10 Dezembro 2021
O sistema penal eclesial muda: está em vigor a reforma que é fruto de dez anos de trabalho. O canonista Pighin: mais rapidez e mais ilícitos. Aumentadas algumas penas. “Ordenamento mais severo do mundo”.
Na última quarta-feira entrou em vigor o novo sistema penal para toda a comunidade católica no mundo, promulgado pelo Papa Francisco em 1º de junho passado com a constituição apostólica Pascite gregem Dei. Trata-se de uma reforma radical em relação à normativa desse tipo aprovada em 1983, uma reforma que visa limpar e prevenir com extrema determinação os “respingos de lama” que com frequência cobriram o corpo eclesial nos últimos tempos.
A elaboração da nova estrutura penal exigiu uma operação muito complexa, que durou mais de dez anos, confiada ao Pontifício Conselho para os textos legislativos que recorreu a alguns especialistas na matéria. Um deles é Monsenhor Bruno Fabio Pighin, professor titular de direito penal da Faculdade de Direito Canônico de Veneza.
Pighin não se limitou a dar sua contribuição para a nova legislação que afeta um bilhão e meio de católicos, mas também escreveu o primeiro volume de comentário "científico" sobre a mesma, que acaba de ser editada pela Marcianum Press de Veneza. É uma publicação de 664 páginas, que servirá de manual para os estudos universitários sobre o tema e para os interessados, em especial os operadores dos tribunais eclesiásticos envolvidos nos processos penais que se anunciam numerosos, dado o grande aumento dos delitos configurados no novo código. A obra será apresentada em Veneza, no dia 15 de dezembro, pela referida Faculdade de Veneza, sediada no edifício Longhena, junto à Basílica della Salute.
A entrevista com Bruno Fabio Pighin é de Gianni Cardinale, publicada por Avvenire, 09-12-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Monsenhor Pighin, por que essa "revolução" de todo o sistema penal da Igreja Católica?
Nas últimas décadas, crimes escandalosos frequentemente foram evidenciados na comunidade eclesial, com ampla ressonância também nas redes sociais. Perante essa "podridão", infelizmente os bispos e os tribunais eclesiásticos não deram uma resposta rápida e eficaz. Muitas causas contribuíram. Por um lado, espalhou-se a convicção infundada que considera o recurso a sanções penais incompatível com a caridade cristã. Muitos proclamaram ingenuamente: chega de excomunhões! Chega de condenações da parte da Igreja! Esse erro provocou uma desorientação geral. Por outro lado, o antigo sistema penal provou ser totalmente inadequado para conter prontamente condutas malignas e sanar as infecções delituosas. O despreparo e a negligência têm sido cúmplices de efeitos negativos e até de fracasso nesse âmbito. Daí a necessidade de lançar um novo e válido sistema penal da Igreja.
Quais são os objetivos deste novo sistema penal?
A nova estrutura penal canônica visa, em primeiro lugar, recompor rapidamente a justiça violada pelos culpados, mediante a imposição de penas proporcionais à gravidade dos delitos cometidos. Mas também acrescenta a necessidade de os infratores ressarcirem os danos morais e materiais eventualmente causados. Além disso, é proposta a emenda do réu, o que é desejável, mas nem sempre exequível. Por fim, pretende reparar os escândalos na opinião pública, operação com um desfecho mais incerto e remoto, mas indispensável. Em essência, as novas normas penais são tornadas aplicáveis com mais facilidade; e a autoridade encarregada de aplicá-las, caso não o fizesse, deverá arcar com as consequências por omissão de atos devidos.
A quem se dirige essa reforma e por quais crimes?
A nova normativa penal diz respeito a todos os fiéis que cometeram delitos previstos pelas leis canônicas. Por isso, dirige-se não só ao clero, não só aos membros dos institutos religiosos, mas também aos fiéis leigos. Ora, as tipologias de crime aumentaram muito em número e espécie: vão desde delitos contra a fé e a unidade da Igreja até crimes contra as autoridades da Igreja e abusos no exercício dos cargos. Estas últimas incluem também as prevaricações no campo pastoral e ilícitos na esfera econômica, até então quase totalmente ausentes, para tutela dos bens patrimoniais da comunidade.
Seguem-se os crimes contra os sacramentos: por exemplo, a violação do segredo ligado à confissão, a profanação das espécies eucarísticas, a tentativa de ordenação sagrada de uma mulher, etc. Os crimes de falsificação e desfiguração da boa reputação são também sancionados. As penalidades para as transgressões das obrigações especiais do clero se tornaram mais duras. Uma grande novidade é representada pelos crimes contra a vida, a pessoa e a liberdade humana. Os menores e os equiparados a eles agora estão amplamente protegidos contra abusos sexuais e de autoridade. Neste campo, não existe ordenamento penal no mundo mais severo do que aquele da Igreja Católica.
Mas a Igreja carece de um aparato policial e prisional. Que poder coercitivo tem?
A Igreja configura-se como povo de Deus, de natureza diferente daquela das várias nações da terra. A partir dos tempos apostólicos, desenvolveu uma disciplina penal singular, em sintonia com a sua estrutura original e as suas finalidades espirituais, até chegar agora a um "sistema penal" totalmente peculiar. Isso não recorre a punições aflitivas de tipo corporal.
Apesar disso, utiliza verdadeiras penalidades, pois privam de bens ou proíbem o exercício de determinados direitos. Por exemplo, privar um católico de acesso aos sacramentos pode ser uma sanção mais fortemente sentida do que outra de natureza material. A gama de sanções contempladas pelo novo sistema penal aumentou muito. Inclui censuras, injunções - como o pagamento de multa -, proibições de usufruir de direitos na Igreja, proibições de exercer cargos ou privação dos mesmos. Para os ministros sagrados que cometeram crimes abomináveis, agora está prevista em muitos casos a sua demissão, isto é, a exclusão do estado clerical.
Pelo que se entende, parece que o novo sistema penal considera os delitos canônicos não no mesmo plano, mas de acordo com uma própria "escala" de gravidade.
Sim, está prevista uma categoria específica de delitos denominados "mais graves", incluindo 15 delitos, entre os quais figuram, por exemplo, o abuso sexual de menores por ministros sagrados e a gravação e divulgação maliciosa do conteúdo da confissão. Seu tratamento é reservado à Sé Apostólica e, portanto, a competência sobre eles é removida dos tribunais inferiores. Outros crimes, embora não classificados como "mais graves", também são reservados à Santa Sé, como a ordenação de um bispo sem o mandato pontifício e também a apostasia, a heresia e o cisma. Para ambas as tipologias mencionadas, o prazo de prescrição da ação penal é de vinte anos. Muitos outros crimes prescrevem em sete anos. Um número reduzido deles prevê a prescrição num período de três anos. Por fim, para os delitos mais graves, a pena é aplicada ipso facto, ou seja, imediatamente após a prática do crime, ainda que depois possa ser declarada com efeitos tornados mais pesados.
O Papa Francisco é conhecido por ter se feito paladino da misericórdia. No entanto, de acordo com alguns, essa reforma parece desmentir tal orientação.
Creio que a linha seguida pelo Papa deva ser bem compreendida: a misericórdia é uma virtude essencial que deve ser sempre testemunhada pela Igreja pela vontade do próprio Cristo, mas nunca deve ser separada da justiça. Esta segunda é uma exigência irrenunciável da comunidade cristã, mas também das eventuais vítimas de crimes por vezes hediondos, e até mesmo dos próprios culpados que precisam de misericórdia e da justa correção, com o recurso a sanções penais, se outras medidas mais brandas resultarem ineficazes, levando-se em conta que a salvação das almas é a lei suprema da Igreja.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Endurecimento contra os crimes na Igreja. A justiça “abraça” a caridade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU