05 Julho 2019
Tornou-se muito conhecido quando a Terceira via de economia mista e reformismo inspirava o novo Partido Trabalhista, liderado por Tony Blair. O jovem, simpático e sorridente “premier” britânico era a sensação em um Velho Continente que buscava a novidade em uma esquerda um pouco decaída, após o auge do neoliberalismo. E ele se inspirava em quem ainda é um dos professores universitários, pensadores e escritores mais lidos, seguidos e de maior influência pública do Reino Unido, desde – segundo não poucos – John Maynard Keynes. Hoje, Antony Giddens (Londres, 1938) acompanha pessoalmente o Brexit, como lord na Câmara Alta do Parlamento britânico, defendendo posições pró-europeias, em um país que votou pela saída, e denunciando – como sociólogo de renome que é – a cegueira de se desconsiderar a realidade e as consequências em tudo isso da revolução digital em curso.
A entrevista é de Alexis Rodríguez-Rata, publicada por Clarín-Revista Ñ, 28-06-2019. A tradução é do Cepat.
São vários os partidos populistas que, na Europa, seguem parte das políticas protecionistas de Donald Trump. E estão ganhando cada vez mais e mais apoios. São a representação dos novos e “duros” tempos que estão para chegar na Europa?
Há uma série de mudanças e tensões paralelas que são visíveis nas democracias liberais ocidentais de hoje e, inclusive, em todo o mundo. Brevemente, são estas: a ruptura dos sistemas de partidos anteriores, o esvaziamento do centro político, o auge dos novos partidos ‘insurgentes’ e o declínio da social-democracia.
Há versões do populismo tanto de direita como de esquerda, mas a tendência mais visível é o ressurgir da extrema direita, em paralelo ao auge de líderes demagogos como Donald Trump, nos Estados Unidos, e Viktor Orbán, na Hungria. Em todo caso, em quase todo Estado da União Europeia e dos Estados Unidos há grandes oposições ao populismo de direita. A história das eleições europeias desta triste época não será só a da influência do populismo de direita, mas também a de uma luta mais complexa e diversificada.
A crise econômica e financeira levou a uma política e social. O Brexit, o auge das novas forças populistas nos diferentes países europeus... Em certo sentido, os valores fundacionais da União Europeia estão em questão. Acredita que a integração europeia sobreviverá? Se sim, como?
A crise financeira mundial e suas consequências são, com efeito, a base de algumas das mudanças políticas desta última década. Em muitos países, os salários reais se estagnaram e as desigualdades se tornaram mais extremas. Ainda que, igualmente importante, é a aceleração da revolução digital que, do meu ponto de vista, hoje, significa a mudança mais relevante que atinge nossas sociedades.
Em quase todos os estados europeus, a manufatura está em forte declínio e a principal razão não é a deslocalização, mas a automatização, que se acelerou nos últimos anos pela economia digital - além de vir acompanhada por um aumento da instabilidade econômica. São mudanças que irremediavelmente alteraram a política. Isto não é uma história do auge do populismo de direita, mas, sim, a emergência de um âmbito político diversificado e em transformação.
“Unida na diversidade” é o lema da União Europeia. Há alguma possibilidade de sobreviver em um tempo de políticas identitárias como, por exemplo, vemos na Hungria, Polônia, Itália e em cada vez mais países europeus?
“Unida na diversidade”, nas atuais circunstâncias, me parece um lema ainda mais importante do que antes para a União Europeia, embora hoje essa diversidade ultrapasse os Estados e se refira às divisões transversais que as nossas sociedades já possuem. Os partidos populistas de direita não hesitarão em tirar vantagem disso e a composição do Parlamento Europeu mudará, mas a União Europeia sobreviverá e superará estas transformações.
E para conjecturar isto há razões positivas e negativas. Não consigo ver como qualquer Estado-membro poderia unilateralmente deixar a zona do euro. E, aqui, não importa o que os partidos populistas digam. Se isso acontecesse, haveria uma imediata reação adversa contra esse país por parte dos mercados financeiros globais, como aconteceu no caso da Grécia e como, certamente, poderia ser o caso se, por exemplo, a Itália buscasse seguir um caminho semelhante.
De um ângulo mais positivo, a União Europeia é ainda crucial, caso os Estados europeus queiram ter influência em um mundo marcado pelo retorno da geopolítica. Estão em curso enormes mudanças geopolíticas na sociedade mundial. Estamos no limiar do século asiático. E para conservar o poder, os estados devem atuar coletivamente.
Caíram as fronteiras, criou-se um passaporte e uma moeda comum, mas a Europa não foi capaz de incorporar uma identidade europeia. Os cidadãos europeus ainda mantêm as fronteiras nacionais como a sua principal referência. Realmente, é possível construir uma identidade europeia? E, em tal caso, o que é necessário fazer para torná-la tangível e perdurável?
A União Europeia é um híbrido e se manterá assim seja qual for a reforma futura que se realize. Há muitas propostas - uma maior democratização, para uma governança mais efetiva da zona do euro, etc. -, mas não muito tempo atrás, era vista de forma majoritária como um modelo para processos de integração que podiam ocorrer em qualquer parte e, ao menos agora, esta visão desapareceu.
Há um cabo de guerra, e os partidos autieuropeus estão ganhando força. No entanto, também ajudaram a gerar um maior ativismo pró-europeu, inclusive no país do Brexit, no Reino Unido, o que é relevante. Os medos sobre a imigração e a reivindicação de se preservar as identidades nacionais frente ao multiculturalismo são ideias-força do populismo de direita, mas estas mesmas questões devem ser tratadas, sim ou sim, em nível europeu, em nível transnacional. As reformas como as defendidas por Emmanuel Macron são, certamente, necessárias, mas será complicado avançar nelas. Além disso, em grande parte, também dependerão da posição da Alemanha posterior a era Merkel.
O eixo franco-alemão conduziu a política europeia durante décadas, desde sua fundação, equilibrado desde o seu acesso à União Europeia pelo Reino Unido. Dado o Brexit e uma Angela Merkel e um Emmanuel Macron que encaram vários conflitos internos, o futuro da União Europeia pode ficar até mesmo pior? Ou devemos esperar uma União Europeia alemã ou uma União Europeia francesa?
A Alemanha se manterá como a potência líder da Europa, ainda que hoje encare muitos problemas, entre eles, o antagonismo de Trump. No entanto, não haverá uma União Europeia alemã, como também não haverá uma União Europeia francesa. E mais, o poder de qualquer estado-membro na União Europeia – incluindo a Alemanha – é limitado. E como podemos ver nas negociações do Brexit, ainda em curso, o Conselho Europeu tem um papel crucial na tomada de decisões, assim como é o caso da Comissão no planejamento a longo prazo.
O Parlamento Europeu carece da legitimidade de seus semelhantes nos estados-membros e, mesmo assim, também é uma força influente. Há muitas tensões e cabos de guerras que se multiplicarão com o jogo político. A verdade central continua sendo que, atuando coletivamente, os estados-membros da União Europeia podem ter maior influência nos assuntos globais da que poderiam ter individualmente.
O Reino Unido votou pelo Brexit, mas no momento não há um plano concreto sobre como aplicá-lo. O que nos diz sobre isto?
Aconteça o que acontecer no futuro, o Brexit tornou a União Europeia mais sólida do que a minou. A “soberania”, em um mundo muito interdependente e ainda dividido por conflitos e dissensões em escala global, é uma noção relativa e complexa, não absoluta. O Reino Unido está aprendendo esta lição de uma forma traumática, uma que acentuou as divisões dentro do país, em vez de acalmá-las. E só o fato do Brexit ter se tornado um processo tão longo e tortuoso, e sem um final claro no horizonte, demonstra como é complexa a ideia da “soberania” no mundo atual. Eu sou pró-europeu e acredito que cada Estado-membro da União Europeia tem mais “soberania nítida” – por exemplo, um poder real para encarar os eventos globais – como membro da União Europeia, do que teria atuando de forma individual.
Considera que outros “exits” europeus, como se disse para Grécia (Grexit), para França (Frexit) e, inclusive, pela questão catalã, para a Catalunha (Catexit), são uma possibilidade e uma alternativa real para o futuro, considerando nosso mundo globalizado?
Não acredito que o Brexit abra um caminho a ser seguido por outros. Em todo caso, e como destacou Yogi Berra, uma coisa que não podemos prever é o futuro...
Dentro da União Europeia, há alguns Estados-membros que incentivam uma maior integração e uma regulamentação comum das legislações trabalhistas, sociais, etc., em certo sentido, para evitar a concorrência interna desleal. Também há um crescente bloco eurocético. E, depois, há os federalistas. É o debate entre o passado e o futuro da política global? Ou seja, como a União Europeia pode se adaptar à escala da política do século XXI?
Visto assim, e seguindo em certo sentido o que falamos da revolução digital, que está transformando nossas vidas pessoais, ao mesmo tempo o nosso futuro em comum, o futuro já está aqui. É algo que ainda está em andamento, especialmente pelo ritmo dos atuais avanços em inteligência artificial. Contudo, se antes a mencionei para o âmbito do trabalho e a economia, é preciso dizer que a revolução digital transformou a própria política e em todos os níveis. Está diretamente ligada ao auge do populismo e à parcial dissolução do centro político.
Os líderes populistas conseguem encontrar seus apoios de base de uma forma que seria impossível antes da existência das redes sociais. E, de fato, parte da razão do retorno da extrema direita é que, na era digital, todos podem ter voz e podem buscar a outros com ideias afins, sem importar onde estejam. Também há uma “volta do reprimido”, ou seja, as pessoas podem arejar de forma pública sentimentos e ideia que aborrecem a maioria.
Por sua vez, uma das questões centrais para a Europa é geopolítica. A Rússia busca de forma ativa utilizar as ferramentas digitais para influenciar na política europeia, e a União Europeia também encara grandes problemas com o crescente impacto digital da China, especialmente quando se amplia sua iniciativa da nova Rota da Seda. Os dilemas sobre Huawei e as redes 5G/6G são só o início.
Seja a terceira via trabalhista, a social-democracia ou, em geral, a esquerda, assim como os liberais e cristãos-democratas, todos apoiaram a União Europeia frente aos nacionalistas ou conservadores como Charles de Gaulle. Mas, graças à crise econômica (por exemplo, na Grécia) e a “batalha” europeia entre os Estados-membros do sul, centro e norte do Velho Continente, temos visto cada vez mais críticas, tanto da esquerda, como da direita, contra qualquer integração supranacional. Transformou-se em uma “batalha” entre nacionalistas e internacionalistas? Apoiar ou ser contra a União Europeia significa algo diferente para a esquerda e a direita?
Os social-democratas e a direita moderada foram os principais apoios ao projeto europeu, durante décadas. E pelas razões que expus antes, este período se encaminha a seu final. A social-democracia, em particular, enfrenta uma crise profunda, apesar do êxito recente dos socialistas nas eleições espanholas. Seu principal agente histórico, a classe operária fabril, se reduziu dramaticamente, ao mesmo tempo em que alguns de seus membros abraçaram a direita radical. É muito cedo para dizer se esta crise é existencial, mas isso, certamente, tem consequências significativas para a integração europeia.
A esquerda e a direita ainda existem – de fato é uma divisão que, em certo sentido, acentuou-se -, mas outras linhas divisórias políticas se sobrepuseram a esta. A era da Terceira via acabou. A social-democracia precisa se tornar parte de uma nova e mais ampla política progressista, cujos contornos não estão totalmente claros.
A Europa envelhece e em muitos dos estados onde os populistas governam – como acontece na Hungria – se prevê que poderá faltar mão de obra em curto/ou médio prazo, quando não houver jovens que possam “suprir” seu mercado de trabalho e impulsionar sua economia. Apesar disso, se opta por fechar as fronteiras à imigração e são contrários a toda política comum europeia. A Europa ou os países europeus estão em declínio?
Os países industriais, não só na Europa, como em todo o mundo, enfrentam enormes problemas estruturais devido ao envelhecimento de sua população. Os sistemas de saúde e os serviços de bem-estar se expõem a uma crescente tensão e, além disso, a maior parte dos Estados europeus não investe o suficiente em educação, nem em formação profissional, em um tempo de rápida mudança tecnológica. Por isso, são imensamente dependentes das imigrações. A onda anti-imigração, liderada pelos populistas, pode ajudar a diminuir algumas partes destas tensões estruturais, mas inevitavelmente acentuará outras. Gerir as migrações, junto ao multiculturalismo, é a única via para enfrentar este dilema.
O Estado de bem-estar é uma das instituições que tornam a Europa diferente. Pode sobreviver, em uma globalização, sem ter o apoio da integração europeia e considerando que, além disso, nossos interesses geopolíticos e geoeconômicos fazem fronteira com os de grandes potências como os Estados Unidos, Rússia e China?
O Estado de bem-estar não só está presente na Europa, como também suas origens são, antes de tudo, europeias. Virtualmente, todos os países industriais têm algum tipo de instituições de bem-estar e sistemas de educação públicos, e aqui incluo os Estados Unidos e o Japão. Contudo, em uma era dominada pelo neoliberalismo em nível global, não é surpreendente que estes sistemas de bem-estar estejam sob pressão. Não irão desaparecer, mas precisam se adaptar ao momento atual. A revolução digital, conforme já ressaltei antes, está transformando quase tudo.
Como acredita que seria o mundo, se não houvesse a União Europeia?
Menos estável e ainda mais fraturado.
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“Estão em curso enormes mudanças geopolíticas na sociedade mundial”. Entrevista com Anthony Giddens - Instituto Humanitas Unisinos - IHU