05 Novembro 2020
“A complexidade das relações produtivas e o desenvolvimento de cadeias globais há décadas socializa o conflito capital/trabalho e despersonaliza o empresário explorador, sofrendo a externalização de parcelas produtivas fora do perímetro da empresa tradicional. O trabalho sindical precisa dar um salto: cabe agora despertar o interesse do trabalhador para o que produz e como produz”, escreve o economista Ignacio Muro, especialista em modelos produtivos e em transições digitais, em artigo publicado por Economistas Frente a la Crisis, 01-11-2020. A tradução é do Cepat.
A construção de um futuro alternativo precisa de um diálogo permanente sobre os principais vetores e tendências que constroem o progresso: o impacto da tecnologia digital, a questão ambiental e climática e as diferenças de gênero. Esse diálogo não pode ser abstrato, nem elitista, mas deve atrair a atenção dos sujeitos sociais que ancoram as energias da mudança, começando pelo mundo do trabalho e a atividade sindical.
Nos próximos 10 anos, concentra-se um conjunto de transições que precisamos abordar simultaneamente porque afetam a vida como a conhecemos. Tudo está sujeito a mutações. E, claro, o que entendemos por trabalho: não só a lógica das relações trabalhistas, mas tudo aquilo que o identifica como o espaço prioritário de realização para o desenvolvimento do ser humano.
Se até agora essa utopia esteve voltada, em última instância, a superar a alienação do trabalhador em “seu trabalho”, hoje, as cadeias globais de valor, as profundas e contínuas mudanças tecnológicas, a mudança climática e as limitações objetivas dos recursos naturais e a incorporação do trabalho “não-produtivo” associado aos cuidados ampliam e universalizam os desafios de transformação.
O trabalho se socializa mediante mudanças que introduzem novas contradições que afetam a prática sindical, na medida em que ampliam o foco do bem comum desejado até torná-lo menos acessível e mais complexo para administrar.
Podemos nos servir da Pirâmide de Maslow e seu significado para mostrar a contradição do momento. Esta tese sustenta que na medida em que o progresso econômico satisfaz as necessidades básicas associadas à subsistência e à segurança, vão surgindo novas necessidades humanas relacionadas a valores superiores (ética, criatividade, equilíbrio), situados no espaço do reconhecimento e da autorrealização.
Acontece que aquele paradigma nascido em 1943, no alvorecer do Estado de Bem-Estar, confiava na utopia de um desenvolvimento contínuo que acabaria se ampliando e colocando o bem-estar ao alcance de todos, suposição que foi pelos ares nas três últimas décadas.
O que aconteceu e está acontecendo é que boa parte do gênero humano, e em particular do mundo do trabalho dos países desenvolvidos, está percorrendo o caminho inverso, retornando a preocupações muito mais básicas que giram em torno da segurança em seus ingressos e do medo da precariedade e a perda de retribuições estáveis.
Isso interrompe a linha de progresso e gera uma contradição que afeta de cheio as possibilidades de êxito das opções democráticas.
Comecemos pela conexão entre trabalho e tecnológicas digitais. Se o trabalho pode ser repartido em microtarefas, se o trabalhador pode depender simultaneamente de vários empregadores, se a atividade desenvolvida se desconecta de sua condição in situ para poder ser realizada a qualquer momento e de qualquer lugar, até desfazer a linha que separa o tempo de trabalho e não-trabalho, então acaba desaparecendo a fronteira entre a vida pessoal e a vida profissional e entre a regulação dos tempos produtivos e os reprodutivos.
Nesse contexto, os direitos trabalhistas se tornam algo indissociável dos direitos cidadãos. E as normas sobre conciliação, rendas mínimas garantidas, acesso à moradia, mobilidade urbana, sustentabilidade das atividades produtivas, desconexão digital, formação permanente, acesso flexível à aposentadoria... começam a fazer parte de uma nova bateria de demandas e direitos sociais que se conectam intimamente com o puramente laboral.
Sendo assim, não basta redefinir o “contrato de trabalho” nos novos ambientes, mas é necessário redefinir o próprio conceito de trabalho incorporando todos os tipos de atividade. Hoje, mais do que nunca é indispensável a inclusão da atenção aos cuidados “improdutivos”, integrando-os em um novo perímetro conceitual mais amplo e complexo.
Objetivamente, isso estimula a enfrentar os múltiplos aspectos da democratização da economia e, em particular, as consequências do direito de propriedade em sua dimensão mais ampla, aquela que determina o que se produz, como se produz e o modo como se organiza a vida em torno da produção e o consumo.
No entanto, não podemos esperar que a urgência histórica desse desafio seja compreendida por todos. De fato, a polarização do trabalho e o esvaziamento das classes médias distorce e extirpa o quadro de necessidades humanas previsto por Maslow.
Para boa parte dos trabalhadores e inclusive para os coletivos crescentes de classes médias que percebem a precariedade como risco certo, o fato de que as fábricas poluam, que suas empresas vendam armas e alimentem guerras distantes ou que descumpram os objetivos de desenvolvimento sustentável tem importância secundária, sempre vem depois de sua estabilidade no emprego, da qual depende sua própria subsistência e a dos seus.
O contrário ocorre com as camadas de profissionais localizadas em megacidades favorecidas pelo desenvolvimento tecnológico, cujo trabalho é desenvolvido em condições objetivas para compreender e assimilar como urgentes esses valores superiores do equilíbrio, a médio e longo prazo, associados à sustentabilidade ou à cultura de paz como princípio da relação entre nações, ou a incorporação do cuidado “improdutivo” como parte do trabalho, como também os limites físicos ao crescimento.
Quando se assume que a construção de uma consciência geral é o propósito essencial, é preciso se perguntar como amalgamar essas diferentes visões que surgem de realidades tão distintas. Esse desafio, que exige recuperar a primazia da política sobre a economia, afeta uns e outros|: as camadas mais preparadas e conscientes que constroem relatos de um futuro desejado a médio e longo prazo e as precarizadas que não estão em condições a não ser de sobreviver dia a dia. Sintetizar as duas visões força a romper com uma dinâmica na qual convivem e se retroalimentam posturas elitistas e populistas que se solidificam nas diferentes camadas sociais e impedem o esboço de um bem comum compartilhado.
Como conectar as soluções aos problemas deste mundo às necessidades concretas dos setores precarizados que mais sofrem a desigualdade é a grande tarefa do momento. Porque a pessoa que sofre, se sente só, sem que ninguém lhe ofereça respostas, não tem motivos para olhar para esse futuro desejado. De tal modo que existe o risco certo de que as propostas simples (fechar fronteiras, introduzir tarifas, expulsar imigrantes), procedentes das forças reacionárias, tenham êxito como consequência da fé em uma proteção ilusória que não encontra em nenhum outro discurso.
O tema central é justamente dar resposta à necessidade de proteção (do que estamos protegidos? Quem está? Quando estamos e quando não?), o que significa que precisamos ser capazes de contar com um marco específico de direitos viáveis, em que todos possam colocar sua expectativa de futuro em um horizonte de razoável certeza.
Se no passado se lutou pelos direitos dos trabalhadores, pela estabilidade dos contratos, pela criação de um sistema em que todos pudessem construir sua vida com relativa serenidade e traçar o futuro de seus filhos, hoje, somos forçados à dupla necessidade de universalizar e especificar, em detalhes, as novas demandas de proteção.
Trata-se de imaginar um novo pacto social, uma nova carta de direitos aplicáveis a todos os cidadãos em condições de continuar oferecendo energias à comunidade.
Os direitos trabalhistas não podem estar vinculados a um tipo de contrato, nem tampouco se limitar à condição de assalariado, mas devem ser ampliados para outras atividades sociais não remuneradas e que hoje não cabem na ideia “trabalho”, inclusive se estas se produzem fora dos tempos vitais “ativos” (aposentados, gestantes).
Essa linha força todo o ecossistema do direito trabalhista a mudar o marco ideológico em que se move atualmente e enfrentar sua desmercantilização. Na medida em que o direito ao trabalho se limita a estabelecer como contrapartida uma retribuição monetária, reconhece uma ausência de ambição e se incapacita para imaginar o direito de influenciar sobre a obra realizada, ou seja, sobre o produto de seu trabalho.
Para os assalariados, trabalhar é um meio a serviço de um fim que é a obtenção do salário. Não o educa sobre o que produzir, nem sobre a razão para isto ou como produzir, mas se limita a um marco mercantil que se retroalimenta.
Trata-se de se aprofundar na tese das mercadorias fictícias de Karl Polanyi e nas graves disfunções que acarreta tratar o trabalho junto com a natureza, o dinheiro e a saúde como uma mercadoria, uma ficção que interrompe a unidade entre sociedade e natureza e entre os próprios homens e mulheres.
Conquistar o interesse do trabalhador pelo fruto de seu trabalho é a essência da mudança para a democracia econômica. Nesse contexto, o reconhecimento do direito de alerta ecológica dos trabalhadores é um sinal da emergência e alimentaria uma ideia avançada de democracia econômica, que reconhece a todos um direito de controle sobre os métodos e as finalidades de seu trabalho em todos os níveis e até as suas últimas consequências.
Seria uma mudança conceitual importante, essencial na redefinição dos direitos sociais e de seus sujeitos, em especial dos sindicatos, que passariam a defender todas as formas de contribuição social e a representar todas as formas de trabalho, ampliando seu âmbito de ação e buscando respostas permanentes às novas necessidades de proteção.
Não é algo alheio e nem desconhecido pelos sindicalistas. Mas é um passo além na difícil tarefa de universalizar os objetivos enquanto se luta em uma realidade multifragmentada.
A complexidade das relações produtivas e o desenvolvimento de cadeias globais há décadas socializa o conflito capital/trabalho e despersonaliza o empresário explorador, sofrendo a externalização de parcelas produtivas fora do perímetro da empresa tradicional. O trabalho sindical precisa dar um salto: cabe agora despertar o interesse do trabalhador para o que produz e como produz.
Encarar o que se produz supõe, no nível mais alto, abordar também a necessidade de se reconfigurar, substituir e/ou reduzir o tamanho e o destino de muitos setores-chave (construção, automação, turismo, finanças, consumo), que representa uma parte substancial do PIB de nossa economia.
A dificuldade é integrar os objetivos parciais ao alcance da visão humana em uma grande tarefa de dimensão desconhecida. E aqui aparece esse apontamento otimista que Alain Supiot reúne em sua análise sobre o trabalho no século XXI. Por que, pergunta-se Franz Kafka em A Muralha da China, foi necessário construí-la por segmentos e não de forma linear? Porque só a sua construção fragmentada podia dar sentido à vida de quem se sentia animado pelo prazer do trabalho bem feito e pela ambição de ver um dia sua obra acabada. Se tivessem trabalhado apenas por seu salário, teriam sido incapazes de realizar a grande obra.
Agora, nosso grande desafio é também o de encontrar as partes que dão sentido ao todo, sabendo que esse todo é também do tamanho equivalente à construção da grande muralha chinesa.
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O mundo do trabalho frente ao diálogo sobre um futuro alternativo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU