Abusos sexuais e confissão: o confessor deve denunciar um abusador? A reflexão e a proposta do Pe. Zollner

Foto: Wikimedia Commons/Milliped

17 Novembro 2021

 

É hora de a Igreja dar instruções mais claras sobre o exercício do sacramento da reconciliação, para que penitentes, confessores e pessoas fora da Igreja possam compreendê-lo como um lugar de segurança, cura e justiça.

 

A opinião é de Hans Zollner, SJ, diretor do Instituto de Antropologia, Estudos Interdisciplinares sobre a Dignidade Humana e sobre o Cuidado das Pessoas Vulneráveis (IADC), da Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma. O artigo foi publicado em La Stampa, 14-11-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

O recente relatório sobre os abusos sexuais na Igreja na França levantou a pergunta já feita depois da publicação de relatórios semelhantes na Austrália, Irlanda, Estados Unidos e em outros lugares: um sacerdote que, na confissão, fica sabendo de abusos sexuais cometidos contra um menor deveria ser obrigado a denunciá-los às autoridades seculares?

 

Embora a Igreja Católica não espere que as suas leis sejam consideradas acima das leis nacionais, as tentativas de remover o sigilo confessional levantam questões fundamentais sobre a liberdade religiosa e de consciência. Não há sequer nenhuma prova convincente que demonstre que os abusos poderiam ser evitados removendo o sigilo.

 

Como disse o arcebispo Éric de Moulins-Beaufort, presidente da Conferência Episcopal Francesa, após a publicação do relatório francês, “é necessário reconciliar a natureza da confissão com a necessidade de proteger as crianças”.

 

Isso não é fácil quando a discussão está tão carregada de emoções e quando há muita incompreensão sobre a natureza da confissão dentro da Igreja Católica. O cânone 983 §1 do Código de Direito Canônico dá a definição mais direta possível do “sigilo confessional”: “O sigilo sacramental é inviolável; pelo que o confessor não pode denunciar o penitente nem por palavras nem por qualquer outro modo nem por causa alguma”.

 

Um sacerdote não pode violar o segredo para salvar a sua própria vida, para proteger o seu bom nome, para salvar a vida de outra pessoa ou para ajudar o curso da justiça. Os sacerdotes que fazem isso são automaticamente excomungados.

 

O absoluto segredo do confessionário explica por que as pessoas se sentem livres para dizer coisas na confissão que não diriam em nenhum outro lugar. Alguns veem a insistência na inviolabilidade do segredo como uma confirmação de que a Igreja não coloca em primeiro lugar a segurança e o bem-estar das crianças. Às vezes, pensa-se que os autores de abusos sexuais são capazes de revelar os abusos na confissão, receber absolvição e depois continuar abusando sem repercussões. É verdade que algumas vítimas de abusos foram aliciadas e/ou abusadas no âmbito do sacramento da confissão, que, no direito canônico, é considerado um crime grave.

 

Mas é igualmente verdade que, ao longo dos séculos, sacerdotes foram torturados e martirizados por terem se recusado a responder às demandas de regimes brutais para revelarem os segredos da confissão. A discussão sobre o segredo é bastante delicada de ambos os lados, ainda mais porque diz respeito a questões muito sensíveis, como a vergonha, a privacidade e a responsabilidade pessoal.

 

Talvez ajudasse se fizéssemos algumas distinções e esclarecimentos. Em primeiro lugar, quem fala de abusos ocorridos durante a confissão poderiam ser perpetradores, ou vítimas de abusos, ou pessoas que estão cientes de abusos cometidos por outras pessoas; e, em cada um desses três casos, o abuso poderia ter ocorrido há anos, ou há décadas, ou ainda estar em andamento. Há algumas ideias sobre a confissão que, embora sendo profundamente enraizadas, não são absolutamente verdadeiras. Com exceção dos capelães das prisões, é altamente improvável que os sacerdotes ouçam diretamente a confissão de um culpado de abusos sexuais de crianças. Somente um padre me disse que ouviu a confissão de um culpado – e isso aconteceu apenas uma vez.

 

Parece que a ideia geral é de que os católicos se confessam frequentemente. Na realidade, mesmo nas cidades, hoje muitas vezes é difícil encontrar um lugar onde um católico possa se confessar. E muitos não se dão conta de que o padre geralmente não conhece a pessoa presente no confessionário e não pode forçá-la a lhe revelar a sua identidade.

 

É precisamente a garantia do anonimato que leva as pessoas a se confessarem. Se isso fosse removido, muito poucas pessoas continuariam a fazê-lo – e certamente nenhum culpado correria o risco de prisão.

 

No caso de um penitente que se confessasse com uma pessoa que o conhece, por acaso ou por escolha, seria ainda mais improvável que ele confessasse o abuso, ou que escondesse o crime usando expressões deliberadamente veladas.

 

Quem quer abolir o sigilo confessional para os casos de abuso de crianças ou outros crimes graves defende que um padre que tenha conhecimento de um abuso deveria denunciá-lo obrigatoriamente, assim como os médicos ou os psicoterapeutas ou outros profissionais. As atuais leis sobre a denúncia obrigatória dos abusos variam muito de país para país, mas também dentro dos Estados do mesmo país, muitas vezes dando espaço para uma certa discricionariedade não só sobre o tipo de circunstâncias, mas também para quem a pessoa que toma conhecimento do abuso deve apresentar a denúncia.

 

Uma vítima de abusos sexuais clericais quando adulta me fez nota que muitas vítimas se sentem culpadas e acham extremamente difícil falar pela primeira vez sobre o indizível. Ela teme que, se não for possível ter a certeza absoluta de que o que se diz na confissão permanecerá confidencial, pode-se perder um dos poucos lugares seguros para começar a falar sobre uma experiência de abuso.

 

A absolvição – o perdão dos pecados – está ligada ao cumprimento das condições de uma confissão válida: contrição sincera, confissão clara, satisfação adequada. A absolvição não pode ser concedida se houver dúvidas sobre qualquer uma dessas condições. Em outras palavras, caso alguém confesse um abuso, a menos que dê sinais de sincero arrependimento e a vontade de remediar o dano provocado, o confessor deve suspender a absolvição.

 

No entanto, de acordo com o ensinamento da Igreja, se um sacerdote tomar conhecimento de um abuso ou de outro crime grave durante a confissão, ele não pode violar o sigilo, mesmo que essas condições não sejam satisfeitas e ele não possa dar a absolvição. Esse é o motivo pelo qual, por exemplo, um reitor não está autorizado a ouvir a confissão de um seminarista, para que ele possa falar livremente sobre a conveniência de propor o candidato à ordenação e não esteja vinculado às obrigações do sigilo.

 

Embora de acordo com o Direito Canônico a absolvição não possa ser vinculada a uma condição como a denúncia do crime à polícia, o confessor deve fazer tudo o que estiver ao seu alcance para convencer um culpado a assumir a responsabilidade por aquilo que fez. Isso inclui a tentativa de encontrá-lo fora do confessionário, onde o sacerdote pode convidar o culpado a falar de novo sobre o crime cometido e pressioná-lo a se entregar à justiça.

 

Da mesma forma, se uma vítima se confessar, o confessor pode oferecer um encontro fora do espaço confessional ou sugerir apoio e a possibilidade de um acompanhamento posterior por parte de terapeutas e advogados.

 

Se a Igreja não explicar melhor por que o sigilo da confissão não protege os abusadores ou outros criminosos graves da justiça – e por que pode ajudar a proteger as crianças e os adultos vulneráveis – os legisladores estatais podem visar a inviolabilidade do sigilo confessional. Acho que, se a Igreja fizesse mais para ajudar os confessores a serem ouvintes empáticos e intérpretes hábeis do ensinamento moral da Igreja, ficaria mais claro que o sacramento da reconciliação pode ser um instrumento na luta contra os abusos, que levaria a uma maior confiança em relação aos confessores, ao processo e à compreensão do próprio sacramento da reconciliação.

 

Creio que a Santa Sé poderia considerar a formulação de uma nova instrução para os confessores, que reitere as obrigações relativas ao respeito das leis para a denúncia dos abusos fora do confessionário e, entre estas, o sigilo. Um ponto crucial é a responsabilidade pessoal do confessor. Isso inclui o convite ao perpetrador a interromper o abuso, a se autodenunciar às autoridades legais e a buscar ajuda terapêutica; mas também a ênfase de que a absolvição pelo pecado de abuso não pode ser dada a menos que haja não apenas uma sincera contrição, mas também a vontade de remediar o dano causado.

 

A instrução também deveria deixar claro que, no caso de uma vítima relatar que foi abusada, o confessor deve ouvir com empatia e respeito. O sacerdote pode oferecer, depois, um encontro fora do espaço confessional e encorajar a vítima a contatar terapeutas e advogados. É necessário fornecer um acompanhamento adequado, visto que muitas vítimas se sentem bastante desconfortáveis ao relatarem pela primeira vez o abuso sofrido, especialmente se isso abrir caminho para processos judiciais.

 

A mesma norma deveria definir:

 

1) quem os confessores podem contatar para esclarecimentos e orientações; e que eles devem se informar sobre as pessoas às quais as vítimas e quem está em dificuldade devem ser encaminhados;

2) quais procedimentos devem ser seguidos por um confessor, quando uma pessoa, seja ela autor ou vítima, aceita o encontro fora da confissão para mais esclarecimentos; e

3) qual preparação é necessária na formação inicial e permanente dos confessores, assim como qual apoio e acompanhamento são necessários a fim de poder enfrentar os princípios morais e legais às vezes em contradição.

 

O pano de fundo implícito no debate sobre o sigilo é a relação entre Estado e Igreja Católica e outras instituições religiosas em um Estado secular e liberal. A crescente sensação de que o Estado deve intervir nasce da ferida causada pelos abusos sexuais clericais e da convicção, presente na Europa e na América do Norte, de que as Igrejas não conseguiram abordar a questão de forma adequada.

 

Isso cria uma tensão Igreja-Estado que requer uma atenta navegação entre o respeito pelos poderes legislativos do Estado e a liberdade religiosa. Uma laicidade saudável reconhece que existe uma tentação para os Estados de “exagerarem” quando se trata de comunidades religiosas, enquanto uma Igreja saudável sabe como dar a César o que é de César.

 

O sigilo da confissão cria um espaço sagrado no qual o penitente está completamente livre para colocar diante de Deus tudo o que tem na consciência e – quando mostra contrição – encontra o perdão, a reconciliação e a cura. Se o sigilo, no passado, foi um pretexto para abusos e outros crimes, isso não deveria levar a abandonar aquele que é um canal da graça.

 

Mas há questões complexas que devem ser abordadas, com delicadeza e raciocínio, no contexto de uma relação de confiança recíproca entre Igreja e Estado. Pode ser que seja hora de a Igreja dar instruções mais claras sobre o exercício do sacramento da reconciliação, para que penitentes, confessores e pessoas fora da Igreja possam compreendê-lo como um lugar de segurança, cura e justiça.

 

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