“A covid-19 é o último aviso, e sem consciência crítica de espécie, na próxima, a humanidade colapsará”. Entrevista com Eudald Carbonell

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14 Abril 2020

Eudald Carbonell Roura (Ribes de Freser, Espanha, 1953) é um dos arqueólogos de maior prestígio e projeção internacional. Desde o ano 1999, ocupa a cátedra de Pré-História da Universidade Rovira i Virgili e atualmente é pesquisador principal do Grupo de Autoecologia Humana do Quaternário desta universidade e pesquisador do Instituto Catalão de Paleoecologia Humana e Evolução Social (IPHES), um instituto transdisciplinar que trabalha nas principais jazidas do mundo para averiguar a origem das primeiras populações humanas e que faz parte da elite da pesquisa sobre a evolução humana.

Como codiretor do Projeto Atapuerca e diretor geral da Fundação Atapuerca, Carbonell é um dos artífices do Museu da Evolução Humana, criado em Burgos, fruto de mais de 30 anos de pesquisa nas jazidas de Atapuerca. O confinamento pela covid-19 chegou nos meses de maior intensidade para preparar as importantes escavações arqueológicas que dirige e que habitualmente começam no mês de julho.

No momento, nada foi cancelado, mas Carbonell explica que permanece a incerteza a respeito de quais serão os protocolos de atuação vigentes para a ocasião. Para além de sua tarefa arqueológica, a socialização do conhecimento é uma das grandes obsessões de Carbonell. Assim como a reflexão a respeito da evolução humana e seu futuro como espécie, que abordou em uma ampla bibliografia na qual há livros como Planeta humano, La conciencia que quema e El nacimiento de una nueva conciencia.

Nesta entrevista, Carbonell apresenta o seu pensamento, aponta para o colapso da espécie humana e afirma que o coronavírus é o último aviso. Um colapso que só será evitado pela construção de uma verdadeira “consciência crítica de espécie”, sentencia.

A entrevista é de Ferran Espada, publicada por Público, 12-04-2020. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

O confinamento é o melhor método que temos, nesse momento, para deter a pandemia. Mas, não é um método muito contrário à socialização inerente à espécie humana?

O confinamento é um processo de dessocialização. Temos a vertente psicológica e a social. E quando pretendemos a dessocialização de uma espécie social aparecem muitas contradições. E é isso mesmo o que está acontecendo agora. Estamos dessocializando nossa espécie e a estamos ressocializando no espaço doméstico, gerando contradições importantíssimas para a nossa psique. Porque, além disso, ao mesmo tempo em que nos dessocializamos, estamos hiperconectados. Nunca havia sido visto uma situação assim.

O coronavírus está nos obrigando, mais do que nunca, a depender da tecnologia, não é?

Nós que sempre defendemos a revolução científico-tecnológica e a socialização da tecnologia, estamos confirmando as vantagens para o ser humano do uso social desta tecnologia. É o nosso cérebro que produziu esta hipersocialização tecnológica, mas, ao mesmo tempo, há muitos espaços cerebrais que ainda não a assumiu. Mas agora, sim, nós a estamos incorporando. É muito importante o que está acontecendo, porque desta vez submetemos nossa evolução a contradições e a incorporar a aprendizagem interagindo continuamente com a tecnologia.

A pandemia da covid-19 era inevitável ou é responsabilidade dos humanos?

É absolutamente responsabilidade dos humanos porque não fomos capazes de ter um protocolo universal diante de uma pandemia como esta. Há anos que esses protocolos universais deveriam estar prontos, diante do surgimento de outras epidemias.

Como deveriam ser esses protocolos? Quem deve estabelecê-los?

Deveriam ser alguns protocolos de rigoroso cumprimento como espécie, independentemente do país ao que se pertença ou de qualquer outro critério. E que devem ser guiados evidentemente por epidemiologistas e virologistas. Por pessoas que têm capacidade de saber exatamente o tipo de funcionamento biológico destas moléculas. E isto não foi feito. É curioso que muitos destes cientistas tenham recebido mais dinheiro em 48 horas que em toda a sua vida pesquisando.

É o típico delineamento oportunista das situações ligadas à geopolítica e às classes extrativas. Nisso encontramos algumas contradições evolutivas importantes que são consequência destas visões muito hierárquicas e oportunistas que temos nos momentos históricos. Quando há um perigo para a própria espécie, não se pode discutir outras coisas que não sejam a sobrevivência e a reprodução da espécie.

A organização social e política da humanidade, na forma de estados com sociedades que disputam entre elas, é o que impede de atuar como espécie de forma solidária e aplicar esses protocolos?

Sim. Vimos isso com o que aconteceu agora na União Europeia. É uma União Europeia de pés de barro, não criada para a solidariedade, mas para organizar como as classes extrativas levam o dinheiro das pessoas via impostos. Com algumas minorias de poder social e econômico que se aproveitam dos estados para o roubo e a drenagem continuada do dinheiro das pessoas, em vez de melhorar as condições sociais. Por isso, quando ocorrem problemas, desaparece a Europa de Schengen e os estados se tornam fortalezas.

Pandemias sempre existiram, como a peste durante a Idade Média. Em suas jazidas arqueológicas, também há indícios de epidemias na pré-história?

É claro. As pandemias sempre existiram, ainda que seja muito difícil poder encontrar evidências. Contudo, é necessário ter presente que as pandemias funcionam a partir da pressão demográfica. Não é a mesma coisa quando isso afetava 200 ou 1.000 pessoas de um território, até morrer todos, e não ficava nenhum hóspede do vírus que pudesse continuar o contágio porque a muitos quilômetros de distância nem se inteiravam. Agora, em um mundo globalizado e de grandes comunicações de transporte, os hóspedes, que somos nós, se multiplicam exponencialmente.

A globalização é o problema, então?

O problema é que nós a estamos praticando mal. É uma globalização com pés de barro. Não é uma globalização social, mas, sim, uma globalização dirigida por classes extrativas e isto faz com que se tenda à uniformização do planeta, quando o que se deveria fazer é manter a diversidade e sermos capazes de a integrar. Ou seja, criar um consenso e que as diversas condutas e culturas humanas pudessem trazer para a nova síntese tudo o que sabemos e não perder a memória no sistema. Ou seja, a planetarização. Seria necessário parar esta globalização, que é o pior que estamos fazendo, e gerar uma consciência crítica de espécie, na educação e na formação, que socialize a revolução científico-tecnológica e que aumente a sociabilidade dos grupos.

Você dedicou boa parte de seu trabalho como pensador a esta consciência crítica. Começa a esboçar em ‘Planeta humano’ e a desenvolve em outros livros como ‘La conciencia que quema’ e ‘El nacimiento de una nueva conciencia’. O que quer dizer?

Que nós, humanos, devemos evoluir para uma consciência operativa. Não apenas uma consciência abstrata. As pessoas acreditam que a consciência é algo abstrato, mas não é verdade. Porque a consciência é a fusão da inteligência com a organização social de nossa espécie.

E nós a adquiriremos?

Esse é o problema. Caso não a adquiramos, com os crescimentos exponenciais convergentes da espécie, vamos para o caos.

E o que acarretaria na prática a mudança que defende?

Romper com as hierarquias, conseguir alguns sistemas de cooperação e de organização muito mais horizontais e de consenso que integrem todas as formas de pensar que existem no planeta, com o objetivo de tirar sempre as melhores consequências. Isso já aconteceu em nossas culturas que se adaptaram ao clima, aos aumentos demográficos e a muitas outras coisas. Portanto, há uma rica fonte de experiência que faz com que se saibamos para onde queremos ir. Nós a podemos utilizar para gerar as novas condições de nossa espécie.

Não parece que a espécie humana olhe para a sobrevivência como tal, mas muito mais para os interesses de cada geração em concreto...

É a primeira vez que o ser humano aplica uma lógica de desafio de nossa própria evolução e da seleção natural e, mediante a seleção técnica cultural, estabelece mecanismos para evitar que a seleção natural atue. Isto é um grande desafio à evolução humana. Agora, é possível fazer porque a biotecnologia tem os instrumentos capazes para isso.

É um fato favorável à sobrevivência da espécie humana, mas cada vez mais automodificada geneticamente e provavelmente em favor de algumas consciências novas que aparecerão quando neste planeta houver vários tipos de espécies e subespécies de humanos. Nesse momento, estou escrevendo sobre essa questão, que não é o futuro imediato, mas o futuro do futuro.

A modernidade e a tecnoeuforia fizeram com que, como espécie, tenhamos acreditado que somos invulneráveis?

É um engano semelhante ao que se instaurou com a ideia do estado de bem-estar. As pessoas têm medo da morte e se escondem para acreditar que a morte não faz parte da vida. E a vida é tida como algo incomensurável. A vida é obviamente a coisa mais importante que existe, mas ainda estamos nessa fase da evolução em que a morte é uma solução da vida, por mais que em um futuro seja retardada e controlada. O ser humano sempre pensou que isto ou aquilo não acontecerá comigo. E enquanto não morre alguém próximo, não percebemos que, sim, podemos morrer. Faz parte das respostas que a antropogênese humana construiu com o fato de não concordar com o mal.

O que quer dizer com isso do engano do estado de bem-estar?

Fazendo uma ponderação que vai do social ao político, referia-me a quando a social-democracia implantou, aqui, a ideia do estado de bem-estar, no qual diziam que todas as classes médias se instalariam. E que o estado de bem-estar havia chegado para ficar. Muitas pessoas acreditaram nisso e isso é o importante. As pessoas deram como fato e não pensaram que a consciência e a luta de classes continuavam funcionando. E que não existia uma consciência crítica da espécie.

Então, o que acontecerá após esta pandemia?

Depois disso, o que acontecerá é que as pessoas, dentro de um tempo, não se recordarão. A não ser que comece a se desenhar o que diz uma série de pessoas, que estamos removendo a consciência crítica de espécie. Caso contrário, o que acontecerá é que, na próxima, muito provavelmente a espécie entrará em colapso.

A espécie entrará em colapso?

De fato, já faz tempo que estamos colapsando, ainda que as pessoas não queiram se dar conta. Há tempo que estamos no horizonte de acontecimentos de colapso. Os epidemiologistas e virologistas já falam que os episódios de ataque destas moléculas são sequenciais e cada vez mais exponenciais. Isto faz parte da defesa da própria estrutura biológica, quando há pressões demográficas e essas interações tão intensas e importantes.

Temos concentrações de 20, 30 e 40 milhões de pessoas em metrópoles que são focos de crescimento e de complexidade muito importantes, mas também supõem sobrecargas demográficas que implicam que os hóspedes dos vírus são facilmente elimináveis. Além disso, nós, humanos, não somos responsáveis pela mudança climática, mas contribuímos para a sua aceleração e ela também interage com os fatos epidêmicos. Tudo isso acarretará mudanças sociais.

Que mudanças?

Esse sistema que estamos vivendo na Terra, esse capitalismo velho, caduco e acabado, não é capaz de solucionar os problemas que gera. A socialização do capitalismo já significou 200 milhões de mortos com as duas guerras mundiais. Portanto, vamos para um novo sistema que pode chegar de forma natural, o que seria um desastre, ou de forma lógica, que é como deveria chegar. Caso isso não seja feito, o que estamos fazendo é acelerar o colapso da espécie humana. É muito provável que ocorra. Se isso recebe inércia e gera sinergia, estamos realmente indo em direção a um funil evolutivo.

Então, que sentido faz tomar medidas para enfrentar os efeitos da pandemia, na esperança de que acabe, e voltar a refazer a situação anterior?

É um erro, porque esta é uma oportunidade para mudar o sistema. O problema é encontrar quem se atreverá a mudá-lo. Que parte da espécie será capaz de dar uma guinada no sistema? Eu não a conheço. Esta seria a melhor oportunidade, porque agora o mundo está em parada técnica e é nessa situação que se torna possível tomar medidas fortes.

A covid-19 é um aviso deste colapso?

Sim. Colocou-nos diante do espelho de nossa deslealdade com a própria espécie. A covid-19 desestruturou um sistema que já tinha muito pouca estabilidade e muito desequilíbrio. Com consequências sociais e econômicas evidentes. E agora ainda temos recursos para a sobrevivência, mas caso ocorra em outras condições, as revoltas sociais e graves problemas que apareceriam no planeta, sem esses excedentes, levariam a uma situação de grande confrontação de classes e de todo tipo.

No marco das possibilidades, qualquer cenário é possível e isso quer dizer que é o último aviso. Os sistemas até agora sempre mudaram de forma natural. A única vez que se tentou mudar um sistema por parte dos humanos foi a revolução socialista, a partir de uma estruturação filosófica, e não funcionou porque nós, humanos, não estamos preparados para tais pensamentos tão evoluídos.

À margem dessa tentativa, os sistemas econômicos funcionam sempre sós. O capitalismo não foi feito por ninguém. É ignorância falar de refundação do capitalismo porque ninguém o fundou. Agora, temos outra oportunidade para refundar o sistema a partir da lógica e não do acaso. Se não agirmos assim, será o próprio desequilíbrio que gerará um sistema novo.

Você fala de revoltas e graves problemas mundiais. O colapso da espécie humana pode levar ao enfrentamento total entre humanos e até mesmo à depredação entre nós?

Certamente. Sem sombra de dúvidas. No colapso há vários cenários. Se quando ocorre, há alimentos para todos, a desestruturação pode acarretar violências não atomizadas. Mas se realmente chegarmos ao colapso sem alimentos, e este é um cenário muito extremo que provavelmente não ocorrerá, mas que é necessário levar em conta, a depredação pode chegar a formas de comportamento que podem incluir até mesmo o canibalismo. Como já se viu em outras ocasiões da história, quando não houve comida para todos. As pessoas não gostam que digamos isso e te acusam de apocalíptico e de querer colocar medo. Não digo isso para assustar, mas para criar consciência. São apenas cenários. Mas os cenários são a forma que temos para saber para onde podemos ir.

Do colapso podemos passar à extinção da espécie humana?

Essa é a grande pergunta. Alguns microbiólogos fazem essa defesa. Eu penso mais em um cenário de colapsos consecutivos e de mudanças estruturais. A socialização da revolução tecnológico-científica não nos levará a um novo paradigma, mas a um mundo novo. Algo muito diferente que, nesse exato momento, não podemos saber. As mudanças e as transformações já não serão tais, mas darão passagem para mudanças de fase. Serão fases diferentes, com ruptura da própria evolução. Com elementos novos que agora não conhecemos, nem sabemos como serão.

Mas antes de que isso ocorra, é preciso fazer ponderações, conforme nos dedicamos através do pensamento, a respeito do que fazer, o que é a consciência operativa e a consciência crítica, como se deve socializar a revolução científico-tecnológica, como se deve fazer a cooperação, por que é necessário destruir as lideranças... Toda uma série de questões importantes que estão pensadas não só do ponto de vista ideológico, mas de sobrevivência da espécie em um mundo como o atual, com 7 bilhões de espécimes humanos, que no máximo pode chegar aos 10 bilhões e que é quando ocorrerão essas mudanças estruturais, que agora desconhecemos, se poderemos nos adaptar ou não.

Além disso, sobre as teorias da extinção da espécie humana, eu sempre pensei que isto não ocorrerá, entre outras coisas porque a tecnologia permitirá viver, em um futuro, em outros lugares que não serão a Terra.

Destruir as lideranças...?

As lideranças são o pior da humanidade. Devemos evitar os líderes a todo custo e devemos ser capazes de criar autoconhecimento e auto-organização. Habitualmente, os líderes são os mais imbecis de todos. Não sabemos a razão, mas a seleção natural também promove ignorantes e pessoas que são incapazes para os postos de responsabilidade que ocupam e que servem sempre às classes não inclusivas.

São pessoas com pouca capacidade para escutar a quem se deve escutar, que são os cientistas, pessoas que pensam de forma crítica, que conhecem os mecanismos da história e, a partir de um consenso de espécie, integrá-los todos para pensar e discutir sobre os problemas para poder tomar decisões. E obviamente deve haver uma representação política, mas é preciso votar em pessoas que sejam consistentes e coerentes com esta forma de pensar e não em pessoas incompetentes que normalmente são a maioria e que não têm capacidade operativa de reação diante de problemas importantes.

Não parece que possa prosperar qualquer projeto político que vá na direção deste delineamento... Sobre esta crise da pandemia, há quem prediz que surgirá mais individualismo e lideranças fortes, autoritarismo e inclusive crescimento da ultradireita.

A curto prazo é provável. A médio prazo é plausível que não seja assim. Agora, a história está acelerada. Essas crises podem provocar reações humanas de medo. Mas os sistemas que surgem duram pouco porque as pessoas quando perdem o medo, os derrubam.

A espécie humana é a única autodestrutiva do planeta?

Não. Ainda que isso seja muito difícil de saber. A espécie humana, o Homo sapiens, após 400.000 anos de evolução, é a única que atualmente tem uma consciência global de espécie importante. Ainda que não a utilize para melhorar suas condições de vida, pois continua tendo comportamentos hierárquicos de animal. Porque somos animais sociais hierárquicos e gregários. Mas nenhuma outra espécie animal a tem. Nessa perspectiva, somos uma espécie, ao menos nesse exato momento, única e singular. Há centenas de milhares de anos, provavelmente não, mas há alguns milhares de anos, sim, temos essa consciência de espécie. Agora é necessário que seja crítica.

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