23 Março 2021
As novas tecnologias e os desenvolvimentos da robótica tentam prolongar a memória dos falecidos com avatares e simulações criadas por meio de dados coletados em redes e plataformas sociais. Muitas vezes desencadeando uma elaboração do luto infinita.
A reportagem é de Marco Grieco, publicada por Linkiesta, 20-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na Europa dos anos 1940, enquanto a Segunda Guerra Mundial grassava, nos cinemas estadunidenses estava sendo projetado o filme “Fantasia”: Disney narrava a morte do mundo na dança dos demônios sobre o Monte Calvo, mas deixava o final para as notas da “Ave Maria” de Schubert em um mundo aberto à vida. Como escreve Susan Sontag em “Diante da dor dos outros” (Ed. Companhia das Letras, 2003), a morte tem esse poder de mover o ser humano e de abri-lo ao mundo.
Mas o que acontece quando a sociedade tende a remover a morte? Porque isso está acontecendo no mundo digital, pelo menos na implacável radiografia feita pelo filósofo coreano Byung-Chul Han: “A morte pressupõe que a própria vida tenha uma conclusão. Então, se a vida é privada de qualquer possibilidade de conclusão, ela acabará no momento menos oportuno” (“Do desaparecimento dos rituais”, Relógio D’Água, 2020).
Na reproposição de espaços virtuais aparentemente infinitos, o virtual ilude em uma morte redimensionada, até mesmo desaparecida: “Vencer a morte continua sendo o sonho proibido do ser humano, e poder adiá-la nos ilude de que podemos superá-la”, explica Dom Vincenzo Paglia, presidente da Pontifícia Academia para a Vida. “Por outro lado, superamos limites que há muito tempo considerávamos intocáveis. Todos os desejos parecem ter se tornado realizáveis, e nunca teríamos imaginado, no nosso mundo ocidental, que sucumbiríamos diante de um mísero e invisível vírus. Acreditávamos que éramos muito evoluídos para ter que lutar contra um parasita que pensávamos que, no máximo, poderia pôr em crise alguma miserável fronteira do Sul esquecido do mundo. Sim, a pandemia joga com força sobre nós uma questão antiga: a Bíblia diz que temos ‘os dias contados e um tempo fixado’. Talvez se trate de vivê-los melhor, não apenas de aumentá-los freneticamente.”
Com um projeto utópico, mas em fase de planejamento, os pesquisadores Alexey Turchin e Maxim Chernyakov, filiados ao Movimento Trans-Humanista Russo, estão lançando as bases teóricas para uma tecnologia capaz de utilizar uma grande fonte de energia para duplicar o avatar dos falecidos, através de técnicas de deep learning.
O projeto, que parece ser de vanguarda, parte de pressupostos já concretos. Na base do raciocínio, está o acúmulo de dados, típico da Inteligência Artificial (IA): “Uma vez que a IA cria a sua cópia digital precisa, tudo é possível, até mesmo restaurar a vida biológica”, explicou Turchin à revista Popular Mechanics.
A coleta de informações detalhadas já permitiram que uma IA gerasse o avatar de uma menina de seis anos, que morreu de uma doença rara. O experimento virtual, transmitido pela TV sul-coreana e no YouTube, mostra o encontro entre a mãe (real) e a filha (virtual) em um intercâmbio emotivamente tocante, mas biologicamente impossível. O avatar da criança morta interage com a mãe por meio da reconstrução da sua voz, mas até agora ninguém considerou os efeitos sobre a psique da mãe.
“As novas tecnologias e os desenvolvimentos da robótica repropõem na modernidade o desafio de Ícaro: fazer asas e voar, mesmo para além do tempo. Poder sobreviver a mim mesmo em uma máquina, na memória dos megabytes, ceder a uma máquina a função de ficar perto da dor e do sofrimento, fugindo daquilo que nos assusta: sentir-se mal e ver sofrer”, explica Dom Paglia, autor do livro “Sorella morte” [Irmã morte] (Ed. Piemme, 2017).
“Com a Pontifícia Academia para a Vida, promovemos um manifesto para dar uma alma à relação entre o ser humano e as novas tecnologias, e para restituir uma clareza: a máquina continua sendo um meio e um instrumento nas mãos do ser humano, o fim continua sendo o bem da pessoa e o bem público. Apagar a dor nos torna desumanos. Mas certamente não precisamos da IA para nos tornarmos desumanos: basta virar para o outro lado quando encontramos uma pessoa que mora na rua ou quando não visitamos uma pessoa idosa que mora sozinha no inverno da vida”, explica ele.
Para desafiar a morte, a IA precisa de uma imensa quantidade de dados. “A minha avó morreu há quatro anos de Alzheimer. Pouco depois da sua morte, eu estava frustrado: toda a sua vida, cheia de lutas, alegrias, amor, desespero e fé, deu lugar apenas a algumas fotos de recordação. Todo o resto se perdeu para sempre”, escrevia Marius Ursache em seu blog em 2015. Mais tarde, ele cofundou a Eterni.me, uma plataforma projetada para replicar avatares 3D de pessoas falecidas.
O projeto, ainda em fase de teste, suscitou inúmeras questões éticas, às quais ele mesmo deu uma resposta: “Não estamos tentando substituir uma pessoa morta. O avatar é como um bibliotecário: ajuda os usuários a dar um sentido às informações que foram memorizadas”.
Há alguns anos, o Facebook introduziu a possibilidade de recordar as contas das pessoas falecidas com um perfil comemorativo. Na plataforma, quem quiser pode deixar uma mensagem e postá-la, dependendo das configurações de privacidade.
A rede social segue os passos do Google, que, ainda em 2013, lançou uma gestão de contas inativas para administrar os dados dos usuários falecidos. Neste caso, a conta da pessoa morta podia ser conectada a alguns contatos confiáveis, que também poderiam ter acesso a outros tipos de dados, como os drives, se permitido pelas normas de privacidade.
Mas o Google e o Facebook não criaram uma “Spoon River” digital; no máximo, desencadearam uma elaboração do luto infinita. Isso é ainda mais evidente em um caso polêmico relatado pela revista The Verge. Eugenia Kuyda, uma engenheira russa que perdeu o seu melhor amigo, Roman Mazurenkom em um acidente de carro, criou um robô por meio do qual amigos e parentes podem interagir como se ele ainda estivesse vivo.
O robô memorial reúne frases da pessoa que Kuyda carregou durante anos e anos em um banco de dados. Antes de morrer, Mazurenko estava trabalhando em um projeto semelhante. Em 2015, ele se candidatou a uma bolsa de estudo para realizar um novo tipo de cemitério, o Taiga. Os mortos seriam enterrados em cápsulas biodegradáveis, e os corpos fertilizariam as árvores. Debaixo de cada árvore, haveria um display digital com todas as informações biográficas do falecido.
“Redesenhar a morte é uma pedra angular do meu interesse constante nas experiências humanas urbanas”, escrevia Mazurenko no seu diário, comentando a resistência dos estadunidenses aos funerais.
Para o filósofo Byung-Chul Han, porém, existe uma estreita ligação entre o desaparecimento dos ritos e o capitalismo traçado pelo digital: “Os ritos modelam as passagens fundamentais da vida. São formas de fechamento, sem os quais escorregamos”, escreve, descrevendo assim uma sociedade sem contornos, onde o ser humano continua sendo um consumidor voltado à produção infinita de dados, até mesmo morto. Eugenia Kuyda não pensa assim: “Esse é certamente o futuro”, responde a quem achou perturbador o seu robô.
A IA não corre o risco de substituir a memória por um aglomerado de dados gerido por um algoritmo de deep learning? “A fuga diante da dor, da fraqueza, da fragilidade, ou seja, a tentativa de anestesiar a vida é uma tolice e, no fim, uma cruel ilusão”, explica Dom Paglia. “Sejamos claros: que a dor deve ser combatida é mais do que positivo. E, nesse sentido, uma aliança entre ética e tecnologia é mais do que útil. Mas a pretensão de eliminar da nossa vida a dor, com tudo o que está envolvido nisso, e não só no plano físico, mas também no dos sentimentos, é muito perigosa: significaria estar à mercê do mal. Sentir dor ajuda a reagir, torna-nos mais prudentes, estimula a indignação para combater o mal que se abate sobre nós e sobre a sociedade.”
Por sua própria natureza, o open source digital se opõe aos fechamentos. As informações são aditivas, nunca narrativas, e são acumuladas pelos sistemas. As coordenadas da dimensão virtual são as percepções de infinito e eternidade, que anulam as percepções puramente humanas de espaço/tempo.
É por isso que qualquer trauma se torna um motivo de desempenho. A inversão da perspectiva é sutil: cada mudança não é mais acolhida com espírito crítico, mas se torna um pretexto para demonstrar as próprias capacidades de resiliência: o bloqueio, o obstáculo torna-se assim o ponto de partida para uma maratona infinita e desgastante.
O já citado Han chama-a de “sociedade paliativa”: “Nós nos exploramos sozinhos, crendo que estamos nos autorrealizando. Mediante o culto da autenticidade, o regime neoliberal se apropria da pessoa e a transforma em um local de produção de altíssima eficiência”.
Na positividade da produção, não há lugar para a morte naturalíssima, arquétipo da negatividade. Por isso, até mesmo os eventos mais dramáticos se tornam um pretexto para uma possessão mórbida.
Michela Murgia explica bem isso em uma resenha do romance de Walter Siti, “Bruciare tutto” [Queimar tudo], comentando o viés perturbador da foto do pequeno náufrago sírio Aylan na deep web: “A foto de Aylan é pornográfica em si mesma, porque tem a natureza da pornografia: produz a sensação sem a relação. Essa foto ofereceu ao sentimento de culpa coletivo a forma autoconclusiva típica do pornô: gerou a ilusão de que sentir pena daquele corpinho bidimensional equivalia a lidar com o seu drama. O pranto coletivo por Aylan, portanto, é desejo – que é um dos nomes da ausência – mas também abuso, por se realizar fora de toda possível reciprocidade. Se Aylan são todos, Aylan não é mais ninguém, porque a mimese da intimidade torna estranha qualquer pessoa, e de um estranho você pode fazer qualquer uso, até chorar por ele, até desejá-lo”.
Isso explica por que a foto dos caminhões com os caixões empilhados, tirada em Bérgamo na noite de 18 de março de 2020, não só não nos toca muito um ano depois, mas, na sua reproposição coletiva, é até mesmo repudiada.
No entanto, nos últimos anos, está se difundindo uma nova abordagem ao digital. A pandemia da Covid-19, que atomizou as já deterioradas relações sociais, levou alguns designers a se ocuparem da interação entre o ser humano e as tecnologias por meio da matéria. É o chamado “material design”, um sistema que projeta conteúdos reproduzindo no digital a experiência virtual do papel, com a criação de botões e alavancas para aumentar o efeito tangível.
É o que realizam Matteo Dacome e Jessica Valanzano, fundadores de Jesma.it: “O desafio do product design é transformar a consciência do usuário em formato digital, aumentando assim a experiência imersiva”, explica Dacome.
Mas esse não é apenas outro modo de manipular a consciência? “Hoje é impossível pretender em nível material a experiência que nos era dada por uma bola Super Santos, que, pela sua leveza, nos iludia que éramos Holly e Benji”, explica. “Hoje, por outro lado, delegamos as nossas relações humanas à experiência do usuário, mas falta a percepção do user experience: nós tentamos explicá-la, mesmo que falte uma alfabetização geral das pessoas”.
Como revela o relatório Istat “Cittadini, imprese e Ict” (2019), na Itália pelo menos 18 milhões de italianos não usam a internet. A esse dado, acrescenta-se outro pior, que diz respeito à falta de consciência do instrumento: apenas 13% dos cidadãos lidam com práticas administrativas online, e 40% dos empregados de empresas privadas não sabem utilizar bem o software.
“Enquanto isso, do outro lado do mundo, vemos robôs humanoides como Sophia e uma tendência cada vez maior de delegar à tecnologia. O entretenimento das mídias sociais preenche uma falta de consciência”, explica Matteo Dacome.
Hoje, a pandemia mundial nos permite experimentar a nossa humanidade frágil e mortal, erradicando o culto da performance da web. A realidade sempre se apresenta como o outro lado da moeda. É necessário que o ser humano contemporâneo a valorize para construir uma sociedade onlife fundada em valores genuinamente humanos, que nenhuma IA jamais poderá substituir.
No fundo, como escrevia o luterano Dietrich Bonhoeffer, morto pelos nazistas, “Deus em Cristo não nos salva em virtude da sua onipotência, mas por força da sua impotência”.
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Mundo digital está reescrevendo a nossa relação com a morte - Instituto Humanitas Unisinos - IHU