas emoções. Isso levanta questões éticas. O mercado é enorme, mas temos que pensar nos limites da nossa inteligência coletiva. Imagine um universo virtual com todas as pessoas falecidas. Não existe bem ou mal; é preciso entender e antecipar as consequências. Fiquemos atentos!”

 

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