27 Junho 2016
* "As intenções de Lutero não estavam equivocadas, ele era um reformador", afirma Papa Francisco na entrevista concedida no voo de volta da Armênia.
* "Bento XVI é papa emérito. Ele disse claramente naquele 11 de fevereiro. Talvez, no futuro, poderá haver dois ou três, mas são eméritos"
* "Quem somos nós para julgar? (referindo-se aos gays) (...) Eu acredito que a Igreja ou, melhor, os cristãos, porque a Igreja é santa, não só devem pedir desculpas, como disse esse cardeal "marxista"... (é uma referência ao cardeal R. Marx, de Munique) mas devem pedir desculpas também aos pobres, às mulheres e às crianças exploradas, devem pedir desculpas por ter abençoado tantas armas, por não ter acompanhado tantas famílias"
* Em Auschwitz, quero estar "sozinho, entrar e rezar para que o Senhor me dê a graça de chorar"
"Há algo que não vai bem na União Europeia, é preciso criatividade". Sobre o genocídio: "Eu nunca usei a palavra com o ânimo ofensivo". Sobre a ideia de um ministério papal "compartilhado": "Bento XVI é emérito, mas há um só papa". Está pronto a comissão sobre as diaconisas, mas Francisco a redimensiona. As intenções de Lutero "não estavam erradas".
A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada no sítio Vatican Insider, 26-06-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Como João Paulo II, o senhor parece defender a União Europeia. Está preocupado que o Brexit possa levar à desintegração da Europa e até mesmo à guerra?
A guerra já está na Europa. Além disso, há um ar de divisão, não somente na Europa. Lembre-se da Catalunha, o ano passado da Escócia... Essas divisões, eu não digo que são perigosas, mas é preciso estudá-las bem e, antes de dar um passo em direção à divisão, é preciso falar e buscar soluções viáveis. Eu não estudei quais são os motivos pelos quais o Reino Unido quis tomar essa decisão. Há decisões que são tomadas para se emancipar: por exemplo, todos os nossos países latino-americanos ou os africanos se emanciparam das colônias. Isso é mais compreensível, porque, por trás, há uma cultura, um modo de pensar.
Em vez disso, a secessão de um país, pensemos na Escócia, é coisa à qual os políticos, dito sem ofender os Bálcãs, dão um nome: "balcanização". Para mim, sempre a unidade é superior ao conflito, mas existem diversos modos de unidade. A fraternidade é melhor do que as distâncias. As pontes são melhores do que os muros. Tudo isso deve nos fazer refletir: um país pode dizer: "Estou na União Europeia, quer ter certas coisas que são a minha cultura". O passo que a União Europeia deve tomar para reencontrar a força das suas raízes é um passo de criatividade e também de sadia "desunião", isto é, dar mais independência e mais liberdade aos países da União, pensar em outra forma de união. É preciso ser criativos nos postos trabalhos, na economia: na Itália, 40% das pessoas com menos de 25 anos não têm trabalho. Há algo de errado que não vai bem nessa União maciça, mas não joguemos fora o bebê com a água suja e tentemos recriar. Criatividade e fecundidade são as duas palavras-chave para a União Europeia.
Por que o senhor decidiu acrescentar a palavra "genocídio" no seu discurso no palácio presidencial? Sobre um tema doloroso como esse, o senhor acha que isso útil para a paz?
Na Argentina, quando se falava do extermínio armênio, sempre se usava a palavra genocídio e, na Catedral de Buenos Aires, no terceiro altar, à esquerda, colocamos uma cruz de pedra recordando o genocídio armênio. Eu não conhecia outra palavra. Quando eu chego em Roma, ouço a outra palavra, "grande mal", e me dizem que genocídio é ofensiva. Eu sempre falei dos três genocídios do século passado: o armênio, o de Hitler e o de Stalin. Houve outro na África, mas na órbita das duas grandes guerras são esses três. Alguns dizem que não é verdade, que não foi um genocídio. Um advogado me disse que é uma palavra técnica, que não é sinônimo de extermínio. Declarar genocídio envolve ações de reparação.
No ano passado, quando eu estava preparando o discurso para a celebração em São Pedro, vi que São João Paulo II usou a palavra, e eu citei entre aspas aquilo que ele tinha dito. Não foi bem recebido, foi feita uma declaração do governo turco que chamou de volta, em poucos dias, o embaixador para Ancara, e é um bom embaixador! Ele voltou há alguns meses. Todos têm direito ao protesto. Não havia a palavra no discurso. Mas, depois de ter ouvido o tom do discurso do presidente armênio, e pelo meu uso da palavra, teria soado muito estranho não dizer o mesmo que eu havia dito no ano passado. Mas, na sexta-feira passada, eu quis sublinhar outra coisa: nesse genocídio, assim como nos outros dois posteriores, as grandes potências internacionais olhavam para o outro lado. Durante a Segunda Guerra Mundial, algumas potências tinham a possibilidade de bombardear as ferrovias que levavam para Auschwitz e não o fizeram. No contexto dos três genocídios, deve-se fazer esta pergunta histórica: por que não fizeram alguma coisa? Eu não sei se é verdade, mas se diz que, quando Hitler perseguia os judeus, ele disse: "Quem se lembra hoje dos armênios? Façamos o mesmo com os judeus". Mas a palavra genocídio, eu nunca a disse com o ânimo ofensivo, mas objetivamente.
Há o papa e há o papa emérito. Causaram discussão as palavras do prefeito da Casa Pontifícia, Georg Gänswein, e a ideia que ele pareceu sugerir, a de um ministério petrino "compartilhado". Mas, então, há dois papas?
Houve uma época em que havia três! Eu não li essas declarações. Bento XVI é papa emérito. Ele disse claramente naquele 11 de fevereiro que faria a sua renúncia a partir do próximo 28 de fevereiro. Que se retirava para ajudar a Igreja com a oração. Bento está no mosteiro, rezando. Eu fui encontrá-lo muitas vezes, falamo-nos por telefone, outro dia ele me escreveu uma pequena carta fazendo seus votos para esta viagem. Eu já disse que é uma graça ter em casa o avô sábio. Ele para mim é o papa emérito, é o avô sábio, é o homem que me protege as costas e a coluna com a sua oração. Eu nunca me esqueço daquele discurso feito aos cardeais no dia 28 de fevereiro, quando ele disse: "Entre vocês, está o meu sucessor: eu prometo obediência a ele". E o fez!
Depois, eu ouvi, mas não sei se é verdade, rumores sobre alguns que teriam ido ao encontro dele para se lamentar pelo novo papa, e ele os expulsou com o seu estilo bávaro. Se não for verdade, está bem contado... porque ele é um homem de palavra, é reto. É o papa emérito. Eu agradeci publicamente a Bento por ter aberto a porta aos papas eméritos. Hoje, com esse prolongamento da vida, pode-se reger uma Igreja em uma certa idade e com as doenças? Ele abriu essa porta. Mas há um só papa, o outro é emérito. Talvez, no futuro, poderá haver dois ou três, mas são eméritos. Depois de amanhã, celebra-se o 65º aniversário da ordenação sacerdotal de Bento. Haverá um pequeno ato, com os chefes de dicastério, porque ele prefere uma coisa pequena, muito modestamente. Vou dizer algo a esse grande homem de oração e de coragem, que é o papa emérito, não o "segundo papa", e que é fiel à sua palavra e é muito sábio.
O senhor encorajou o Concílio pan-ortodoxo de Creta. Que opinião o senhor tem a respeito?
Uma opinião positiva! Foi dado um passo à frente, não com 100%, mas um passo à frente. As coisas que justificaram a não participação de algumas Igrejas são sinceras, são coisas que podem ser resolvidas: os quatro primazes que não foram, queriam fazer o Concílio um pouco mais tarde. Mas o primeiro passo é dado como se pode. Como as crianças, o primeiro passo, elas o dão como os gatos, depois caminham. O simples fato de essas Igrejas terem se reunido para se olharem na cara, rezar juntos e falar é muito positivo. Eu agradeço ao Senhor. No próximo, serão mais.
Hoje, o senhor falou dos dons compartilhados das Igrejas. Como o senhor, em outubro, irá à Suécia para comemorar o 500º aniversário da Reforma, acha que é o momento certo não só para recordar as feridas de ambos os lados, mas também para reconhecer os dons e, talvez, também, para retirar a excomunhão de Lutero?
Acredito que as intenções de Lutero não estavam equivocadas, ele era um reformador. Talvez, alguns métodos não eram certos, mas, naquele tempo, se lermos a história de Pastor – um alemão luterano que se converteu e se tornou católico –, veremos que a Igreja não era exatamente um modelo a ser imitado: havia corrupção, mundanidade, apego ao dinheiro e ao poder. E, por isso, ele protestou, era inteligente e deu um passo à frente justificando por que fazia isso. Hoje, nós, protestantes e católicos, estamos de acordo sobre a doutrina da justificação: nesse ponto tão importante, ele não tinha errado. Ele fez um remédio para a Igreja, depois esse remédio se consolidou em um estado de coisas, em uma disciplina, em um modo de fazer, de crer, e depois havia Zwingli, Calvino e, por trás deles, havia os príncipes, "cuius regio eius religio".
Devemos nos colocar na história daquele tempo, não é fácil de entender. Depois, as coisas seguiram em frente. Aquele documento sobre a justificação é um dos mais ricos. Há divisões, mas também dependem das Igrejas. Em Buenos Aires, havia duas Igrejas luteranas, e elas pensavam de modos diferentes. Até mesmo na Igreja Luterana não há unidade. A diversidade é aquilo que, talvez, nos fez tão mal a todos, e hoje buscamos o caminho para nos encontrar depois de 500 anos. Eu acredito que, em primeiro lugar, devemos rezar juntos. Segundo, devemos trabalhar pelos pobres, pelos refugiados, por tantas pessoas que sofrem e, por fim, que os teólogos estudem juntos buscando... Esse é um caminho longo. Uma vez, eu disse brincando: eu sei quando vai ser o dia da unidade plena, o dia depois da vinda do Senhor. Não sabemos quando o Espírito Santo vai fazer essa graça. Mas, enquanto isso, devemos trabalhar juntos pela paz.
Nos últimos dias, o cardeal Marx, falando em Dublin, disse que a Igreja Católica deve pedir desculpas à comunidade gay por ter marginalizado essas pessoas.
Eu repito o Catecismo: essas pessoas não devem ser discriminadas, devem ser respeitadas e acompanhadas pastoralmente. Podem ser condenadas, não por motivos ideológicos, mas por motivos de comportamento político, certas manifestações ofensivas demais para os outros. Mas essas coisas não têm nada a ver, o problema é uma pessoa que tem essa condição, que tem boa vontade e que busca a Deus. Quem somos nós para julgar? Devemos acompanhar bem, de acordo com aquilo que o Catecismo diz. Depois, há tradições em alguns países e culturas que têm uma mentalidade diferente sobre esse problema.
Eu acredito que a Igreja ou, melhor, os cristãos, porque a Igreja é santa, não só devem pedir desculpas, como disse esse cardeal "marxista"... mas devem pedir desculpas também aos pobres, às mulheres e às crianças exploradas, devem pedir desculpas por ter abençoado tantas armas, por não ter acompanhado tantas famílias. Eu me lembro, quando criança, a cultura católica fechada de Buenos Aires: não se podia entrar em casa de divorciados. Estou falando de 80 anos atrás.
A cultura mudou, e, graças a Deus, como cristãos, devemos pedir tantas desculpas, não só sobre isso: "perdão, Senhor" é uma palavra de que nos esquecemos. O padre "chefe" e não o padre pai, o padre que bate e não o padre que abraça e perdoa... mas há tantos santos padres capelães nos hospitais e nas prisões, mas estes não se veem, porque a santidade tem pudor. Em vez disso, o despudor é descarado e se faz ver. Tantas organizações, com gente boa e gente não tão boa. Nós, cristãos, também temos tantas Teresas de Calcutá... Não devemos nos escandalizar, essa é a vida da Igreja. Todos nós somos santos, porque temos o Espírito Santo, mas somos todos pecadores, eu por primeiro.
Algumas semanas atrás, o senhor falou de uma comissão para estudar a possibilidade das diaconisas. Ela já existe? Às vezes, uma comissão serve para se esquecer do problema.
Havia um presidente da Argentina que dizia dos outros presidentes: quando você não quer resolver um problema, faça uma comissão. Eu fui o primeiro a ser surpreendido por essa notícia, porque, no diálogo com as superioras religiosas, elas me perguntaram: "Ouvimos dizer que, nos primeiros séculos, havia as diaconisas. Isso poderá ser estudado?". Elas pediram só isso, e eu contei que conhecia um teólogo sírio que me havia dito: "Sim, elas existiam, mas não se sabe muito bem se elas tinham a ordenação". Certamente, elas existiam e ajudavam em três coisas: no batismo das mulheres, nas unções pré e pós-batismais das mulheres. E no caso em que uma esposa ia se lamentar com o bispo porque o marido lhe batia: o bispo chamava a diaconisa para ver os hematomas no corpo da mulher. No dia seguinte, as mídias escreveram: "A Igreja se abre às diaconisas". Eu pedi nomes para fazer uma comissão, e agora ela está lá na minha escrivaninha, estou prestes a fazê-la.
Mas há outra coisa: um ano e meio atrás, eu fiz uma comissão de teólogas que trabalharam com o cardeal Rylko, e elas fizeram um bom trabalho. É muito importante o pensamento da mulher. Para mim, a função da mulher não é tão importante quanto o pensamento da mulher, que pensa de forma diferente do homem, e não se pode tomar uma boa decisão sem consultar as mulheres, como eu fazia em Buenos Aires. As mulheres veem as coisas sob outra luz, e a solução, depois, no fim, sempre foi muito fecunda e bela. Gostaria de enfatizar isto: é mais importante o modo de entender, de pensar, de ver da mulher do que a sua função. E, depois, repito: a Igreja é mulher, é "a" Igreja, e não é uma solteirona, é a esposa de Jesus Cristo.
Quais são os seus sentimentos, o estado de ânimo e as orações que o senhor faz pelo futuro do povo armênio?
Desejo para esse povo a justiça e a paz, e rezo por isso, porque é um povo corajoso. Eu rezo para que ele encontre a justiça e a paz. Sei que muitos trabalham por isso. Eu fiquei muito contente na semana passada, quando vi uma fotografia de Putin com os dois presidentes da Armênia e do Azerbaijão: ao menos, eles se falam! E também com a Turquia: o presidente armênio, no discurso de boas-vindas, teve a coragem de dizer: coloquemo-nos de acordo, perdoemo-nos e olhemos para o futuro. Essa é uma coragem grande, é um povo que sofreu tanto. E, depois, o ícone do povo armênio, que me veio à mente hoje enquanto eu rezava: uma vida de pedra e uma ternura de mãe. Ele carregou cruzes, cruzes de pedra, mas não perdeu a ternura, a arte, a música. Um povo que sofreu tanto na sua história, somente a fé o manteve de pé. Foi a primeira nação cristã, porque o Senhor a abençoou, teve bispos santos, mártires e, na sua resistência, criou uma pele de pedra, mas não perdeu o coração materno, de uma terra que é mãe. Eu tinha muitos contatos com os armênios em Buenos Aires, ia muitas vezes ao encontro deles, às missas. Ia jantar com eles... e vocês fazem jantas pesadas, hein! Para vocês, mais importante do que a pertença à Igreja Apostólica ou à Católica, é a armenidade, o seu ser armênios.
Nesse sábado à noite, o senhor pediu que os jovens sejam atores de reconciliação com a Turquia e o Azerbaijão, países que o senhor irá visitar em outubro. O que se pode fazer concretamente para ajudar nisso e o que o senhor vai dizer?
No Azerbaijão, falarei aos azeris da verdade daquilo que eu vi aqui e que eu sinto. Também vou encorajá-los. Encontrei-me com o presidente azero e falei com ele. Também vou dizer que não fazer a paz por causa de um pedacinho de terra significa algo de obscuro, mas digo isso a todos, armênios e azeris. Talvez, eles se põem de acordo sobre as modalidades de fazer a paz, e será preciso trabalhar nisso. Vou dizer aquilo que vier ao meu coração, mas sempre de forma positiva, buscando soluções que sejam viáveis e que vão em frente.
No memorial de Yerevan, o senhor rezou em silêncio, sem fazer discursos. Vai fazer o mesmo quando visitar, em julho, Auschwitz e Birkenau?
Dois anos atrás, em Redipuglia, eu fiz o mesmo para comemorar o centenário da guerra. Com o silêncio. Gostaria de ir para Auschwitz, naquele lugar de horror, sem discursos, sem muitas pessoas, somente as poucas necessárias, embora os jornalistas, certamente, estarão. Mas sem cumprimentar este ou aquele. Sozinho, entrar e rezar para que o Senhor me dê a graça de chorar.
Foto: Antonio Spadaro.
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Brexit: não à balcanização, mas é preciso uma nova União Europeia. Entrevista com o Papa Francisco no retorno da Armênia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU