15 Dezembro 2021
"A Igreja Católica, que foi lenta em adquirir positivamente o horizonte ecumênico, tornou-se o centro da resistência à sua evacuação. Um gesto de fidelidade ao Evangelho, que é também um serviço significativo à união do continente europeu e à paz no mundo", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 14-12-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um humilde pedido de perdão e centralidade do pontificado na atual temporada ecumênica. A recente viagem do Papa Francisco ao Chipre e à Grécia (2-6 de dezembro de 2021) foi justamente lida a partir de algumas preocupações centrais, como os processos migratórios, a crise da democracia, a Europa e o apoio às Igrejas Católicas locais.
Menos praticada foi a perspectiva ecumênica e o peso que o atual cisma, que devasta a ortodoxia, teve na caminhada e no futuro próximo das relações entre as confissões cristãs. Trata-se de breves notas entre o não dito e o não exibido da viagem.
Um primeiro sinal está no tom direto e quase impositivo das saudações que os dois protagonistas eclesiais ortodoxos, Crisóstomo II de Chipre e o primaz Ieronymo II de Atenas, dirigiram ao Papa.
O primeiro, relembrando a ocupação turca de 1974 e a atual divisão do país, pediu ao papa que compartilhasse "a nossa sagrada e justa luta" contra a Turquia que "nosso povo sofredor conduz sob a orientação de seus líderes políticos e eclesiásticos". “Queremos ter o seu apoio ativo”, destacou o hierarca, lembrando o exemplo de Bento XVI.
Ieronymo de Atenas, em sua saudação ampla e articulada, lembrou o 200º aniversário da independência do país. “Creio que neste momento histórico o senhor tenha a coragem e a honestidade de examinar as derrotas e as omissões de seus 'pais' que não apoiaram a luta de nosso povo pela liberdade. Não tenho intenção de deixá-lo constrangido. Creio que, entre os que são chamados e querem ser irmãos em Cristo, a melhor linguagem é e continua sendo aquela da honestidade”.
“Devemos ao sangue dos heróis e dos mártires da revolução grega que o senhor os restabeleça na realidade da história” (para uma leitura mais ampla, cf. a contribuição de Y. Spiteris, Igreja Ortodoxa Grega: 200 anos de independência).
"Pedi desculpas por todas as divisões que existem entre os cristãos, mas sobretudo por aquelas que nós, católicos, provocamos... Para as demais, são os responsáveis que devem fazê-lo, mas pelas nossas peço desculpas" - disse Francisco aos jornalistas em seu retorno de Atenas.
Pedir perdão é um ato de coragem, mas por que os hierarcas ortodoxos se expuseram tanto? Ambos escolheram temas que garantissem a unidade interna de suas Igrejas, provadas não só por práticas antagônicas em relação à pandemia ou por pressões antimigrantes, mas também pelo embate entre pró-helênicos e pró-russos dentro das comunidades e entre os bispos.
No Chipre, há três bispos que não compartilham a escolha de Crisóstomo de reconhecer a Igreja ucraniana tornada autocéfala por Bartolomeu em 2019. O hierarca de Limassol, Atanásio, em 13 de novembro confirmou que não reconhecerá a Igreja ucraniana: "Continuo a acreditar como outros hierarcas de nossa Igreja, assim como a maioria das Igrejas Ortodoxas, que a entronização de Epifânio como primaz da Igreja Ortodoxa Ucraniana foi feita contra os santos cânones e em contradição com a prática e ordem estabelecidas em nossa Igreja”.
Não se trata apenas de opiniões, porque da Rússia as peregrinações aos lugares de origem do cristianismo são feitas nos territórios dos bispos considerados próximos.
Também em Atenas, o clima não foi sereno, visto que alguns bispos se manifestaram contra a orientação pró-constantinopolitana do sínodo. Uma parte do monaquismo, especialmente do Athos, é contrária ao ecumenismo e às escolhas do patriarca.
Particularmente temida é a possível conexão entre uma tradicional corrente cismática interna e os interesses divisivos de Moscou: os "veterocalendaristas". Afirmam que o reconhecimento (parcial) do calendário gregoriano pelos hierarcas no início do século XX constitui um vulnus da tradição e não aceitam a autoridade da hierarquia ortodoxa. Os contatos entre russos e ucranianos pró-russos poderiam colocar em dificuldade a Igreja da Grécia.
Um efeito indireto da disputa intraortodoxa também é visível no constrangimento russo após a disponibilidade do papa para um encontro com o patriarca de Moscou. Na entrevista coletiva no voo de retorno de Atenas, o Papa disse: “O encontro com o Patriarca Cirilo está num horizonte não muito distante. Acredito que na próxima semana Hilarion virá até mim para marcar um possível encontro”.
Hilarion, presidente do departamento de relações internacionais do patriarcado de Moscou, respondeu que "ainda não está decidido o local nem a data do encontro", sem negar que esteja previsto. No entanto, ressaltou que o empenho para uma viagem à Finlândia, que tem precedência, está congelado "por causa da situação intraortodoxa".
A forte acusação de papismo contra Bartolomeu mal se reconcilia com uma manifesta proximidade com Roma. Além disso, a Rússia, segundo o patriarca, hoje tem a liderança do mundo livre, “estamos livres das influências externas mais poderosas, estamos desenvolvendo nosso próprio caminho e espero que, em Deus, o nosso percurso tenha sucesso. A Rússia pode servir de exemplo para os outros”. No que diz respeito à fragilidade das Igrejas no Ocidente, basta citar um caso: “a Igreja Ortodoxa rejeita e sempre rejeitará a ideia da moda nas relações de casal: a convivência praticada hoje por pessoas do mesmo sexo é um pecado grave".
Quanto a Bartolomeu, Cirilo denuncia “a autocompreensão absolutamente falsa do patriarca, que se considera o chefe do mundo ortodoxo. Do ponto de vista eclesiológico, ele é o primeiro entre iguais, enquanto ele se considere não o primeiro entre iguais, mas o primeiro acima dos demais. Ou seja, ele é tentado pela mesma ideia que levou à divisão do Cristianismo entre Oriente e Ocidente. E agora - não tenho medo de dizer - precisamente por iniciativa pessoal do patriarca, a própria questão do poder já dividiu a Igreja Ortodoxa”.
Posição a que Bartolomeu foi "forçado" por forças políticas internacionais e externas à ortodoxia (EUA), prisioneiro como é do contexto liberal ocidental. A superação agora só é possível a partir da consciência eclesial das comunidades ortodoxas na Ucrânia.
Durante sua apreciada viagem aos EUA (23 de outubro a 3 de novembro), o Patriarca Bartolomeu respondeu: "Como vocês sabem, nos últimos anos (o primeiro trono - Constantinopla) foi posto à prova por uma atitude ignorante da Igreja Ortodoxa Russa em relação à sua Igreja Matriz. Nós somos a Igreja matriz porque demos a eles o Cristianismo. Nós os iluminamos. Demos a eles o alfabeto cirílico, por meio do qual queríamos ajudá-los a promover sua cultura. E, como se diz na linguagem litúrgica, deram as costas ao benfeitor. Ficaram com raiva porque concedemos a autocefalia à Igreja ucraniana”. “Por que não o fazer, como fizemos com Rússia, Sérvia, Bulgária, Grécia, Polônia, Romênia, Albânia? É privilégio exclusivo do patriarcado ecumênico conceder a autocefalia... Por que não fazer o mesmo com a Ucrânia e seus 40-50 milhões de habitantes? Nossos irmãos ucranianos queriam não só agora, mas muito antes e agora mais intensamente, ter sua própria independência e não pertencer a Moscou, não depender, não ser oprimidos por Moscou. Fizemo-lo com sentido de responsabilidade para com a história e para com a Ucrânia e o seu povo. Eles se irritaram e cortaram os laços eucarísticos com o patriarcado ecumênico. Eles deletaram meu nome dos Dípticos. Eu não ligo".
E no domingo, 5 de dezembro, durante uma celebração, frisou: “Com a graça de Deus, as Igrejas individuais que ainda não o reconheceram (o tomo da autocefalia) o farão no futuro”. Ele retornou ao tema alguns dias depois, falando a um grupo de jornalistas ucranianos: “O sonho dos nossos irmãos russos é assumir o comando da ortodoxia. Mas isso não vai acontecer. Porque, de acordo com os cânones e as regras da Igreja Ortodoxa, aprovados pelos concílios ecumênicos há muitos, muitos anos, este papel e privilégio cabem ao trono ecumênico”.
O centro do terremoto, a Ucrânia, está passando por uma certa estabilização entre as duas comunidades ortodoxas. A pró-russa ainda é majoritária. De acordo com os dados mais recentes, a Igreja pró-russa é a maior: 53 dioceses, 12.374 paróquias, 255 mosteiros, 12.456 padres, 108 bispos. Começou a operar em um ambiente civil através de uma associação laical, Miriane.
A Igreja autocéfala de Epifânio tem 7.000 paróquias, 44 dioceses, 80 mosteiros, 4.500 padres, 60 bispos. É em grande parte apoiada pelo governo e pela administração e, na mídia, desfruta de um maior consenso. Mas a preocupação mais grave do governo e da população, depois da ocupação russa da Crimeia, é a guerra no Donbass (área na fronteira com a Rússia), que já deixou 14.000 mortos. O medo de uma invasão militar cresceu nas últimas semanas. A Rússia reuniu 175.000 soldados na fronteira. E pede ao Ocidente que seja garantida de um ataque militar da OTAN, recusando à Ucrânia de aderir à aliança militar.
As tensões intraortodoxas sobre a questão autocéfala são registradas da Austrália à Ásia. Na Europa, os conflitos em curso, congelados ou temidos (Ucrânia, Geórgia, Bósnia-Herzegovina, Armênia - Azerbaijão), todos têm uma forte marca religiosa. Para um observador experiente como o alemão Christoph Strack, o desejável encontro com Cirilo faz parte da rede de boas relações e de paz que Francisco tenta construir.
A Igreja Católica, que foi lenta em adquirir positivamente o horizonte ecumênico, tornou-se o centro da resistência à sua evacuação. Um gesto de fidelidade ao Evangelho, que é também um serviço significativo à união do continente europeu e à paz no mundo.
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Francisco: uma viagem ecumênica à sombra do cisma - Instituto Humanitas Unisinos - IHU