17 Março 2022
"O que Francisco não pode se permitir é um fim da guerra sem um projeto para o depois - não pode se permitir porque essa solução sem visão traria apenas uma paz efêmera e entregaria o mundo a uma mistura das cartas que poderiam se revelar um beco sem saída. Não se pode permitir que o fim da guerra que assuma de alguma forma, mesmo que apenas por propaganda, o sabor de um predomínio do Ocidente; não se pode permitir um maior agravamento do desarranjo entre a ortodoxia eslava e a ortodoxia grega", escreve o teólogo e padre italiano Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado por Settimana News, 16-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Diante da ordem dispersa com que estamos procedendo em relação à guerra russa contra a Ucrânia decretada por Putin, parece que há pelo menos um ponto de convergência compartilhado: como quer que ela termine, estaremos diante de uma nova ordem mundial - ou seja, a superação das estruturas que emergiram do fim da Guerra Fria, da queda do Muro de Berlim, da implosão da União Soviética.
O que parece faltar em todos os lugares é um pensamento político e diplomático capaz de organizar este depois - na verdade, de garantir que, por mais novo que seja, o estado de coisas possa se caminhar para algo semelhante a uma ordem e não ao caos global. A contemporaneidade, magistralmente engendrada pela mídia que nos inunda com imagens de uma realidade que nunca deveria ter existido, suga toda energia e todo esboço de uma resposta política à invasão russa da Ucrânia.
A ordem dispersa em que a Europa se moveu, simbolizada primeiro pelas visitas solitárias de Macron e Scholz a Moscou, depois pela missão (semi)clandestina dos primeiros-ministros polonês, checo e esloveno em Kiev, coloca a União Europeia à frente da exigência , que poderá ser marcante, a constituir-se plenamente como instituição política transnacional - fazendo da paz, da solidariedade e da diplomacia o pivô de seus arranjos de política externa; mas também aprendendo com o que aconteceu: e, portanto, dando o direito de cidadania efetiva a um sentimento cultural e civil que nem sempre coincide, dentro do perímetro da própria União, com o imaginário burocrático dos escritórios de Bruxelas.
Na convulsão dessas semanas, inevitavelmente se encontrou também o Papa Francisco e, com ele, a Santa Sé. De muitos lados, ergueu-se a voz de fortes críticas por causa da gestão demasiado prudente do drama ucraniano a fim de manter - pelo menos segundo essas vozes - aberto um tênue fio diplomático para se relacionar com Moscou e Putin. De forma que todo gesto e palavra de Francisco e da diplomacia vaticana, resultariam prejudicados de saída.
Isso apesar do fato de que a clara e nítida intenção de acabar com a guerra fosse totalmente evidente e explícita desde o primeiro dia. No entanto, o que Francisco não pode se permitir é um fim da guerra sem um projeto para o depois - não pode se permitir porque essa solução sem visão traria apenas uma paz efêmera e entregaria o mundo a uma mistura das cartas que poderiam se revelar um beco sem saída.
Não se pode permitir que o fim da guerra que assuma de alguma forma, mesmo que apenas por propaganda, o sabor de um predomínio do Ocidente; não se pode permitir um maior agravamento do desarranjo entre a ortodoxia eslava e a ortodoxia grega, nem uma espécie de guerra civil interna na Igreja Ortodoxa Russa; não se pode permitir, como observava Riccardo Cristiano que as terras de que servem de zíper acabem tendo dentes apenas de um lado e, portanto, deixem de ser tais.
A mediação diplomática, que Francisco e a Santa Sé não abandonaram como horizonte que orienta gestos e palavras, mesmo quando isso custa em relação à espontaneidade evangélica do caráter, tem uma sua razão igualmente evangélica e comporta uma visão teológica para o depois (guerra) do nosso mundo - porque “no tecido do mundo contemporâneo não se pode fazer mais cortes, apenas soldaduras. No pensamento de Francisco, isso é evidente. Os pontos, as linhas que soldam o mundo, são o local teológico da geopolítica da fraternidade. Ser irmãos significa ser iguais porque diferentes. E as diversidades se encontram e se unem entre si como os dentes de um zíper. São feitos de propósito no projeto de Deus. Não se arrancam uns dos outros” (Riccardo Cristiano).
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Francisco, a guerra, a mediação. Artigo de Marcello Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU