07 Agosto 2020
"Destruir as florestas, contaminar o ar e as águas, devastar o meio ambiente e desertificar o solo é impedir a reprodução da vida. E mais, é tornar impossível a continuidade não só de nossas futuras gerações, mas também outras espécies de fauna e flora, cuja ausência nos empobrece a todos. Nessa perspectiva, o novo coronavírus funciona como um balde de água fria no consumismo frenético no 'viver bem'", escreve Alfredo J. Gonçalves, padre carlista, assessor das Pastorais Sociais e vice-presidente do SPM – São Paulo.
Do ponto de vista da relação entre os seres humanos, de um lado, com a natureza e o meio ambiente, de outro, não será exagero considerar a pandemia do Covid-19 como um ponto de chegada e, ao mesmo tempo, um ponto de partida. Ponto de chegada em referência a um modo de pensar que considera o planeta terra como objeto rico e passivo de exploração, do qual, aparentemente, poder-se-ia extrair bens ilimitados. O pensamento do filósofo francês René Descartes, com a distinção clara e taxativa entre o sujeito pensante e os objetos ou coisas, teria contribuído poderosamente para essa visão dualista entre humanidade e natureza. O processo evolutivo marcado pelos avanços da ciência e do iluminismo, que conduz o Ocidente aos “tempos modernos”, é fortemente marcado por essa premissa. Depois, com o surgimento e o progresso da tecnologia, tal evolução ganha velocidade sem precedentes, culminando na Revolução Industrial. Com a final do século XX e início do XXI, chegamos à modernidade tardia (Anthony Giddens) ou pós-modernidade (François Lyotard).
Nas últimas décadas do século passado e as primeiras deste, porém, movimentos ambientalistas e estudiosos de várias áreas seguem insistindo na redescoberta que nosso planeta azul, longe de ser um mero objeto dependente e passivo diante da ação humana, representa em lugar disso um organismo vivo. Organismo vivo que, como toda planta, todo animal e todo ser humano, sofre constantemente um processo de metabolismo que o renova e transforma. Todo ser vivo, de fato, incorpora novos ingredientes, metaboliza e integra aquilo que o faz crescer e desenvolver-se, ao mesmo tempo que rejeita e expele o que lhe é nocivo. Até mesmo as águas, o oxigênio, o ar, a luz, e inclusive a matéria inorgânica são protagonistas desse processo de seleção permanente. “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, dizia Lavoisier.
Evidente que essa redescoberta da Terra como organismo vivo precede a tragédia da pandemia que hoje assola o mundo. Mas essa, em suas exigências e consequências, é também um ponto de partida que aguça nos seres humanos uma outra relação com o meio ambiente. Aprofunda-se a consciência de que o usufruto indiscriminado dos recursos naturais, bem como a exploração ao extremo da força humana de trabalho, representa um caminho equivocado e irreversível, um beco sem saída. O uso incorreto dos bens da natureza e o abuso nas relações trabalhistas, cedo ou tarde, confronta-se com barreiras intransponíveis. Enquanto alguns bens naturais podem ser recicláveis, outros são limitados. Daí a consciência de uma vida mais simples, sóbria, frugal e responsável. O organismo terrestre não se recria como fonte vital com a velocidade com a qual a econômica globalizada busca insaciavelmente lucro e acumulação do capital.
Mas não é só isso! Na exata medida em que olhamos para o planeta Terra não como um objeto a ser manipulado em função de interesses imediatos, e sim como um organismo vivo e vital, ele se torna um outro sujeito com o qual devemos nos relacionar. Relação nova e interativa, onde a natureza e o meio ambiente, juntamente com os seres humanos, passam a agir como verdadeiros protagonistas da biodiversidade. Semelhante modo de relacionamento nos obriga, por nossa vez, a olhar diferentemente para esse “outro sujeito”, respeitando sua alteridade única e irrepetível, como também a colocarmo-nos em seu lugar, com a consciência de suas fragilidades e de suas contribuições, de sua necessidade perene de renovar-se enquanto organismo vivo, para seguir oferecendo aos seres humanos o “leite” indispensável da sobrevivência.
Em conclusão, damo-nos conta que destruir as florestas, contaminar o ar e as águas, devastar o meio ambiente e desertificar o solo é impedir a reprodução da vida. E mais, é tornar impossível a continuidade não só de nossas futuras gerações, mas também outras espécies de fauna e flora, cuja ausência nos empobrece a todos. Nessa perspectiva, o novo coronavírus funciona como um balde de água fria no consumismo frenético no “viver bem”. Ou então uma espécie de ponto de partida em direção ao horizonte do “bem viver” justo, inclusivo, responsável e sustentável.
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Pandemia como ponto de chegada e ponto de partida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU