22 Fevereiro 2022
Enquanto Putin recruta o metropolita Hilarion e o transforma de ministro das Relações Exteriores da Igreja Ortodoxa (palavras dele) em “ministro da Defesa”, o papa no Ângelus fala do conflito entre “povos orgulhosos de serem cristãos”. Nos próximos meses, ocorrerá o segundo encontro entre o papa e o Patriarca Kirill. Em Moscou?
A reportagem é de Maria Antonietta Calabrò, publicada em Formiche, 21-02-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Inspirando-se no Evangelho de domingo, 20 de fevereiro de 2022, o Papa Francisco afirmou no Ângelus, com evidente referência à crise ucraniana: “Como é triste quando pessoas e povos orgulhosos de serem cristãos veem os outros como inimigos e pensam em fazer a guerra!”. Uma linha e meia, não mais, mas o suficiente para chamar a atenção para o fato de que patriarcas e papas, cristãos, estão desempenhando um papel não secundário na crise ucraniana.
Tudo começou em 2014, quando a invasão e a anexação da Crimeia por parte da Rússia tiveram como consequência o afastamento da Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscou. Em 15 de dezembro de 2018, o chamado “Concílio de Reconciliação” levou à unificação entre o Patriarcado de Kiev (até então “ligado” ao de Moscou) e a Igreja Ortodoxa Autocéfala Ucraniana.
A nova Igreja, a Igreja Ortodoxa da Ucrânia, foi reconhecida pelo Patriarcado Ecumênico de Constantinopla, que concedeu à nova entidade religiosa os direitos relativos à autocefalia, ou seja, o princípio de autodeterminação e de verdadeira independência.
Tal decisão, tomada pelo patriarca de Constantinopla, Bartolomeu I, sucessor na cátedra do apóstolo André, irmão de São Pedro, e ligado por estreitos vínculos de fraternidade com o Papa Francisco, porém, foi fortemente contestada pela Igreja Ortodoxa Russa, que de repente se viu privada de milhões e milhões de fiéis.
O patriarca de Moscou, Kirill, denunciou a invasão do patriarca de Constantinopla, rompeu as relações com Bartolomeu e declarou ilegal o Concílio de 2018 e “cismática” a nova Igreja, liderada pelo metropolita de Kiev, Epifanij.
Esses problemas intraortodoxos estão na base do esfriamento das relações do Vaticano tanto com Constantinopla quanto com o patriarca de Moscou, após o histórico encontro entre Francisco e Kirill no aeroporto de Cuba em fevereiro de 2016, antes do cisma ortodoxo ucraniano.
Um segundo encontro entre eles sempre foi adiado, mas em 18 de fevereiro de 2022 o embaixador russo junto à Santa Sé, Aleksandr Avdeyev, anunciou durante uma coletiva de imprensa em Gênova, relançada pela Tass: “Estão em andamento os preparativos para um segundo encontro entre o Papa Francisco e o Patriarca Kirill, por volta de junho-julho”. Especificando que “o local ainda não foi escolhido”.
O próprio Francisco mencionou os preparativos para o encontro com Kirill na coletiva de imprensa no retorno da sua viagem à Grécia e Chipre no início de dezembro de 2021. E declarou que estava sempre pronto para ir a Moscou.
Enquanto isso, porém, a crise ucraniana ressurgiu. E a posição da Igreja Ortodoxa Russa, embora tradicionalmente auxiliar em relação ao poder de Moscou, soldou-se ainda mais com a de Putin. De fato, no início de fevereiro, o presidente russo concedeu ao Metropolita Hilarion de Volokolamsk, presidente do Departamento para as Relações Eclesiásticas Exteriores do Patriarcado de Moscou (e muitas vezes no Vaticano), uma das mais altas honrarias russas: a Ordem de Aleksandr Nevsky, o santo nobre russo, príncipe de Kiev, sepultado em São Petersburgo, a cidade natal de Putin, da qual ele é padroeiro.
Kiev, capital da Ucrânia. (Imagem: Google Maps)
No Salão de São Jorge do Kremlin, Hilarion dirigiu-se a Putin não apenas agradecendo-lhe pela ajuda aos cristãos na Síria contra os terroristas e por aquilo que está fazendo na África. Ele acrescentou, com uma referência transparente à Ucrânia: “O nosso departamento às vezes é chamado de Ministério das Relações Exteriores da Igreja, o que não é correto, pois lidamos não só com as relações exteriores, mas também com as relações inter-religiosas na nossa pátria. E nos últimos anos nos sentimos cada vez mais como uma espécie de Departamento de Defesa, porque temos que defender as fronteiras sagradas da nossa Igreja”.
Acrescentando ainda: “A Igreja russa se formou ao longo de mais de 10 séculos, e nós a herdamos dentro das fronteiras em que foi criada. Não fomos nós que a criamos e não podemos destruí-la. Por isso, continuaremos resistindo aos desafios externos que devemos enfrentar hoje”.
A eventual guerra da Rússia contra a Ucrânia também tem essa implicação religiosa para o Patriarcado de Moscou: recuperar aquilo que, em sua opinião, teria sido tirado dele.
Moscou, capital da Rússia (Imagem: Google Maps)
Há na crise uma “perspectiva Nevsky”, como é chamada a rua principal de São Petersburgo (imortalizada por Gogol), que termina bem em frente ao mosteiro onde, em meados do século XIII, morreu o santo guerreiro, protetor de Hilarion.
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Igreja Ortodoxa Russa entra no conflito ucraniano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU