08 Outubro 2020
“À primeira vista, a terceira encíclica do papa Francisco parece não estar no tom dos nossos tempos. Porém somente à primeira vista”, comenta em artigo Christoph Strack, jornalista da Deutsche Welle, 05-10-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Não há uma palavra sobre abuso e clericalismo na nova encíclica, nem sobre o aborto e a proteção da vida a nascer. Nada sobre a difícil situação da Igreja na China. Nada sobre os caminhos sinodais, nem sobre os transtornos do sistema romano nos últimos anos, seus escândalos financeiros e sua intolerância. Nada sobre o movimento ecumênico das igrejas, sobre a urgência e a espera na disputa sobre a Eucaristia e o Santíssimo Sacramento.
E o fato que questões marginais, como o “não à máfia”, intrometam-se em alguns lugares tem a ver com a estranha e longa história editorial de tais documentos e não melhora a qualidade do texto.
Francisco escreveu uma encíclica em meio à tragédia do coronavírus. É um texto contra a prática de “olhar de lado”, “passar adiante”, “ignorar” ou “desprezar os demais”, à qual Francisco se opõe com um “novo sonho de fraternidade e de amizade social”. A redação do texto já havia começado quando emergiu a pandemia.
O desafio que o coronavírus levanta intensifica os temas que Francisco discute e denuncia: a ganância, o domínio dos poderes econômicos, o rechaço do bem-comum, o abandono da obrigação social relacionada com a propriedade, o isolamento dos migrantes, novas formas de colonização cultural, o “ódio destrutivo nas redes”. E Francisco enfatiza o estrito não da Igreja às armas nucleares, às guerras e à pena de morte.
Ainda que a campanha das eleições presidenciais nos EUA não seja mencionada explicitamente em nenhum momento, há alguns temas do documento que os leitores europeus dão por certo que são uma provocação aos estadunidenses, em um sistema no qual a riqueza é um benefício pessoal, sem obrigações sociais, e no qual o governo de Donald Trump celebrou em sua campanha eleitoral a execução da pena de morte, ademais de defender repetidamente o direito do mais forte.
“No mundo atual, os sentimentos de pertencimento a uma mesma humanidade se enfraquecem, e o sonho de construir juntos a justiça e a paz parece uma utopia de outras épocas”, escreve Francisco. Por outro lado, estabelece a “inalienável dignidade de cada pessoa humana, mais além de sua origem, cor ou religião”, como a “lei suprema do amor fraterno”. O ímpeto para “reafirmar a função social da propriedade” é mais ou menos familiar nos sistemas sociais europeus, porém os estadunidenses necessitam de algum tempo para se acostumar com isso.
Mas a nova encíclica também tem um impacto completamente diferente. E diz muito sobre o papa, pessoalmente. Porque “Fratelli Tutti” mostra com nova clareza o quanto o líder da Igreja segue as pegadas de São Francisco, isto é, de Francisco de Assis, um louco revolucionário para a Igreja de seu tempo, 800 anos atrás. Quando, em 2013, o argentino Jorge Mario Bergoglio se tornou o primeiro papa a escolher o nome de Francisco, as pessoas perceberam e acharam isso idílico ou impressionante.
No início de 2019, Francisco se tornou o primeiro papa a viajar para a Península Arábica. Ele foi lá para se encontrar com uma das mais altas autoridades espirituais do Islã, o Grande Imam sunita Ahmad Al-Tayyeb, e assinar um documento conjunto com ele. Foi uma nostalgia. Apenas 800 anos antes, em 1219, Francisco de Assis encontrou o sultão Malik-al-Kamil no Nilo, em toda a sua pobreza, vendo-se conscientemente como um embaixador da paz durante as Cruzadas contínuas.
Agora, no início de outubro de 2020, Francisco, isolado no Vaticano em tempos de coronavírus, dirigiu-se a Assis na véspera da publicação de “Fratelli Tutti”, para assinar a encíclica ali, no 794º aniversário da morte do santo. Muitos Papas, provavelmente uma dúzia, já fizeram peregrinações a Assis. Mas Francisco foi o primeiro a assinar uma encíclica lá.
Uma comparação final: na hora de morrer, Francisco estava nu no chão de uma capela, nu diante de seu Deus. Não tinha ele alguma nudez quando, no final de março de 2020, na escuridão do mundo ao redor do coronavírus, o papa Francisco orou e implorou a Deus sozinho na Praça São Pedro, e abençoou o mundo?
Todos esses passos dos últimos anos culminam em “Fratelli Tutti”. Em cinco pontos espalhados por todo o documento, do início ao fim, o Papa cita o Grande Imam Ahmad Al-Tayyeb. Isso é muito notável, porque ele dificilmente menciona outra pessoa explicitamente, e ninguém mais do que uma vez. E a nova encíclica termina com o apelo que culminou também no documento assinado com Al-Tayyeb em Abu Dhabi, o “apelo por paz, justiça e fraternidade”.
A encíclica como um apelo à identificação com os mais pequenos, em tempos de coronavírus, populismo e nacionalismo, de pobreza ultrajante, de riqueza ultrajante. Jorge Mario Bergoglio segue, sem dúvida, a tradição dos papas; mas ele também segue, muito especialmente, as pegadas do Francisco histórico. E esse caminho vai além da estreiteza das diretrizes oficiais da Igreja. “Crentes de várias religiões”, escreve ele a certa altura, e conclama “todas as pessoas de boa vontade”.
No choque gerado pelo coronavírus e por reconhecidos populistas que detêm o poder, Francisco avisa com clareza: o caminho da religião deve ser o caminho das religiões. Para alguns na Europa e para muitos nos Estados Unidos, isso pode ser uma provocação. É uma encíclica notável.
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Fratelli Tutti: o papa Francisco escreveu um texto notável - Instituto Humanitas Unisinos - IHU