14 Agosto 2020
"Parece-nos espantoso que todo cuidado com a procriação e manutenção da vida – que se dá dentro dos lares domésticos – não estejam entre as causas da riqueza de um país ou de uma nação", escreve Paulo José Penalva Mancini, militante ambientalista desde 1977, biólogo, mestre em Engenharia Civil (ênfase em saneamento) pela EESC-USP, em artigo publicado por EcoDebate, 13-08-2020.
Recentemente, um amigo, exasperado com os serviços de limpeza e arrumação domésticos que está sendo obrigado a realizar devido ao isolamento social provocado pela pandemia do novo coronavírus, desabafou:
– Olha, acho que as empregadas domésticas deveriam ter um salário de no mínimo cinco mil reais!
A pandemia da COVID-19 tem sido uma tragédia, especialmente para nós brasileiros que temos a infelicidade de enfrentar a pandemia com um pandemônio de presidência da república (com minúsculo mesmo, porque quem ocupa este cargo hoje o torna minúsculo, ou melhor, o torna nanométrico como o SARS-COV-2).
Mas, como toda face tem seu verso, em tudo temos sempre que buscar um lado positivo. E, de positivo, a COVID-19 e sua virulência pandêmica, põe a nu grandes mazelas sociais, políticas e econômicas existentes no mundo e no Brasil.
Algumas destas mazelas que, de tão antigas, milenares até, passam despercebidas, pois foram naturalizadas. É preciso um choque civilizatório, como esta nova pandemia, para que seja desnudada uma enorme injustiça que conforma nossos hábitos, nosso ethos social.
Em “Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações”; ou como é mais simplificadamente conhecida, “A Riqueza das Nações”, publicada em Londres em 1776, Adam Smith, um dos teóricos pioneiros sobre a economia política, examina em cerca de 800 páginas as relações produtivas na sociedade, as trocas comerciais, e o papel do Estado.
Não há em toda essa volumosa e magistral (mesmo para os que discordam de Adam Smith), sequer uma linha acerca do trabalho doméstico. O trabalho necessário para com os cuidados com a higiene doméstica, o cuidado com os filhos, a manutenção do lar, não contribuem para riqueza das nações!
Obviamente para ele e para a mentalidade da época, estes serviços não eram – e ainda não são na maioria das sociedades – monetizadas ou monetariamente valorizados, e assim não deviam ser levados em conta no exame das ‘causas’ da riqueza das nações!
Parece-nos espantoso que todo cuidado com a procriação e manutenção da vida – que se dá dentro dos lares domésticos – não estejam entre as causas da riqueza de um país ou de uma nação.
Quase 120 anos após a publicação de “A Riqueza das Nações”, Karl Marx, filósofo e economista alemão, procurou, em uma vasta obra de três volumes, fazer uma revisão crítica da obra de Adam Smith e outros economistas liberais que o sucederam.
Contudo, nos três volumes de “O Capital” – que aponta, à luz da valorização do trabalho humano (e do conceito de ‘mais valia’ e a exploração do trabalho par acumulação capitalista) e do desvelamento das classes sociais e suas dinâmicas, as falhas ou deficiências da obra de Adam Smith – também não encontramos referência à relevância do trabalho doméstico. Também na análise marxista original as tarefas domésticas não são consideradas relevantes para a economia.
Para sermos honestos com Marx é preciso relatar que há uma – e apenas uma – citação em sua obra “O Capital” ao trabalho doméstico: no capítulo “Máquinas e Grande Indústria”, numa nota de rodapé(!) da página 324 do primeiro volume, que reproduzimos, trecho, a seguir conforme citado pela militante feminista ítalo-estadunidense FEDERICI[01]:
“basta observar como o capital usurpa em seu próprio benefício, até o trabalho familiar indispensável para o consumo….. ” .
Ainda que a teoria marxista sobre a acumulação capitalista e o desenvolvimento do conceito de classes sociais, tenha sido muito importante para a luta feminista pela emancipação política, social e econômica das mulheres (ainda em curso), segundo Silvia Federici, foi necessário ao movimento feminista fazer uma crítica ao marxismo e a visão dos movimentos socialistas sobre a mulher dominantes no século XIX e primeira metade do século XX.
Marx reconhece, sem qualquer sombra de dúvida, o sistema patriarcal dominante como opressor e o associa à acumulação capitalista, mas por que silencia sobre o trabalho doméstico exercido predominantemente – principalmente nos seculos XIX e XX, mas até hoje – pelas mulheres?
Talvez porque associasse a reprodução feminina e, em decorrência, todos os cuidados domésticos para sustentação da vida, com a ‘natureza’. Ou seja, como algo que está dado. Como a Terra, que é vista como um grande repositório de recursos naturais a serem explorados pelo trabalho humano, que por sua vez são explorados pelas classes dominantes.
A escravidão perdurou por milhares de anos entre as relações humanas e eram ‘naturalmente’ aceitas. Era comum que os povos conquistados em guerras fossem escravizados e submetidos aos piores serviços ou mesmo sacrificados. Há uma passagem no Antigo Testamento em que o próprio Deus de Israel admoesta um rei hebreu por não ter eliminado todas as pessoas de um território conquistado.
Os direitos conquistados pelas mulheres são muito recentes, a partir de meados do século XX. Ate então eram consideradas propriedades de seus pais que, no casamento, as entregavam a seus novos proprietários, seus maridos. Mediante o pagamento de um dote!!
Por isso todo trabalho que realizavam não tinha valor, não precisavam ser remuneradas pelos seus serviços domésticos. Eram as ‘escravas do lar’, ainda que chamadas, eufemisticamente, de as “rainhas do lar”.
A pandemia da COVID-19, para muitos, está contribuindo para valorização das atividades domésticas, das mulheres, da Terra e da vida!
[01] FEDERICI, Silvia – “Notas sobre Gênero em O Capital de Marx”, revista Movimento, consultado em 31-07-2020, 19h30.
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O Trabalho no Lar e a Pandemia da Covid-19 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU